Arquivo mensal: Abril 2016

Sobre prisões

imagesTiago Bettencourt, Visão

Não quero falar sobre religião. Quero falar sobre a solidão de não haver mais nada para além de nós e deste egoísmo escondido que anda a atirar tanta gente para um buraco, buraco esse que visto de fora não deveria ser tão fundo como nos relatam os que lá estão dentro. Há este vazio nas pessoas, esta pergunta esquecida num sítio profundo demais para se poder ver. Há esta era em que não existe tempo para aprofundar seja o que for. Se olharmos, os sinais estão em todo o lado a apontar para a forma como não nos comprometemos e não nos aprofundamos: na casa que não se compra, no trabalho onde nunca estamos contentes, nos divórcios, na cultura “mainstream” oca, nas depressões, na busca tardia por uma espiritualidade imediata… Vive-se uma grande fatia de vida centrada em tudo o que é apenas humano: os estudos, o trabalho, a carreira, a casa, um “parceiro” para morar… até ao dia em que se tem tudo isso. Depois chega o fim de semana, do mês, do ano, e o vazio, que era tão pequenino que nem sequer se reparava, está de repente do tamanho de todo o tempo que se esteve sem olhar para ele. Depois choram, choram nos cantos sem saber porquê. Choram mais do que quando alguém lhes morre. Choram por falta de direção, falta de sentido. São pessoas com emprego, com estabilidade, com condições para serem felizes. Ouço estas histórias e não consigo deixar de pensar no outro lado deste manto negro que veste em segredo as camadas mais confortáveis da sociedade. Parece que na ausência de problemas de maior importância, na ausência de preocupações que os mantenham acordados à noite, surge este sítio parado no tempo, este sítio sozinho em que perguntam “e agora?”. Imagino o silêncio avassalador. Um silêncio humano, limitado, terreno.

Lembro-me que eu era mais forte, quando tinha fé. A questão é que me lembro de ter mais certezas, de haver uma resposta às perguntas, de não haver silêncio. Só o facto de saber que existia uma qualquer força superior à minha pequenez, à minha ignorância, fazia com que todo o meu ser se sentisse menos pesado, como se constantemente estivesse a andar lado a lado com a própria razão desse andar, e tudo fluía, os problemas eram abraçados em vez de lamentados até à exaustão, porque eram parte do caminho, como se houvesse um plano. Era tudo muito simples, e eu era mais livre. Sinto que esta ideia, que se espalhou pelo mundo intelectual de que a espiritualidade é uma prisão castradora dos nossos instintos, não fez mais do que criar outro tipo de prisão, invisível, silenciosa, ignorante, desorientada. E de repente temos todo um mundo de fugas, feitas de alucinogénios, de cocaína, de retiros que nos oferecem um pacote espiritual de fim de semana, como injeção que vai durar tanto quanto esses dois dias de emoção extrema “instagramada” ao minuto. Há este buraco fundo, há esta ausência de profundidade para o entender e a ausência de armas e tempo para o desvelar. Não sei o que é suposto dizer esta crónica para além de apontar para este vazio, porque à medida que os anos passam ouço mais histórias de gente a chorar sem razão. Sei que ler um bom livro é melhor que passar os olhos por um artigo de net sobre nada, que ouvir um bom disco é melhor que um “shuffle” pelos “hits” da semana, que ver um bom filme é melhor que o “diário da casa dos segredos”, que ir a uma boa exposição é melhor que um dia no “shopping”, e que ter tempo para perceber, a partir do nosso interior, o que existe para lá de nós é melhor que chegarmos ao fim do dia perdidos e acharmos que estamos sozinhos.

