Ainda ouço as vozes da multidão a gritar, os chefes religiosos a pressionar, aquele nome a repetir-se como um peso: Jesus de Nazaré. Trouxeram-nO diante de mim como um malfeitor, mas não vi crime nem maldade. Vi um homem ferido, mas sereno e com um olhar que logo me desarmou. Nunca ninguém olhou assim para mim — sem medo, sem ódio e como se me conhecesse melhor do que eu a mim mesmo.
“És tu o rei dos judeus?”, perguntei-Lhe, mais por formalidade que por fé. Ele respondeu: “O meu Reino não é deste mundo.” Que tipo de prisioneiro fala assim? Eu, habituado ao poder, à força, à estratégia, fiquei rendido. Havia algo naquele homem… Eu, que julgava homens, percebi que estava a ser julgado por aquele que se deixava julgar. O silêncio d’Ele não era de fraqueza — era de quem conhece a verdade e não precisa de se defender.
Tentei libertá-lo. Ofereci à multidão a escolha: Jesus ou Barrabás? Mas, escolheram o ladrão. O violento. O culpado. Eu ainda disse: “Não vejo culpa neste homem!” Mas eles gritavam mais alto: “Crucifica-O!”. Sentia as rédeas do poder escorregarem-me das mãos. “Se libertares este homem, não és amigo de César!” — foi a ameaça final. Com essa frase, prenderam-me. A minha posição, o meu cargo, o meu comodismo, o meu medo de Roma… tudo pesou mais do que a minha consciência.
Então, lavei as mãos. Lavei-as diante de todos. Um gesto vazio. Porque a água limpou os dedos, mas não a consciência. Ainda hoje, nas noites sem sono, vejo os olhos d’Ele. Não olhos de acusação, mas de misericórdia.
Pergunto-me muitas vezes quem era Ele, de verdade. Ouço rumores de que ressuscitou, de que os Seus discípulos agora espalham a Sua mensagem. Às vezes imagino o que teria sucedido se eu O tivesse libertado… O que teria acontecido ao mundo? Ao Reino de que Ele falava? À história que parecia estar a ser escrita não por mim, mas por Alguém maior do que todos nós? Naquele dia… o que o que aconteceu ali não foi apenas um julgamento…
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
Recordo aquela noite como se ainda estivesse a vivê-la. A mesa posta, o pão ainda quente, o vinho já servido, mas o que se preparava – sei-o agora – era mais do que uma ceia. Era um testemunho.
Pedro falava alto, contando as suas peripécias para conseguir comprar aquele pão a tempo da ceia. Tomé, sempre desconfiado, fazia-lhe muitas perguntas. Tiago e Filipe divertiam-se a imitar os dois. Todos nós nos riamos. Foi então que Jesus Se levantou. Com um gesto sereno, mas cheio de solenidade, tirou o manto. Pegou na toalha, atou-a à cintura, tal como um servo faria. E ajoelhou-Se diante de cada um de nós.
Eu vi Pedro hesitar, vi os olhos dos outros abrirem-se de espanto. E dentro de mim soavam perguntas: “Como podia Ele, o nosso Mestre, curvar-Se assim? Como podia Ele, o Deus feito carne, tocar com mãos tão limpas a poeira dos nossos pés?” Quando lavou os meus, não ousei falar. Não senti apenas água… senti graça e misericórdia. Era como se cada gota dissesse: “Deixa-Me purificar-te.”
Naquele gesto, Jesus revelou o que muitos nunca compreenderiam: que a verdadeira glória está em servir, que a maior luz é a que se abaixa para iluminar a escuridão. Porque naquele gesto, Ele não lavava apenas os pés. Lavava-nos o orgulho, a rigidez, a falsa ideia de grandeza. Lavava-nos os medos, os atalhos, as pressas de querermos ser os primeiros. E mostrava-nos que o amor verdadeiro é sempre serviço, é dádiva, é entrega. Ali Deus ajoelhou-se na nossa humanidade.
Mais tarde, no Calvário, quando o vi entregar-Se por nós, compreendi que aquele lava-pés era já um prenúncio da cruz: o Deus que Se inclina, que Se doa, que ama até ao fim.
Naquele lava-pés, entendi que ser amado por Jesus é também ser chamado a amar como Ele: de joelhos, com a toalha da humildade e o coração aberto. Naquele Seu gesto, também percebi que quem não aceita ser lavado, nunca será fonte.
