Arquivo mensal: Outubro 2015

A tua fé te salvou

XXX domingo do Tempo Comum, ano B, Mc 10,46-52

reflexão sobre o Evangelho por ENZO BIANCHI, Bose

Naquele tempo, quando Jesus ia a sair de Jericó 
com os discípulos e uma grande multidão, estava um cego, chamado Bartimeu, filho de Timeu, a pedir esmola à beira do caminho. 
Ao ouvir dizer que era Jesus de Nazaré que passava, começou a gritar: «Jesus, Filho de David, tem piedade de mim». Muitos repreendiam-no para que se calasse. Mas ele gritava cada vez mais: «Filho de David, tem piedade de mim». 
Jesus parou e disse: «Chamai-O». 
Chamaram então o cego e disseram-lhe: «Coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar-te». O cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus. Jesus perguntou-lhe: «Que queres que Eu te faça?» O cego respondeu-Lhe: «Mestre, que eu veja». Jesus disse-lhe: «Vai: a tua fé te salvou». Logo ele recuperou a vista e seguiu Jesus pelo caminho.

Com o trecho que lemos este domingo, o Evangelho de S. Marcos conclui a narração da subida de Jesus a Jerusalém, ou seja, o itinerário do discípulo durante o qual Jesus foi dando ensinamentos, formou aqueles que O seguiam consciente de que, chegados a Jerusalém, seria o “fim do Profeta” com a sua condenação à morte. Logo depois Jesus entrará na Cidade Santa, acolhido em festa e aclamado como Filho de David, isto é, como Messias, acontecimento de certa forma aqui antecipado.

Estamos em Jericó, a porta da Judeia, a Oriente. Enquanto, não só os discípulos mas muitos outros seguem Jesus, um cego que dá pelo nome de Bar-Timeo (filho de Timeo), um homem à margem, confinado a mendigar na beira da estrada, um “desperdício” de que ninguém se ocupa, ouve dizer que Jesus de Nazaré vai passar. Sendo cego, não O tinha nunca visto nem encontrado, mas a fama deste Rabino Galileu tinha-o atingido. No seu coração existia o desejo de ver, a esperança de ter visão para poder sair da noite. Ouvindo que Jesus está a passar começa a gritar: “Filho de David, Jesus, tem piedade de mim!”. Neste grito há muita espontaneidade, há a sua fé judaica no Messias que há-de vir, há a esperança de uma cura, da salvação, há a força do grito e de se fazer ouvir, na convicção pessoal de que aquele Rabino possa fazer algo, portanto, que Ele é capaz de curar e de amar quem encontra.

Mas, então como agora, entre Jesus e os que estão à sua volta estão muitos outros: aqui é a multidão, noutros casos são os próprios discípulos, isto é a comunidade que se torna obstáculo, barreira entre Jesus e quem O deseja encontrar. Atenção, isto acontece também por boas intenções: medo de perturbar o Mestre, vontade de O proteger das multidões… Bartimeu, no entanto, não desiste, grita cada vez com mais força e assim Jesus consegue ouvi-lo. Este pára e manda chamá-lo. Isto acontece pontualmente com palavras que muitas vezes os discípulos de Jesus tinham ouvido durante os seus encontros com quem se encontrava em sofrimento ou em pecado: “Coragem, levanta-te!”. No convite expresso com “Coragem!” está o coração de Jesus que diz, antes de mais: “Coragem, não temas, tem fé!”. É este o primeiro comportamento necessário no encontro com Jesus: é preciso sair do medo, da desconfiança, da falta de esperança, da visão de si mesmo como não digno de ser por Ele amado. Neste momento é preciso levantar-se – verbo egheíro, que exprime também o renascer – da cama para a postura do homem que tem esperança (homo spe erectus). Uma vez em pé pode-se escutar e compreender que o Senhor chama cada um de nós de forma pessoalíssima e cheia de afeto (“Chama-te”).