LIBERDADE E VERDADE

bento-16Bento XVI, Fé Verdade Tolerância

Problemática da moderna história da liberdade e seu conceito de liberdade

“O homem é criado livre, é livre, mesmo se tivesse nascido em grilhões”, disse Friedrich von Schiller. Não é uma frase que console escravos com um pensamento metafísico, é frase de luta, uma máxima de acção. Prescrições legais que criem escravatura, são prescrições ilegais. A partir da sua criação o homem possui direitos que têm de ser respeitados para que haja justiça. A liberdade não é dada de fora ao homem. Ele tem direitos, porque foi criado livre. É deste pensamento que nasceu a ideia dos direitos do homem como magna carta do moderno movimento de liberdade. Quanto neste contexto se fala de natureza não se entende com isso simplesmente um sistema de processos biológicos. Afirma-se, antes, que o homem, pela sua própria natureza humana, possui direitos anteriores a qualquer configuração legal. Neste sentido, a ideia dos direitos humanos é, antes de mais, uma ideia revolucionária, pois se levanta contra o absolutismo do Estado, contra o arbítrio de uma legislação positiva. Mas é também uma ideia metafísica, dado que no próprio ser radica uma reivindicação ética legal. Não se trata de simples elemento material a que se possa dar forma; a natureza tem em si espírito (Geist), comporta ética e dignidade, constitui reivindicação por direito à nossa libertação da qual, ela própria, é a medida.

LIBERDADE E VERDADE

Bento XVI, Fé Verdade Tolerância

Problemática da moderna história da liberdade e seu conceito de liberdade

Não há dúvida: a época a que chamamos Idade Moderna caracteriza-se desde o seu começo pelo tema da liberdade; a partida para novas liberdades é afinal a única razão que justifica esta periodização. O escrito de luta de Lutero Da liberdade do homem cristão, lança imediatamente o tema com tons fortes. Era o clamor da liberdade que fazia as pessoas escutarem, que punha em movimento uma verdadeira avalanche, e fazia dos escritos de um monge um movimento de massas que deu radicalmente nova forma à fisionomia do mundo medievo. Tratava-se da liberdade de consciência em confronto com a autoridade da Igreja, no fundo a mais íntima liberdade do homem. Não são as regras comunitárias que salvam o homem, mas a sua fé pessoal em Cristo. Que, de repente, todo o sistema que ordenava a Igreja da Idade Média tenha perdido a sua validade, foi sentido como um empurrão imenso para a liberdade. As regras que, em princípio, deviam suportar a vida e trazer-lhe salvação, apareciam como um fardo; já não obrigam, quer dizer, já não têm importância para a salvação. A redenção é libertação, libertação do jugo das regras supra-individuais. Mesmo que não se devesse falar de individualismo na Reforma, a nova importância do indivíduo e a alteração da relação entre a consciência individual e a autoridade é um seu traço fundamental. Este movimento de libertação permaneceu, no entanto, limitado ao domínio religioso. Onde ele se tornou também um programa politico, como nas guerras dos camponeses e no movimento dos anabaptistas, Lutero opôs-se-lhe terminantemente. No domínio político, ao contrário, aumentou-se e endureceu o poder da autoridade secular pela instituição de Igrejas estatais e nacionais. No espaço anglo-saxónico, as Igrejas livres irrompem desta nova fusão de governação religiosa e política, e tronam-se percursoras de uma nova construção da história, que vai tomar forma definitiva na segunda fase da Idade Moderna, no Iluminismo.

Amoris Laetitia

índicePe. Miguel Almeida, sj, no jornal Observador

O Papa Francisco publicou finalmente a tão esperada Exortação Apostólica Pós-Sinodal com o título Amoris Laetita (A Alegria do Amor).

Importa esclarecer que não se trata de uma exortação sobre a doutrina do matrimónio, mas sobre o amor. O amor na família. E esta tem que ser a chave de leitura de todo o documento. Não se trata de pôr em questão a doutrina da Igreja sobre o sacramento do matrimónio, mas precisamente o oposto: praticar a doutrina oferecendo a Alegria do Amor de que a Igreja é portadora. Não uma alegria qualquer, mas aquela que é fruto do Espírito Santo.