Estava à mesa com os outros, mas o meu coração já lá não estava. A desilusão e a revolta dominavam-me. Durante três anos, caminhei ao lado de Jesus, vi os Seus milagre, escutei as Suas palavras. Mas as dúvidas cresciam e eu nada fazia para as esclarecer. Fui disfarçando a minha inquietação interior, com vergonha que me julgassem um fraco. Logo eu, o mais sério de todos, o mais preocupado com tudo, o mais responsável, como poderia eu ter dúvidas? Mas elas estavam lá…
Eu queria que Ele se impusesse, que derrubasse o Império, que ocupasse o trono que lhe pertencia por ser Filho de quem era. Mas Ele ultimamente só falava em morrer, em amar os inimigos, em dar a outra face… Aquilo não fazia sentido para mim. A minha impaciência e frustração cresciam… Seriam só promessas? Seria tudo uma fraude? Não! Eu ainda acreditava que Ele era o Messias! Ele só tinha de Se revelar ao mundo. Então, eu quis obrigá-Lo a agir. Eu não O queria trair… queria só provocá-Lo para que Ele se visse obrigado a manifestar a Sua realeza… E perante a iminência de uma condenação, eu tinha a certeza que Deus não O abandonaria e enviaria todos os Seus anjos para que O salvassem. Então aí, finalmente, todos acreditariam em Jesus! Ele seria Rei e nós os seus ministros! Era este o meu plano… perfeito!
Mas enganei-me… Fui longe demais… Traí-O, convencido de que se salvaria no último momento. E naquela noite, embora sabendo o que eu ia fazer, Ele não me rejeitou. Chamou-me “amigo”, como se me dissesse: “Ainda podes desistir. Fica comigo.” Por que não fiz isso? Por que não voltei atrás? Por que não Lhe abri o meu coração? Talvez porque o coração, quando endurece, já não escuta o amor…
Entregar Jesus… nunca imaginei que isso acabaria por me entregar a mim mesmo e me deixaria à mercê da culpa, do remorso, do abismo de onde nunca mais consegui sair… O que me matou não foi o pecado que cometi, foi o não ter acreditado no Seu perdão.
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
(a partir do Evangelho do dia – Jo 13, 21-33.36-38)
Estávamos os doze reunidos com Jesus para celebrarmos a Páscoa. Sentíamos que havia algo diferente naquela noite. Os olhos d’Ele falavam mais do que as Suas palavras. Ele falava de partir para onde não poderíamos ir e eu, impulsivo como sempre, não consegui ficar calado.
“Senhor, para onde vais?” – perguntei com a inquietação de quem não suporta a ideia de estar longe d’Ele. E quando me disse que não O poderia seguir agora, o meu coração revoltou-se. “Por que razão não posso seguir-Te agora? Darei a vida por Ti!” – disse, com toda a convicção.
Na minha mente, eu estava pronto. Pronto para tudo. Pronto para O defender, até com a espada. Pronto para O seguir até ao fim. Tinha a certeza! Não O deixaria sozinho! Morreria por Ele se fosse preciso! Mal imaginava eu que, horas depois, nem coragem teria para dizer que O conhecia…
Mas Ele já tinha visto a minha queda. Olhando-me, disse: “Darás a vida por Mim? Em verdade te digo: não cantará o galo antes que Me tenhas negado três vezes.” Fiquei estupefacto. Algo em mim gelou. Seria eu capaz de tal ato hediondo? Parece que sim…
Eu que me via tão forte, sucumbi à minha fraqueza. Eu que O amava tanto, neguei-O quando mais de mim precisou. Hoje, ao recordar aquela noite, vejo que ainda não tinha deixado que o Seu amor me transformasse por completo. Eu queria segui-Lo, mas à minha maneira. Mas, fui salvo! Ao contrário de Judas, não me deixei morrer no sofrimento que uma traição traz. Eu sabia que Jesus me amava sem medida e que o seu perdão cobriria o meu pecado. Deixei-me perdoar e voltei à Vida. E do meu fracasso, Ele fez uma história de amor.
O que mais me espanta não é que Jesus tenha previsto a minha traição… mas que, mesmo assim, Ele me tenha salvo do abismo para onde o pecado nos leva. Aquela noite fez de mim um homem novo. E eu fui abraçado pela Sua cruz, o lugar onde Jesus tem sempre os braços abertos para nós.
