Arquivo mensal: Março 2016

As tarefas complicadas

isabel-leal-rsh-2011-230Isabel Leal, psicóloga, CARAS

Vivemos tempos em que os modelos difundidos como sendo aqueles que temos de copiar ou seguir para termos sucesso, vivermos melhor, sermos mais felizes são, ou mais longínquos, ou muito exigentes. Exigem uma juventude que é demasiado rápida, uma beleza que espelha um gasto de produção dispendiosa de muitas maneiras, uma atitude de confiança que não se sabe bem onde adquirir, uma inteligência que não se compra em saldos e, genericamente, estilos de vida que parecem ser cada vez menos compatíveis com a realidade que é a nossa.

Tomamos a parte pelo todo num gosto desmesurado de metonímias e conseguimos chegar ao desconforto e à infelicidade quando damos conta que nos afastamos ponto por ponto, em quase tudo, dos modelos que num dado momento abraçámos como nossos, mesmo que sem grande entusiasmo ou convicção.

Refletindo por gosto, distração ou necessidade existencial sobre os processos que nos influenciam e nos tornam alvos, mais ou menos fáceis, desses e doutros modelos que acabam por nos empurrar em escolhas e decisões quase definitivas, chegamos frequentemente a uma zona de inquietante incredulidade sobre a nossa sanidade mental ou sobre a esperteza de que somos dotados.

Quando percebemos que o que somos e quem somos não nos chega e até nos embaraça e nos refugiamos, vezes sem conta, em papéis que pedimos de empréstimos, em gostos que não são nossos ou em escolhas que visam, sobretudo, granjear reconhecimento de conhecidos que não prezamos especialmente ou de audiências imaginárias que, de facto, sabemos que não temos, está na altura de começar de novo.

Começar, ou recomeçar, não exatamente uma busca de outros modelos que sejam menos frustrantes, mas a reconstrução de sentidos próprios que, infelizmente, não nos ensinaram em casa ou na escola nem nos é facilitada por um mundo rápido e pronto a servir, é uma tarefa complicada.

De qualquer modo, se chegarmos a esse momento de necessidade e conseguirmos articular novas perguntas, tudo o que aprendemos, fizemos e sentimos ajuda-nos a chegar a outras respostas. Pelo menos fica a consolação de não sermos um desperdício.

o céu e o inferno

índiceJosé Tolentino Mendonça  na E, revista do Expresso 5.3.2016

Esta não é uma crónica sobre topografia teológica, embora esse possa ser, como é sabido, um motivo cultural fascinante. Mas interessou-me um outro aspeto: a constatação perturbadora, por nós todos experimentada, de que, na prática, as polaridades representadas pelo céu e pelo inferno não são afinal opostas, como se esperaria. Com algum desconcerto descobrimos, vida fora, que elas são, ao contrário, terrivelmente semelhantes. A forma com que nos aparecem as possibilidades de bem e de mal não são tão diferentes assim. O que as separa, explicava já o célebre rabino Soloviel, é muitas vezes o inaudível som de uma gota de chuva a cair no mar. Apenas isso. De tal modo que os que se quedam por infernos não podem argumentar que não conheceram o céu e os que se aventuram pelos céus não podem pensar que nunca enfrentaram a possibilidade do inverso. Em resumo, a ética da existência não implica talvez que façamos coisas diferentes, mas sim que realizemos as mesmas coisas de maneira diferente. Dou dois exemplos, culturalmente distintos, mas suficientemente incisivos para nos colocar a pensar. O primeiro é uma história zen e conta o que se segue. Houve um dia em que um discípulo interrogou o seu mestre: “Mestre, qual é a diferença entre o céu e o inferno?”
E o Mestre elucidou-o, explicando. “A diferença é muito pequena, e tem, contudo, enormes consequências. Imagina uma grande quantidade de arroz preparado como alimento. E imagina também que ao redor dele, paradoxalmente, estão muitas pessoas prestes a morrer de fome. A razão é que possuem longos garfos de dois a três metros de comprimento. Apanham o arroz, mas não conseguem levá-lo à própria boca, porque os grafos revelam-se demasiado longos para o manejo das mãos. Assim, famintos e solitários debatem-se com o drama irresolúvel da fome diante daquela fartura inesgotável. Isto é o inferno.”
“E o que seria o céu?” – atalhou logo o discípulo. “Imagina agora outra grande quantidade de arroz preparado como alimento. Ao seu redor, pessoas esfomeadas mas, neste caso, cheias de vitalidade. Elas também não conseguem aproximar-se do alimento. Os longos garfos, de dois a três metros de comprimento, apanham o arroz, mas são demasiado longos para o manejo das suas mãos. Porém, em vez de insistirem em levá-los à própria boca, aqui as pessoas dão de comer umas às outras, numa espécie de grande roda fraterna. Isto é o céu.”
Nelson Mandela referia-se frequentemente à sabedoria ubuntiana. Ubuntu, na cultura subsaariana significa. “Eu sou porque nós somos.” É uma prática ética focalizada nas relações recíprocas entre as pessoas. Indica “benevolência para com o próximo” e constitui uma regra de vida baseada na compaixão. Para descrever o Ubuntu, também se narram histórias. Como esta: um antropólogo propôs um jogo às crianças de uma tribo africana. Colocou um cesto de frutos apetitosos ao pé de uma árvore e disse às crianças que aquela que chegasse lá primeiro ficaria com tudo para si. Quando foi dado o sinal para partir, as crianças deram as mãos e começaram a correr dessa maneira. Quando lé chegaram, agarraram no cesto, sentaram-se à volta e gozaram juntas o sabor daquele prémio.
Nelson Mandela descrevia o Ubuntu com o seguinte testemunho: “Qualquer pessoa que viaje pelo nosso país e pare numa aldeia não tem necessidade de pedir alimento ou água: imediatamente as pessoas lhe oferecem hospitalidade. Ubuntu não significa não pensar em si mesmos, mas em colocar-se a pergunta: quero ajudar a comunidade que me rodeia a ser melhor? O céu e o inferno também passam por aqui.