Aquele cego, então, “atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus“. É um pobre que não tem nada senão a sua capa, sinal da sua identidade de excluído, a sua única e inalienável propriedade. Atirando-a, despoja-se de todas as seguranças, apesar de mínimas, para estar de pé, diante de Jesus. Jesus não presume a necessidade pela qual O invocou, não se dirige a ele de forma automática e anónima, mas porque percebe das suas palavras a necessidade que nele habita, pergunta-lhe: “Que queres que Eu te faça?”. E Bartimeu responde: “Mestre, que eu veja!”. A oração é desejo expresso diante de Jesus e Bartimeu deseja ver, muito para lá da simples visão dos olhos: quer ver também com o coração, quer ver na fé, quer estar na luz e não nas trevas…

Diante desta oração Jesus replica: “Vai, a tua fé te salvou”, palavras que Ele repetiu muitas vezes diante de quem lhe pedia a salvação. Vai’”, isto é “não estejas mais paralisado pela cegueira, põe-te a caminho, caminha na luz porque a tua fé, isto é, a tua fidelidade na procura, no pedir a este desconhecido que Eu sou”, diz Jesus, “salvou-te”. Extraordinário, Jesus não diz: “Eu salvei-te”, mas: “A tua fé te salvou”. Esta cura de Bartimeu não é apenas física mas é salvação que o investe na íntegra. Com efeito, ele de imediato “seguiu Jesus pelo caminho”. Põe-se a seguir as suas pegadas como os discípulos, que vão atrás d’Ele. Aquele que era cego, à beira da estrada, mendigo, depois de ter encontrado Jesus, é capaz de O seguir como um discípulo, para Jerusalém. Mais, o grito que dirigiu a Jesus – “Filho de David!” – logo depois é assumido pela multidão, enquanto Jesus entra na Cidade Santa: “Bendito o Reino do nosso pai David que está a chegar!”. Pode dizer-se que foi este cego quem entoou, antes de todos, os gritos de Glória dos desafios de Jesus…

Este episódio é muito mais do que um simples conto de um milagre, como o leitor de Marcos pode compreender. Jesus está prestes a entrar na Cidade Santa para a sua Paixão e Morte mas os seus doze discípulos durante todo aquele caminho permaneceram cegos. Escutavam as suas palavras mas não as compreendiam, mostrando estar bem longe de ver os acontecimentos tal como Jesus os via. Primeiro Pedro, depois todos os doze, por fim Tiago e João pareceram cegos diante de cada revelação que Jesus lhes fez. Mas agora, cada leitor, cada um de nós, pode identificar-se  com este cego de Jericó. Deve apenas ter consciência da sua cegueira e gritar ao Senhor, com fé: “Tem piedade de mim!” que Ele pode salvar, isto é, pode resgatar-nos das trevas e fazer-nos ver aquilo que os nossos olhos não conseguem ver. Sim, neste pôr-se a caminho atrás de Jesus, Bartimeu é para nós mais exemplar do que os doze. E agora? cada um de nós coloque-se diante do Senhor Jesus e, olhando-o com fé e esperança descobrirá que não vê. Então que tenha força e coragem para gritar sozinho: Senhor tem piedade de mim, “Kýrie eleison”, esta invocação tão breve mas tão completa que lhe é dirigida, com muita fé, porque Ele pode salvar-nos.

O sopro que nos faz ser

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo de Pentecostes, 24 maio 2015

(…) A palavra “espírito”, que o grego traduz por “anemos “, que quer dizer ânimo, como nós utilizamos, mas que quer dizer “vento, sopro”, no hebraico diz-se “néfes”, e néfes é a vida. E o que é a vida? A vida é este sopro vital sem o qual nós não podemos viver. Ora, o sopro vital não é apenas o oxigénio de que nós precisamos para existir neste instante. O sopro vital é este Sopro de Deus de que cada um de nós é objeto para poder ser e ser plenitude. DSC_4650 (1024x681)E, por isso, é tão importante tomar consciência da presença do Espírito Santo nas nossas vidas, rezar ao Espírito Santo, pedir que Ele venha, pedir que Ele nos ilumine, pedir a Sua interceção, pedir que Ele permaneça connosco, pedir que Ele nos encha de todos os Seus dons. Porque o Espírito é uno e é múltiplo. O Espírito é fantasioso, é criativo. O Espírito, sendo apenas um só, Ele está em todos de uma maneira única, de uma forma diferente. Ele distribui os carismas, Ele distribui os talentos, as qualidades, as potencialidades, a originalidade do próprio ser. É o Espírito o defensor ao mesmo tempo da unidade e da originalidade. Cada um de nós é um cristão original no Espírito Santo, e traz para a comunidade um dom que é único. Por isso precisamos tomar consciência e pedir ao Espírito Santo que nos renove, que nos recrie.