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
Seis dias antes da Páscoa, Ele voltou a Betânia, a minha casa. A memória do túmulo ainda me assombra – aquele escuro absoluto, o silêncio sem tempo. Mas depois ouço sempre a Sua voz, a que me traz de novo à vida: “Lázaro, vem para fora!” E eu voltei. E volto. Escolhi voltar. Não foi apenas um voltar à vida – foi um começar de novo, com um sentido que antes não conhecia. Nasci de novo. Como posso explicar? Os olhares que as pessoas me lançam… uns de espanto, outros de medo. Muitos querem ver-me só porque fui ressuscitado. Porque a minha vida, agora sim, é sinal d’Aquele que é a Vida.
E Ele estava ali de novo, sentado à mesa comigo. Marta, sempre generosa, servia-O com o coração em festa. Maria ajoelhou-se aos Seus pés e derramou aquele perfume caríssimo, enchendo a casa com o aroma do seu amor. E eu, silencioso, observava tudo com o coração cheio de gratidão, de reverência, de um amor que de tão grande que era já não cabia no peito.
Eu conhecia os olhos d’Ele. Tinha-os visto antes da minha morte e depois da minha ressurreição. Mas agora, havia neles uma sombra… era como se já carregassem o peso da cruz que se aproximava. E, no entanto, ainda havia n’Ele uma imensa ternura. Ainda havia n’Ele toda a luz. Ele escolheu estar com os seus, fazer festa, abraçar os que amava, sentar-se à mesa para partilhar o pão e a vida. Embora sabendo que ia morrer, Ele não quis morrer antes do tempo.
Seis dias antes da Páscoa, Jesus veio à minha casa. E, naquela mesa, eu soube: eu não sou apenas um homem que voltou da morte — sou um homem chamado a viver para sempre n’Ele. Sei que o meu corpo esteve fechado no túmulo, mas o meu coração é hoje, por Ele, uma casa aberta. E se Ele quiser, morrerei de novo. Porque, agora, sei o que é viver. Já não vivo para mim — vivo como quem sabe que esteve morto. Porque viver depois da morte… é viver para sempre!
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
(a partir do Evangelho do Domingo de Ramos – Lc 19, 28-40)
Eu estava lá, naquele dia inesquecível. Caminhava ao lado d’Ele, juntamente com Pedro e os outros. O sol brilhava intensamente, o caminho enchia-se de vozes, de cor, de ramos de palmeira. Entre a multidão, reconheci o cego que Ele tinha curado, a mulher que Ele tinha perdoado, o amigo que Ele tinha ressuscitado. Quando ouvi as pessoas a gritar “Hosana ao Filho de David!”, o meu coração explodiu de alegria. Finalmente! O povo reconhecia-O como Rei! Julguei estar a acontecer ali o começo da vitória, o momento em que Jesus iria revelar o Seu poder, libertar Israel, restaurar o trono de David.
Mas, no meio de tanta euforia desenfreada, havia algo no olhar de Jesus que me deixava inquieto e confuso. Ele não sorria como quem recebe glória. Ele não recebia aquelas aclamações com orgulho. Ele olhava a multidão que por Ele gritava com compaixão… e dor. As suas lágrimas, que muitos julgaram ser de alegria, escondiam o conhecimento do sofrimento iminente. Pois, Ele sabia que o aplauso de hoje transformar-se-ia na condenação de amanhã…
Naquele momento, eu ainda não compreendia que a Sua realeza era diferente. Que o trono valioso que O esperava era afinal uma cruz de madeira. Que a coroa real que lhe seria entregue era afinal de espinhos. Que Ele veio não para conquistar um Império, mas para imperar nos nossos corações.
Naquele dia, eu só via a festa a acontecer. E a história d’Ele poderia ter terminado ali. Com aclamações e juras de amor eterno, com abraços e promessas de felicidade. Só depois, com o tempo e com o que aconteceu, percebi que Ele quis que fosse de outra forma para nos mostrar que os desafios e os obstáculos existem para serem abraçados e que a vida d’Ele em tudo se assemelha à nossa.
Naquele dia, eu estava lá. Foi o dia do início do maior ato de amor da história.
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
“Mestre, onde moras? Vinde e vede!” (do Evangelho segundo São João)
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
Esta passagem do Evangelho segundo São João apresenta-nos o encontro de Jesus com aqueles que foram os seus primeiros discípulos. Este encontro acontece no rio Jordão, um dia depois do Batismo de Jesus. Aqueles dois homens, maravilhados com tudo o que tinham presenciado, seguem Jesus e interpelam-no: “Mestre, onde moras?”. Ao que Ele responde, em forma de convite: “Vinde e vede!”. Eles seguem-no e assim começavam o seu caminho para a Terra Prometida.