Uma questão que a muitos intriga refere-se ao facto de este Papa, que é direto e claro em tudo e com todos, aparecer aqui não tão incisivo. Porque não esclarece simplesmente se os católicos que se divorciaram e voltaram a casar civilmente podem ou não ter acesso aos sacramentos? É que, de facto, a Exortação parece poder dar azo a diferentes interpretações.

A razão é simples: Francisco não o diz porque não quer. E esta é, talvez, a mais profunda reforma que o Papa quer implementar na Igreja.

Esta reforma, talvez não sempre diretamente explicitada, mas presente em todos os escritos, gestos e palavras do Papa é a da descentralização. Profundamente conhecedor da Tradição da Igreja, e vindo “do fim do mundo”, como ele mesmo afirmou, Francisco sabe por experiência própria que a excessiva centralização nem sempre ajuda ao exercício da ação da Igreja. Deseja, assim, conferir mais autonomia às Conferências Episcopais e aos bispos locais para que a Igreja possa recuperar a proximidade às pessoas concretas de cada cultura, país e diocese. O desejo de descentralização do Papa é claro: “quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais” (AL3), já que, dada a diversidade das culturas, existem “maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem dela. Além disso, em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais” (ibid.).

Já no fim do documento, e fazendo eco da Relatio finalis do Sínodo, Francisco reitera que “os sacerdotes têm o dever de acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho do discernimento segundo a doutrina da Igreja e as orientações do bispo” (AL300). Por isso, não se espere “desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canónico, aplicável a todos os casos” (ibid.). A recusa de legislar e verificar tudo a partir de Roma devolve ao bispo local um papel sempre mais relevante na saudável e coerente aplicação da doutrina universal à igreja da sua diocese. E dá à Igreja, não só a flexibilidade necessária para se aproximar das situações e pessoas concretas, mas dota-a daquela vivacidade com que Francisco sonha desde o dia em que foi eleito Papa.

O preço a pagar é o do discernimento, que se revela aqui a palavra de ordem. Certamente, há que evitar a todo o custo “o risco de que um certo discernimento leve a pensar que a Igreja sustente uma moral dupla” (AL300). Por isso, “este discernimento não poderá jamais prescindir das exigências evangélicas de verdade e caridade propostas pela Igreja” (ibid.), não fosse o caso de se veicularem “mensagens equivocadas, como a ideia de que algum sacerdote pode conceder rapidamente exceções, ou de que há pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca de favores” (ibid.).

Francisco é ciente de que este tipo de exercício do Papado não agrada a todos. A atitude mais fácil seria a de decretar uma norma geral obrigando à obediência de todos os católicos. Por isso, explica que compreende “aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade” (AL308).

Quando se refere concretamente às situações mais complexas, de fragilidade ou irregulares, que não cumprem plenamente a norma doutrinal da Igreja, o Papa convida fortemente a acompanhar, discernir e integrar. O discernimento é essencial porque “uma vez que o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, as consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos” (AL 300). Ora, em clara oposição ao que aqui é afirmado, hoje, todas as pessoas que se divorciaram e voltaram a casar civilmente, sem exceção, estão impedidas de aceder aos sacramentos. Mas, de facto, uma pessoa que objetivamente não cumpre a lei “pode encontrar-se em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa” (AL301). Por isso, “um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações irregulares, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas” (AL305).

Mas Francisco vai muito mais longe: “já não é possível dizer que todos os que estão numa situação chamada irregular vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante” (AL301). Aliás, “é possível que uma pessoa, no meio duma situação objectiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja” (AL305).

Mas até onde pode ir esta ajuda? Até onde pode ir a integração dos recasados? Para responder, o Papa acrescenta uma nota de rodapé que não deixa margem para dúvidas: “Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso, aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor. E de igual modo assinalo que a Eucaristia não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos” (nota 351).

