finalmente o mosteiro está em obras de restauro
Arquivo mensal: Junho 2015
our flowers from the balcony
um grão
Ermes Ronchi in “Avvenire”
Evangelho do 11.º Domingo do Tempo Comum | Marcos 4, 26-34
Naquele tempo, disse Jesus à multidão: «O reino de Deus é como um homem que lançou a semente à terra. Dorme e levanta-se, noite e dia, enquanto a semente germina e cresce, sem ele saber como. A terra produz por si, primeiro a planta, depois a espiga, por fim o trigo maduro na espiga. E quando o trigo o permite, logo se mete a foice, porque já chegou o tempo da colheita».
Jesus dizia ainda: «A que havemos de comparar o reino de Deus? Em que parábola o havemos de apresentar? É como um grão de mostarda, que, ao ser semeado na terra, é a menor de todas as sementes que há sobre a terra; mas, depois de semeado, começa a crescer e torna-se a maior de todas as plantas da horta, estendendo de tal forma os seus ramos que as aves do céu podem abrigar-se à sua sombra».
Assim é o Reino de Deus: como um homem que lança a semente à terra. O infinito de Deus contado por uma minúscula semente, o futuro na frescura de um grão de mostarda. Acontece no Reino de Deus como quando um homem semeia. O Reino acontece porque Deus é o semeador incansável, que não se cansa de nós, que a cada dia sai a enxertar no universo as suas energias de maneira seminal, germinal, como um novo jardim do Éden que a nós pertence guardar e cultivar. E nenhum homem ou mulher é privado dos seus germens de vida, ninguém fica demasiado longe da sua mão.
A dormir ou acordado, de noite ou de dia, a semente germina e cresce. Jesus sublinha um milagre infinito que nunca nos deixa de espantar: à noite vês um botão, no dia seguinte abriu-se uma flor. Sem nenhuma intervenção externa. Aqui mergulha a raiz da grande confiança de quem crê: as coisas de Deus, a inteira criação, o bem, crescem e florescem através de uma misteriosa força interior, que é de Deus. Não obstante as nossas resistências e distrações, no mundo e no coração a semente de Deus germina e ergue-se para a luz.
A segunda parábola mostra a desproporção entre o grão de mostarda, a mais pequena de todas as sementes, e a grande árvore que dela nascerá. Sem voos grandiloquentes: o grão não salvará o mundo. Nós não salvaremos o mundo. Mas, diz Jesus, os pássaros virão e nela farão ninho. Muitos acorrerão à sombra da tua grande árvore, à sombra da tua vida virão para recuperar o fôlego, encontrar alívio, fazer o ninho: imagem da vida que reparte e vence. «Se ajudaste um só a ficar um pouco melhor, a tua vida realizou-se» (papa Francisco).
A parábola do grão de mostarda narra a preferência de Deus pelos meios pobres; diz que o seu Reino cresce pela misteriosa força secreta das coisas boas, pela energia própria da beleza, da ternura, da verdade, da bondade. Enquanto o inimigo semeia morte, nós, como lavradores pacientes e inteligentes, semeamos a boa semente; nós, como campo de Deus, continuamos a acolher e a proteger as sementes do Espírito, não obstante a raiva de todos os Herodes dentro e fora de nós.
Uma semente deposta pelo vento nas fendas de uma muralha é capaz de viver; é capaz, com a fragilíssima ponta do seu gérmen, de abrir uma estrada na dureza do asfalto. Jesus sabe que imergiu no mundo uma semente de bondade divina que, com a sua ação doce e implacável, despedaçará a crosta árida de todos os tempos, para lhe trazer de novo a aragem da primavera, da vida florida, de colheita.
Toda a nossa confiança reside nisto: Deus trabalha no seio da história e em mim, no silêncio e com pequeninas coisas.