A pergunta que os discípulos entregam a Jesus é fruto da sua sede, da sua busca, da sua procura. Não é uma questão de curiosidade. Não é também uma questão de lugar físico ou geográfico. É antes um desejo de sentido. Não é um simples pedido de localização, mas um anseio de habitação da alma. Esta questão colocada exprime o desejo de conhecer e compreender quem é verdadeiramente aquele Homem que ama com gestos, que salva com palavras, que anuncia uma eternidade feliz.
Esta questão feita pelos discípulos a Jesus pode ser ampliada para nós e é sobre nós mesmos: “Mestre, onde vives? Onde estão as tuas raízes? O que é te vivifica? Onde está a fonte para bebermos dessa tua água? Onde podemos permanecer enraizados em Ti? Onde nos podemos sentir acolhidos em Ti? Onde habitamos nós? Em que moradas depositamos a nossa esperança? A quem ou a quê nos confiamos?” Deixemos que estas interpelações ecoem em nós como um mantra contínuo e que descubramos que o Mestre mora onde O deixamos morar: dentro de nós.
À pergunta que os discípulos lhe fazem, Jesus, com a sabedoria de quem sabe que a verdade não se explica, mas se experimenta, responde com um convite: “Vinde e vede!”. Não lhes entrega um discurso recheado de aforismos nem tão pouco moralizações abstratas. Oferece-lhes sim um convite à experiência. “Vinde e vede!” implica um deslocamento, uma saída da zona de conforto, uma confiança naquele que nos chama. Muitas vezes, sentimo-nos sozinhos e abandonados porque só procuramos este Deus nos sítios errados. Julgamos que Ele está nas respostas rápidas e imediatas, nas seguranças concretas, nas ações provadas de forma racional e até científica. Pois, a verdade é que dificilmente O encontraremos assim… Deus está no caminho que fazemos, na busca do quotidiano, nesta peregrinação que a vida é e só teremos acesso à sua morada se confiarmos nesse mesmo caminho, se peregrinarmos em confiança, se nos disponibilizarmos ao compromisso. O encontro com Deus não é uma teoria abstrata, mas sim um caminho que se faz. A relação com Deus não parte de mapas prontos, mas de convites aceites na confiança.
Deus chama-nos sempre, Ele quer-nos sempre ao Seu lado. Mas ama-nos de tal modo que até nos dá a liberdade total de rejeitarmos este Seu chamamento. Quando aceitamos este seu convite, assumimos o risco próprio que a fé traz consigo. A fé é, antes de mais, uma resposta, uma ida na direção de Deus. É um desejo de caminhar, de fazer viagem, de navegar tantas vezes por “mares nunca dantes navegados”. De nada nos serviria a fé se não nos permitisse seguir pelo desconhecido. A Fé é um processo que cresce com o risco, abrindo-nos caminho que é a nossa vida toda.
Ao acederem ao convite de Jesus, aqueles dois homens não conheciam o final da sua história. Não sabiam, naquele momento, que iriam viver a mais extraordinária vida com Jesus, cheia de dias desafiantes, de palavras poderosas, de encontros abraçados, de espaços acolhidos. Não sabiam que iriam enfrentar a dor da cruz e, depois, encontrar a luz. E tudo começou com uma simples pergunta…
“Vinde e vede!” encerra o desejo do encontro, o combustível imprescindível para mantermos acesa a vontade de continuar a procurar. É uma chama que se mantém acesa em proporção ao sentido e à grande importância de quem ou do que se busca. Viver é desafiador na medida em que viver é procurar.
Nos tempos atuais, em Igreja, particularmente em contexto paroquial, creio que o mais desafiador é fazer com que os cristãos “venham e vejam”. Numa época em que as sociedades nos impõem que vivamos assoberbados com o trabalho, com o estatuto social, com os bens materiais, com o “show-off” das redes sociais, é, por vezes, difícil aceitarmos o convite para um encontro religioso, para uma experiência espiritual, para uma formação teológica. Mas a experiência também nos diz que depois de aceites e experimentados estes convites, abre-se uma nova realidade na vida das pessoas, encontra-se uma maior disponibilidade de horários e, assim, sem mais reservas, acedemos a uma outra compreensão da vida, de Deus, de nós próprios. Quem decide vir e ver, não fica indiferente: transforma-se. O olhar que vê Jesus já não é o mesmo; é um olhar que atravessa as sombras e se deixa iluminar pela verdade.