Por todo o processo sinodal e pelo que fica dito ao longo desta Exortação, revela-se claro o desejo do Papa Francisco acerca deste assunto. A Igreja, através das suas estruturas locais, deve fornecer instrumentos de acompanhamento, discernimento e integração das pessoas recasadas. E essa ajuda pode, nos casos em que o discernimento assim conclua, chegar ao acesso aos sacramentos. Esta é, aliás, a leitura que faz o Arcebispo Vincenzo Paglia, presidente do Conselho Pontifício para a Família, numa entrevista concedida ao Corriere della Sera (digital), no passado dia 9 de Abril. Com efeito, afirma o prelado que não passa a haver uma regra que permita os recasados comungarem. Objetivamente os recasados não podem aceder aos sacramentos. Mas, diz ele, “não está dito que subjetivamente seja a mesma coisa. Não existe a situação em abstrato; existem milhões”.

Por isso, “o bispo deverá ajudar os confessores e os padres espirituais a exercitarem a misericórdia conjugando-a com a gradualidade da pedagogia de Deus”. No caminho percorrido pelo discernimento, a participação dos recasados pode tornar-se plena. E à pergunta se esta “participação plena” inclui o acesso aos sacramentos, Vincenzo Paglia é claro: “Sim, a via sacramental está presente neste itinerário porque a lei suprema da Igreja é conduzir todos à salvação”.

Apesar de tudo, porque Francisco deseja uma Igreja realmente baseada e viva a partir das vidas concretas do Povo de Deus, caberá às comunidades e aos bispos locais discernir e decidir como dar seguimento à Amoris Laetitia. Será muito interessante verificar que tipo de recepção terá esta Exortação pelo mundo fora.

Conhece-te a ti mesmo

índiceCarlo Strenger, O medo da insignificância

As pessoas sentem a necessidade imperiosa de se tornarem verdadeiramente o que sentem que poderiam ser. Não querem continuar a gastar energia em actividades que não servem aquilo que sentem ser a essência das suas vidas. Restringir a vida ao essencial exige que nos perguntemos sobre o que queremos que sejam realmente as nossas vidas. As perguntas (…) podem ser bastantes radicais: Quais são as minhas preocupações mais profundas? O que me interessa? Qual é o meu lugar no mundo? Tocam na essência daquilo que somos e são, em contrapartida, bastante assustadoras. O que não é fácil e não deixa de envolver riscos. Porém, temos sempre de nos lembrar que o risco de não vivermos plenamente as nossas vidas acarreta um preço que pode ser ainda mais elevado. (…)

Restringir a vida ao essencial e centrar-se na criação tem duas funções: liberta-nos da consciência do eu e do tempo e permite-nos estarmos imersos numa atividade que experienciamos como intrinsecamente significativa. Também requer frequentemente o processo doloroso do autoconhecimento e o compromisso com um tema central que nos forneça significado. Este processo é muito diferente do mito de um eu plenamente verdadeiro que irrompe no mundo. Muitas vezes, envolve tentativas, erro e a aprendizagem sobre si mesmo. Nesse percurso, precisamos muitas vezes de abandonar ilusões. Acima de tudo, temos de abandonar a ideia errada de que a liberdade consiste na ausência de limitações. Restringir a vida ao essencial requer o compromisso com poucos temas que serão a principal fonte de significado das nossas vidas. Este compromisso significa que aceitamos que não teremos muitas coisas nas nossas vidas.

O modelo de restrição da vida ao essencial não tem maior probabilidade de ser adequado para todos do que qualquer outro modelo. Nem todos nós sentimos que temos necessidade de um tema central em torno do qual organizamos as nossas vidas. Alguns de nós sentem-se bem com uma concepção de vida menos ativa que está mais dispersa entre muitos interesses, amores e atividades. Não obstante, é interessante e intrigante, no sentido em que vai contra o núcleo da nossa cultura de consumo global crescente. É um modelo que, no meio das preocupações emergentes sobre a ecologia natural e humana, se prova ser importante nestes tempos conturbados da história humana. Colocar as nossas vidas no centro da nossa atenção requer um sistema de sentido estável que organize os nossos valores. Não podemos centrar as nossas vidas em torno de um tema sem termos uma visão de mundo que nos diga o que é importante, verdadeiramente valioso e o que não passa de uma distração que não deve esgotar as nossas energias. Por isso, devemos passar à questão de saber como pode o Homo globalis desenvolver visões de mundo que resistam ao escrutínio crítico e, desse modo, forneçam um ponto de ancoragem necessário para viver uma vida plena e com significado.