DSC_4700 (681x1024)Aquela expressão que muitas vezes usamos do “desalmado”, ou então do “desanimado”, quer dizer isso muitas vezes, que é o modo como nós vivemos: vivemos sem alma, vivemos sem ânimo. Isso é efetivo, é real nas nossas vidas. Ora, o entusiasmo, o Deus que nos faz dançar, que nos faz ser, que nos enche, que nos dá o fulgor, a intensidade, que nos faz brilhar, é o Espírito. É o Espírito. E, por isso, precisamos acolher o Espírito Santo nas nossas vidas. Uma Igreja conformista, uma Igreja parada, de onde não nasce nada, uma Igreja que vive a satisfazer os mínimos é uma Igreja sem Espírito Santo. É uma Igreja que deixa o Espírito Santo como um estranho, à porta. É o Espírito Santo que acorda em nós a paixão, a vontade, a criatividade para exprimir em novas linguagens, em novas gramáticas o coração da nossa fé.

Em Itália há um mosteiro, o mosteiro de Bose (já tenho falado dele de vez em quando), que é uma comunidade monástica jovem. Eles têm uma parede da qual eu me lembro muitas vezes. Numa parede têm o que eles chamam os nossos pneumatóforos. Pneumatóforo quer dizer condutor do Espírito Santo, aqueles que nos trouxeram o Espírito. Então, os pneumatóforos são os visitantes proféticos que passaram pela comunidade como hóspedes e a desafiaram, a inspiraram a ser.DSC_4626 (1024x681) De facto, nós precisamos de nos inspirarmos uns aos outros. Precisamos de ser luz, de desafiar. Quantas vezes nós achamos que ser cristãos é ser condescendentes uns com os outros. É dar palmadinhas nas costas e dizer: “Deixa lá. Afinal, podia ser pior.” Claro que podia ser pior, mas também podia ser muito melhor. Nesse sentido, há um dever de inspirar a vida uns dos outros, de sermos pneumatóforos, de levarmos o Espírito, de abrir horizontes, de apontar estrelas, de levantar os olhos mais longe, de dizer: “Tu és capaz. Tu consegues, no Espírito Santo.” E é assim que nós, irmãos, acordamos e percebemos que o Pentecostes não foi um acontecimento do passado, mas é um acontecimento de presente.

Nós precisamos do Espírito Santo, precisamos que Ele venha, precisamos de contagiarmo-nos uns aos outros com o fogo do Espírito Santo. E se encontramos um irmão/uma irmã mais desanimada, mais cansada, o que nós temos a fazer é de lhe passar o Espírito Santo. Na Igreja das origens os cristãos viviam a impor as mãos uns aos outros. DSC_4845 (1024x681)Esse impor as mãos era essa passagem efetiva do Espírito Santo. Ora, com um abraço, com uma palavra, com uma presença, nós também impomos as mãos, nós o que fazemos é passar vida de um coração para o outro.

Queridos irmãos, sejamos bons condutores de vida, desta vida espiritual. Porque sem o Espírito Santo nós somos só o pó, nós somos só a terra, nós somos só o barro, nós somos só isto que se vê daqui, e isto que morre aqui, todos os dias, a todas as horas. É o Espírito que nos torna maiores, é o Espírito que nos projeta. O Espírito Santo é a alavanca da Igreja e é a alavanca da história. O Espírito Santo é o mestre, é o mapa, é o oceano, é a viagem. Por isso, acolhamos o Espírito Santo, neste dia para as nossas vidas, para este momento preciso que cada um de nós está a viver, e que há de ser um momento de traduzir o Espírito Santo de uma forma pessoal e nova nas nossas existências.