“Vinde e vede!” é esse convite a ousar abandonar o comodismo da fé acomodada; é esse chamamento a caminhar de olhos fechados, mas sempre de mãos dadas com Ele; é esse desafio à transformação pessoal com a única certeza da oferta uma Eternidade feliz. Que eu tenha a disponibilidade de me colocar sempre esta pergunta: “Mestre, onde moras?” e a vontade de encontrar a resposta. Que os meus pés sigam sempre nesta estrada, que os meus olhos vejam sempre esta claridade, que o meu coração deseje sempre ir ao encontro daquele que me ama.
Iniciamos o tempo da Quaresma. Um tempo favorável para a desaceleração, para a escuta interior, para o autoconhecimento. Um tempo privilegiado para me perguntar quem sou neste corpo que me habita e quem quero ser neste ser que me é dado ser.
A Quaresma é um tempo que se faz presença em mim e onde eu escolho morar. Este caminho de preparação não se esgota numa tradição litúrgica, mas é antes uma experiência espiritual profunda, um convite à conversão, à reflexão e à renovação interior.
A cada ano, a Quaresma habita-nos como uma oportunidade de recomeço. É um deserto que se abre diante de mim. Mas este deserto não é vazio; ele é um espaço onde sou chamada a confrontar as minhas sombras, a reconhecer as minhas fragilidades e a abrir-me à graça divina. Aqui, cada silêncio fala, cada renúncia purifica, cada gesto de amor me aproxima de Deus e do próximo.
A espiritualidade quaresmal não é um exercício de tristeza ou privação sem sentido, mas um processo de esvaziamento para que algo novo possa florescer nesse espaço. Ao jejuar, não apenas abro mão de algo material, mas aprendo a libertar-me daquilo que me afasta do essencial. Na caridade, descubro que a verdadeira riqueza está no dar, no partilhar, no acolher. Na oração, encontro o refúgio onde a minha alma descansa e se fortalece.
Este tempo que me habita ensina-me a viver com mais consciência e autenticidade. Convida-me a estar atenta os sinais da presença de Deus no quotidiano. Ao longo deste caminho, percebo que tudo o que me é dado viver são oportunidades de crescimento abraçadas pelo Amor de Deus. Cada desafio vivido com fé transforma-se numa porta aberta para a graça. Por isso, preciso deixar que a Quaresma aconteça em mim, dando espaço à dor trabalhada, ao perdão que me abre ao futuro, à fragilidade reconstruída em força.
Quaresma. Quarenta dias que me atravessam, que se inscrevem na minha vida e me convidam a ser caminho. Quaresma. Quarenta dias que me habitam, que me constroem e que me preparam para chegar ao Dia Maior.
Percorram connosco a nossa Estrada Quaresmal deste ano, um tempo de oportunidade, de recomeços e de vida interior. A oração não mede a minha relação com Deus, mas é a minha relação com Deus. Que este tempo quaresmal seja propício para fazermos a descoberta desta relação única que cada um de nós tem com Deus através da meditação, da música e do silêncio.
✨✨✨✨✨✨✨✨
“Entra no teu quarto. Entra dentro de ti, no teu coração. Entra no teu quarto.
Toma consciência da tua vida, da qualidade da tua vida. Da qualidade espiritual, da qualidade de amor, da qualidade de generosidade, da qualidade ou não de misericórdia que tu vives.
Entra no teu quarto. Escuta o teu coração e entra. Entra com esperança para olhares o Pai, para descobrires o Pai que te ama e que te estende a mão.
Entra no teu quarto e descobre, redescobre que Deus é teu Pai e que Deus é uma presença de amor. Ele assiste ao nosso parto, Ele assiste à reinvenção de nós mesmos, Ele assiste à transformação da nossa vida.
Celebrar o tempo da Quaresma é esperar a primavera que não está longe. Há a primavera que as árvores vão mostrando, mas há sobretudo uma primavera interior, um rejuvenescimento da alma, uma juventude de coração que cada um de nós pode ganhar.”