Somos analfabetos do silêncio
José Tolentino Mendonça na E do Expresso
Ao que parece, durante anos, o compositor John Cage sondou a possibilidade de elaborar uma obra completamente silenciosa, mas impedia-o duas coisas: a dúvida se uma tarefa assim não estaria, desde logo, votada ao fracasso, porque tudo é som; e a convicção de que uma composição tal seria incompreensível no espaço mental da cultura do Ocidente. Contudo, encorajado pelas experiências que se realizavam já nas artes visuais, construiu a sua peça intitulada 4’33’’. A proposta de Cage era completamente insólita: os músicos deviam subir ao palco, saudar o público, sentar-se ao instrumento e permanecer, em silêncio, por quatro minutos e trinta e três segundos, até que, de novo, se levantassem, agradecessem à plateia e saíssem. Na assistência instalou-se a polémica e choveram as vaias. Mas ao longo de toda a sua vida, John Cage referiu-se a essa peça com sentida reverência: “A minha peça mais importante é essa silenciosa; não passa um só dia que não me sirva dela para a minha vida e para tudo o que faço. Recordo-a sempre que tenho de escrever uma nova peça. Quando penso no contributo que a experiência poética ou religiosa possa dar num futuro próximo à humanidade, penso francamente que mais até do que a palavra será a partilha desse património imenso que é o silêncio. Na palavra fazemos a experiência da diferenciação, experiência certamente fundante, mas também ela parcial e insuficiente. Precisamos do auxí¬lio de outra ciência, a que recorremos pouco: o silêncio. Isaac de Nínive, lá pelos finais do século VII, ensinava: “A palavra é o órgão do mundo presente. O silêncio é o mistério do mundo que está a chegar”. Creio que é absolutamente urgente revisitarmos com outro apreço os territórios dos nossos silêncios e fazermos deles lugares de troca, de diálogos, de encontros. O silêncio é um instrumento de construção, é uma lente, uma alavanca. As nossas sociedades investem tanto na construção de competências na ordem da palavra (e pensemos como a escolarização está ao serviço da capacitação dos indiví¬duos em ordem a um funcionamento eficaz com a palavra) e tão pouco nas competências que operam com o silêncio. Somos analfabetos do silêncio e esse é um dos motivos porque não sabemos viver na paz. O silêncio é um traço de união mais frequente do que se imagina, e mais fecundo do que se julga. O silêncio tem tudo para se tornar um saber partilhado sobre o essencial, sobre o que nos une, sobre o que pode alicerçar, para cada um enquanto indiví¬duo e para todos enquanto comunidade, os modos possí¬veis de nos reinventarmos. Mas para isso precisamos de uma iniciação ao silêncio, que é o mesmo que dizer uma iniciação à arte de escutar. Na sociedade da comunicação há um défice de escuta. Numa cultura de avalanche como a nossa, a verdadeira escuta só pode configurar-se como uma re-significação do silêncio, um recuo crí¬tico perante o frenesim das palavras e das mensagens que a todo o minuto pretendem aprisionar-nos. A arte da escuta é, por isso, um exercí¬cio de resistência. Ela estabelece uma descontinuidade em relação ao real aparente, à sucessão ociosa do discurso, à enxurrada que a telenovelização do quotidiano (seja ele polí¬tico, económico ou cultural) comporta. A escuta constitui uma cesura, um corte simbólico, uma deslocação. Pense-se em como o silêncio dá a ver o património de uma amizade. E a pergunta é: como percebemos que dois desconhecidos são amigos? Pela forma como conversam? Certamente. Pelo modo como se riem? Claro que sim. Mas ainda mais porque nitidamente acolhem o silêncio um do outro. Entre conhecidos o silêncio é um embaraço, sentimos imediatamente a necessidade de fazer conversa, de ocupar o espaço em branco da comunicação. Com os amigos o silêncio nada tem de embaraçoso. O silêncio é um vínculo que une.