Fiel aos Fiéis

Pedro Mexia na E, revista do Expresso

A heresia cristã a que se chamou “novacianismo” deve a designação a Novatus, ou Novaciano, um teólogo do século III que chegou a ser proclamado Papa, numa eleição fraudulenta, depois invalidada. Novatus era um homem brilhante e culto, que tinha lido os estóicos. Pagão ou judeu, não se sabe, converteu-se, e submeteu-se a um exorcismo. Então caiu doente, e baptizaram-no in articulo mortis. Ele, porém, sobreviveu. E tornar-se-ia conhecido como proponente de uma tese radical que se pode formular assim: quem renega a fé não pode regressar, ainda que manifeste arrependimento. Isso aplicava-se até aos cristãos que cometiam apostasia para escapar às perseguições movidas pelos romanos. Para Novatus, um eventual retorno à Igreja desses relapsos dependia de um novo baptismo, de um começar de novo. O novacianismo, doutrina inclemente, acabou condenada pelo Papa e o seu inspirador excomungado.
É curioso que alguns sectores ditos ortodoxos da Igreja Católica contemporânea se comportem quase como seguidores dessa heresia arcaica de há dezoito séculos. Embora tenham deixado cair a exigência de um segundo baptismo, o neo-novacianos mostram-se mais ultras do que Novatus quando sugerem que não é sequer preciso abandonar a fé para ser posto à margem: basta cometer um pecado considerado grave. Pensemos, como exemplo, na controvérsia dos “divorciados recasados”. Trata-se da impossibilidade de os católicos que se divorciaram e que voltaram a casar civilmente terem acesso à comunhão. O matrimónio, tal como a comunhão, é um sacramento, ou seja, um sinal da Graça divina. E Cristo foi explícito quando afirmou “não separe o homem o que Deus uniu”. Argumentam alguns católicos que, sendo o vínculo indissolúvel, então todos aqueles se divorciam e voltam a casar afastam-se de tal modo da vontade divina que não se podem aproximar da comunhão, isto é, da intimidade com Deus. Mas quem se divorciou e se casou outra vez abandonou forçosamente a fé e a boa vontade? Ou debateu-se apenas com um fracasso pessoal e com uma tentativa de recomeço? O cardeal Walter Kasper, num encontro preparatório do sínodo sobre a família, cuja segunda etapa decorre agora no Vaticano, notou que há uma discrepância entre o ideal de família, às vezes irrealista e romântico, e as famílias tal como elas existem. Lembrou Kasper que até no Génesis o alegórico casal Adão e Eva tem desavenças profundas. Muita gente já experimentou, num casamento, a “expulsão do paraíso” e outras decepções, como aconteceu a essas duas personagens. Por isso, o cardeal alemão enfatizou a existência de um “realismo bíblico” matrimonial que não se confunde com um rigorismo insustentável nem com um laxismo fútil. Kasper defende que a doutrina da indissolubilidade não precisa de ser revogada. À luz do catolicismo, um casamento é indissolúvel perante Deus. Mas os laços humanos são frágeis e muitos casamentos acabam por fiasco relacional, não por colapso ético. Alguns dos católicos que se divorciam, e que tentam de novo, continuam empenhados numa vida cristã. E têm esperança de que não ficarão excluídos dos sacramentos quando deles mais precisam. Trata-se, nesta questão como em tantas outras, de não confundir o malogro com a maldade, um eventual pecado com uma condenação definitiva. A misericórdia não dispensa a norma. Mas o legalismo sem misericórdia é um cristianismo equivocado. Da actual assembleia de bispos não se espera uma abdicação, uma rendição ao ar dos tempos. Espera-se tão-só compaixão e sensatez. Espera-se que, parafraseando John Henry Newman, não se fale da fé sem ouvir os fiéis.

Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia

“Our boys”

Clara Ferreira Alves na E, revista do Expresso

(…) A culpa é nossa. A desunião e a incapacidade de atacar enleiam as mulheres em Portugal. Não se trata de sermos discriminadas, trata-se de consentirmos em ser discriminadas e concordarmos com a discriminação. No fundo, achamos que não somos capazes, não seremos capazes, não merecemos ser capazes. Consentimos em desaparecer. Sou contra as quotas e a favor do mérito. Nunca consegui nada com base na DSC_4407 (1024x681) (2)quota e não acredito que as mulheres precisem de quotas. Agustina, Sophia, Maria Barroso e Natália Correia nunca precisaram de quotas. As mulheres precisam de autoconfiança e tempo livre, precisam de uma vida intelectual, que a maternidade, a de pendência financeira e a vida doméstica não autorizam. Em Portugal, tem havido um claro retrocesso em matéria de direitos das mulheres e da participação das mulheres na vida pública. No meio dominado por homens como é a política, o acesso está condicionado e representa-se como uma intimidação. As mulheres têm instintivamente medo da ascensão porque sabem que implica um cortejo de insultos e ofensas físicas e morais propagadas por mulheres que odeiam mulheres e por homens que não respeitam as mulheres. As correntes sociais e os seus entusiastas emocionais respiram este ar venenoso. As mulheres são a maioria da população universitária e minoria no poder político, económico, financeiro e social. E não vejo por aí uma mulher política disposta a mudar o estado das coisas.