“É este o tempo favorável, é este o dia da salvação.” (da Carta aos Coríntios)
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
Vivemos um tempo marcado paradoxalmente pela pressa e pelo adiamento. Corremos desenfreados de um lado para o outro, cumprindo as tarefas diárias, mas, tantas vezes do mesmo modo apressado, adiamos projetos ou decisões, relevando-as para um plano secundário, como se dispuséssemos de todo o tempo futuro para os concretizar. Julgamos sempre que haverá uma altura melhor, uma ocasião mais propícia, um tempo mais adequado. E vamos adiando, à espera das conjunturas mais favoráveis e até do alinhamento dos astros… E, outras tantas vezes, essa oportunidade perde-se porque nós não somos donos do tempo…
São Paulo, na sua carta aos Coríntios, exorta-nos com esta certeza inabalável: “É este o tempo favorável, é este o dia da salvação.” Esta afirmação é um convite à consciência do presente, à ação de Deus no momento presente, no agora que é o tempo que me pertence. Deus age no agora. Muitas vezes, olhamos para o passado com saudade ou arrependimento, lamentando os erros cometidos ou sonhando com tempos que parecem ter sido melhores. Outras vezes, projetamos tudo para o futuro: “um dia vou ter mais tempo para estar com os meus amigos”, “quando tiver mais disponibilidade, vou fazer voluntariado”, “quando a minha vida estiver mais tranquila, vou dedicar-me à minha comunidade”, “quando sentir que estou pronto, vou comprometer-me mais”. Mas estas palavras de São Paulo rasgam estes mesmos adiamentos e colocam-nos diante de uma verdade fundamental: o momento certo é este no qual eu vivo.
Há duas palavras gregas para “tempo”: “chronos” e “kairós”. “Chronos” refere-se ao tempo cronológico, aquele que medimos com o relógio e com o calendário. Já “kairós” é o tempo oportuno, o tempo da graça, o tempo de Deus. Quando São Paulo nos diz que “este é o tempo favorável”, ele fala-nos do “kairós”. Não se trata de um tempo qualquer, mas do tempo que Deus nos concede para que algo novo aconteça. E esse tempo “perfeito” é o tempo do agora com as suas circunstâncias e imperfeições. Deus prepara-nos, com o seu Amor, este tempo, este presente que nos é dado. E porque é um presente, só pode ser bom. E porque vem de Deus, só pode ser uma graça. Mesmo quando passamos por dificuldades, mesmo quando as circunstâncias parecem adversas, Deus pode fazer deste tempo um tempo favorável porque nos permite compreender a sua presença em nós.
E Deus fala-nos, neste nosso presente, de diversas formas: numa inspiração no coração, num encontro inesperado, numa dificuldade que nos ensina, numa Palavra que ouvimos. Mas, se estivermos distraídos ou sempre à espera de um “tempo melhor”, corremos o risco de perder a oportunidade de viver este presente que Deus nos quer ofertar. Por isso, a salvação não é algo distante, mas uma realidade que se inicia no hoje da nossa vida. Se precisamos de renovar o nosso interior, o momento de mudar é agora. Se precisamos de um compromisso mais forte, o momento de assumi-lo é agora. Deus está presente no agora, e é aqui que Ele quer encontrar-nos e cobrir-nos com o seu Amor.
Isso não significa que não devemos planear o futuro, mas sim que não devemos deixar de viver o hoje na plenitude da graça de Deus, na certeza da confiança de quem nos ama. Deus não nos pede que esperemos por um amanhã incerto, mas que vivamos com intensidade a Sua graça no presente. Ele está no presente, chamando-nos neste exato instante a uma vida renovada. Este “tempo favorável” também não significa que tudo será fácil ou perfeito, mas que acreditamos que Deus age nas nossas vidas no momento presente, independentemente das circunstâncias.
Muitas vezes, esperamos um momento ideal para agir, para transformar a nossa vida. Mas a verdade é que o tempo favorável não é quando as condições parecem perfeitas, mas sim o agora, com todas as suas dificuldades e desafios. Deus chama-nos a agir no presente, mesmo diante da incerteza. Deus convida-nos a viver plenamente o hoje, sem adiamentos.
O tempo favorável. A história do meu presente diário. A minha resposta diária ao amor de Deus por mim. Como estou a viver este meu agora? Tenho consciência da oportunidade que cada dia me traz de amar mais, de acolher mais, de ser mais? Será que estou sempre à espera de condições ideais para me comprometer mais? Será que estou a adiar mudanças que sei que preciso fazer? Será que estou realmente a aproveitar este tempo como um tempo de graça? Escutemos o que São Paulo nos diz: o tempo favorável é hoje; o dia da salvação é agora. O tempo presente é um ato de entrega e de confiança. Significa estar verdadeiramente onde estamos, sem distrações desnecessárias, praticando a atenção plena. Significa escutar com atenção, falar com verdade, amar sem reservas. Que possamos, então, abraçar o presente como o presente que é. Que saibamos saborear cada momento como uma bênção, uma nova oportunidade de sermos, simplesmente, felizes.