Communauté Saint Jean
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os benefícios do cansaço
José Tolentino Mendonça na E do Expresso
(…) Esta nova forma de existência coloca-nos perante um animal laborans que é constrangido a explorar-se a si mesmo, mesmo quando não tem uma evidente constrição externa, tornando-se ao mesmo tempo vítima e carcereiro, explorado e explorador. O que o faz sofrer não é, por isso, que alguma coisa não seja possível de obter ou alcançar, mas que ele não seja capaz de abraçar, a toda a linha, o regime epocal novo que garante que nada é impossível. Como consequência, as patologias da sociedade de prestadores já não são do tipo bactérico ou viral, mas de tipo neuronal. Passou-se a viver num estado depressivo latente gerado, em grande medida, por esta sensação difusa de não estar a responder a tudo, a participar em tudo, a usufruir de todas as possibilidades acenadas. A depressão, o défice de atenção, a hiperatividade, o burnout, os distúrbios boderline de personalidade estão alinhados com este excesso de positividade em que infatigavelmente mergulhamos. Uma via de saída é, mais do que nunca, reaprender a fazer um bom uso do cansaço. vivemos um tempo que ignora o valor da interrupção, da pausa, do espaço intermédio ou do intervalo. (…)
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morre-se depressa demais
Consumimos as alegrias e os desgostos à velocidade da luz. Depois perguntamo-nos de onde vem a ansiedade e a depressão.
Vivemos tão depressa que damos por nós a entrar num centro comercial e a não saber em que estação do ano estamos. Com os saldos de Verão a começarem antes do Verão vir sequer marcado no calendário, ficamos com a ideia de que já não vale a pena comprar um fato-de-banho porque o Outono está mesmo a chegar. Confusos, rebuscamos na memória os dias longos de praia, os jantares na varanda, as férias, e concluímos que o nosso cérebro se desgastou de tanto uso, porque as recordações que temos parecem antigas e, no entanto, a avaliar pela colecção Outono/Inverno que enche as páginas das revistas, só pode ter sido ontem.
Não entendíamos quando, em pequenos, nos diziam que o Natal não demorava nada e os dias rolavam penosamente, ou que tarda nada fazíamos anos, e o “tarda nada” era mesmo tarde e parecia-nos nunca mais chegar. Mas, agora, percebemos que o tempo voa, tudo passa a correr, o que é tanto mais idiota quanto era exactamente agora que devia andar a passinhos de bebé (lembram-se do jogo?), porque a recta final está progressivamente mais próxima.
Olhamos para o calendário e não percebemos o que fizemos aos dias que voaram, mas se olharmos mais de perto as nossas agendas, percebemos que estiveram cheios de acontecimentos, que se atropelaram uns aos outros, sem nos deixar um segundo para respirar.
Andamos cansados, muito cansados, sobretudos aqueles que têm filhos pequenos, e dentre esses, à cabeça de todos, lá estão as mulheres que acumulam profissão e a casa/família. Nem a invenção das férias pagas, que nem meio século tem, nos veio descansar, porque rapidamente enchemos também aqueles dias com mil “compromissos” obrigatórios.
O mal não é que as 24 quatro horas do dia tenham encolhido, mas simplesmente que a nossa omnipotência nos deixe com a ilusão de que conseguimos encher o espaço de um dia com tantas e tantas coisas, como se conseguíssemos estar em muitos lados em simultâneo.
Contudo, o que mais me aflige é o facto de vivermos os acontecimentos profundamente marcantes num toca-e-foge que não nos deixa reflectir sobre eles, senti-los em profun-didade, gozá-los ou lamentá-los, resolvê-los e superá-los, em lugar de os varrer para debaixo do tapete. E obrigamos os outros também a varrer, na nossa intolerância para com a dor que não passa rapidamente, para com o desgosto que se mantém, para com aqueles que se continuam a queixar da mesma coisa, num tempo em que mesmo a maior tragédia é ultrapassada por aquela que vem a seguir.
Depois queixamo-nos da tristeza que não sabemos de onde vem, da ansiedade que nos toma inesperadamente e, claro, da depressão que se instala, jurando nós que não temos motivos nenhuns para a sentir.
Basta olhar para a pressa com que gerimos a morte. Homens e mulheres extraordinários parecem desaparecer da face da terra, e da memória, num abrir e fechar de olhos. E por muito que os tenhamos admirado, por muito que nos façam falta, continuamos em frente, não por mal, mas porque somos empurrados pela voracidade dos dias, pelos compromissos e obrigações, porque não podemos deixar cair tudo o que de nós depende. Sem lhes erguermos a estátua que merecem, sem que o seu nome fique sequer gravado numa lápide, que fique para lá da sua vida, da nossa vida, da vida dos nossos filhos, para que um dia, alguém a possa ler e perguntar: “Quem foi este?” Decididamente, não gosto de cremações. Decididamente, quero viver mais devagar.