Arquivo mensal: Maio 2015

o erro e as suas consequências

(…) a história contada pela Bíblia poderia ser lida como a história da luta que recomeça a cada instante, na qual Deus se compromete ao lado daqueles e daquelas que recusam esta lógica de morte. Se ao longo do Antigo Testamento nem sempre é evidente esta presença de Deus ao lado, o fim do Apocalipse declara-o claramente: em Jesus, Deus mostra que Ele mantém aberto o acesso àarvore da vida para todo aquele que, seguindo o exemplo de Jesus, quer deixar a lógica da cobiça, do açambarcamento e da concorrência. (Ap 22, 1-2)

No relato, a queda está no comer do fruto. que melhor imagem da cobiça poderíamos encontrar do que a do comer? O que é comer? É tomar qualquer coisa, destruí-la para a assimilar a si, fazê-la sua. É este precisamente o movimento da cobiça ou da vontade que consiste em açambarcar, monopolizar. E a melhor maneira de açambarcar somente para si o que não se quer partilhar é a destruição. De outra forma, o risco de que outro se aposse estará sempre presente. Assim, a maneira de relatar a falta, a queda, designa-a como o resultado da cobiça e da inveja.

A cobiça e inveja aparecem assim, segundo a mensagem do Génesis, na raiz do mal e da violência. E o seu processo no ser humano é descrito com minúcia. A cobiça fixa o olhar sobre os limites humanos e faz esquecer que a sua vida também é um dom maravilhoso. Os limites em vez de serem vistos como lugar de possível realização com o outro, aparece como um mal, uma frustação que impede de viver e de ser feliz. A vida torna-se má; chega a considerar-se o bem como o mal e o mal como bem (a mentira) e a acusar os outros de desejarem a minha infelicidade e a minha morte simplesmente porque eles têm o que eu gostaria de ter ou porque eles podem levar-me o que eu tenho. Nestas condições, não há mais nenhuma razão para respeitar os limites nem os rivais que gostariam de ditar as suas leis. Assim, pego e como… e destruo, pela violência, as relações que me faziam viver. Se o relato do Génesis mostra deste modo o caminho da cobiça e da inveja no ser humano, é para advertir que tudo se joga à volta da forma como se usa o dom que se recebe – e o dom essencial é a vida. Põe em evidência, numa história-tipo a armadilha que nos estende a não aceitação dos nossos limites e mostra como o seu caminho é uma lenta deriva para a violência e a morte. Com efeito, poder detetar e desmontar um tal processo, de alguma forma, é sinal de que o podemos dominar senão mesmo eliminar.

André Wenin, Actualité des mythes. Relire les récits mythiques de Genése 1-11, Centre de formation Cardjin, Louvain-la-Neuve, 1993, 19-39.

Pierre Gisel, Lucie Kaennel, La création du monde. Discours religieux, discours scientifiques, discours de foi, Labor et Fides, 1999, 17-31

O Cristianismo está a morrer?

José Tolentino Mendonça, Expresso

Um artigo de Guido Ceronetti nas páginas do “La Repubblica” reacendeu a questão, pelo menos entre alguma intelligentzia católica: “O cristianismo está a morrer?” Ceronetti não tem dúvidas e vê os seus sinais por toda a parte, mesmo se a “anestesia total” e mque vivemos nos traga alheados do alcance desta “enorme amputação”. Segundo ele, não está longe o dia em que se verifique na Praça de São Pedro o que Ingmar Bergman filmou em “Luz de Inverno”, onde o pastor Ericsson aparece a celebrar missa numa capela completamente esvaziada de fiéis. O cenário, o rito, o oficiante estarão, como ali, presentes: as multidões é que já não.

Qual o motivo? Guido Ceronetti não hesita em relembrar um sibilino aforisma de Emil Cioran: “O cristianismo morreu quando deixou de ser monstruoso.” Que o cristianismo tenha perdido a sua monstruosidade é, para Ceronetti, um facto de certa maneira inevitável, pois todos os monoteísmos caminham para a sua falência (e ele aproveita a oportunidade para prever, por exemplo, depois da morte do cristianismo, a agonia próxima do Islão). A questão não é, portanto, essa, mas sim o que a tornou tão premente nos tempos que correm. O que é que acelerou a morte do cristianismo? E a resposta que ele dá, sendo extraordinariamente sedutora para os que cultivam a religião como a guloseima requintada que acompanha o chá, e da qual Marcel Proust falava com a maestria que sabemos, não deixa de ser de um simplismo inusitado em termos de leitura da realidade. Para ele, o catolicismo deixou de ser monstruoso (leia-se, impressivo, loquaz, divino) quando os papas colocaram de lado os tronos gestatórios e a retórica visual do poder; quando as liturgias adotaram os vernáculos; quando, com o Concílio Caticano II, prevaleceu uma visão pastoral e dialogante da relação de Igreja com o mundo; ou, mais recentemente, quando o papa Bento XVI decidiu resignar.

É curioso constatar que, para os profetas da morte do cristianismo, este seja no fundo uma realidade medieval, inseparável do poder do Estado e, inclusive, dominando-o, constituindo o padrão único de conduta e de aspirações de uma sociedade tendencialmente homogénea, e capaz de impor-se a toda a linha: individual e coletiva, cultual e cultural, ética ou estética. Esquecem-se que o cristianismo nasceu de uma dúzia de discípulos hesitantes à volta de um pregador perseguido; que a relação com as multidões e com os aparelhos do poder foi tudo menos linear e pacífica; e que a primeira, e mais estrondosa, catedral cristã foi (e continua a ser) a memória de um sepulcro vazio, no meio de um jardim. O debate a fazer em torno do cristianismo não é certamente o da sua agonia, mas o da recomposição em que ele hoje vive. É precisamente por estar vivo que o cristianismo se reconfigura, desloca os seus âmbitos, procura e tansmite outra perceção de si. O estremecimento inegável que atinge a esfera do religioso explica-se não tanto pela expressão de Ceronetti, “monoteísmos em agonia” quanto por aquela outra, proposta pela socióloga Danièle Hervieu-Léger, a de “religiões em movimento”.

Pois, o que será o cristianismo do futuro? O teólogo Karl Rahner escreveu, como uma espécie de testamento, três coisas que fazem pensar: 1) o cristianismo voltará a ser formado por pequenas comunidades, mas vivendo com maior entusiasmo e simplicidade a sua fé; 2) a adesão à crença não acontecerá por pressão sociológica, mas por um caminho pessoal, livre, maturado e esclarecido; 3) o cristianismo perderá relevância politica e estratégica, mas reganhará espaço para afirmar o santo poder do coração.

Pentecostes

DSC_4652 (1024x681)Evangelho de São João 20, 19-23

Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
onde os discípulos se encontravam,
com medo dos judeus,
veio Jesus, colocou Se no meio deles e disse lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou,
também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes serão retidos».