LIBERDADE E VERDADE

bento-16Bento XVI, Fé Verdade Tolerância

A questão

Na consciência da humanidade de hoje a liberdade aparece como o bem máximo ao qual todos os outros bens estão subordinados. A jurisprudência dá à liberdade da arte, à liberdade de expressão de opinião, a total precedência sobre qualquer outro valor ético. Valores que aparecem em concorrência com a liberdade, que possam tornar necessária a sua limitação, são tidos como grilhões, como “tabus”, relíquias de proibições e medos arcaicos. A ação politica tem de ser credenciada pelo seu fomento da liberdade. Também a religião só se pode afirmar enquanto se apresente como força libertadora para o homem e para a humanidade. Na escala de valores que importam ao homem e à sua vida humanamente digna, a liberdade é o valor básico e o fundamento absoluto do direito humano. Perante ela, o conceito da verdade é visto sobretudo com suspeita. Recordamos quantas opiniões e sistemas reclamaram já para si o conceito da verdade; quantas vezes não serviu a afirmação da verdade como meio para reprimir a liberdade. Acresce o cepticismo, alimentado pelas ciências da natureza, contra tudo o que não se pode esclarecer ou provar com exatidão; tudo isto parece ser apenas avaliação subjetiva, que não pode ser de obrigatoriedade geral. A posição moderna na questão da verdade tem a sua expressão mais categórica na palavra de Pilatos: O que é a verdade? Quem declara estar ao serviço da verdade com a sua vida e com a sua palavra e ação, deve contar, no mínimo, com a classificação de visionário ou fanático. Pois “para além, a nossa vista está obstruída”, como diz Goethe no seu Fausto, e assim caracteriza o sentir de todos nós. Sem dúvida, perante uma “paixão da verdade” que se apresente com demasiada segurança, há razões que cheguem para perguntar com cautela: O que é a verdade? Mas há igualmente outras tantas razões para perguntar. O que é a liberdade? Que queremos propriamente dizer, quando louvamos a liberdade e quando a colocamos no mais alto grau a nossa escala de valores? Creio que o conteúdo geralmente associado à exigência da liberdade foi bastante bem interpretado pelas palavras com que Karl Marx exprimiu uma vez o seu sonho de liberdade. A situação da futura sociedade comunista cai tornar possível “fazer isto hoje, amanhã aquilo, caçar de manhã, pescar à tarde, fazer criação de gado à tardinha, tecer críticas depois do jantar, conforme me der vontade…” É exatamente nesse sentido que o sentimento geral irrefletido entende liberdade – como direito e a possibilidade de fazer tudo o que nos parece, e não ter de fazer nada que não queiramos. Por outras palavras, a liberdade significaria que o nosso querer é a única lei das nossas ações, e que a vontade pode querer tudo e ter a possibilidade de realizar tudo o que quer. Aqui levantam-se, porém, novas questões: até que ponto a vontade é livre? E quem medida é razoável? Será uma vontade irrazoável uma vontade livre? É realmente liberdade uma liberdade irracional? É realmente um bem? Não deverá a definição da liberdade, a partir do poder querer e do poder fazer o que se quer, ser completada pela sua referência à razão, à totalidade do homem, para que não resulte em tirania do irracional? Não pertencerá à mútua implicação da razão e da vontade a procura também da comum razão de todos os homens, conseguindo assim a recíproca compatibilidade das liberdades? É evidente que na questão da razoabilidade da vontade, da sua ligação à razão, está latente a questão da verdade.

Não são apenas reflexões abstratas filosóficas que nos obrigam a fazer perguntas, mas a nossa muito concreta situação social, onde, é certo, persiste inquebrantável a exigência da liberdade, mas em que aparecem, no entanto, dúvidas sempre mais dramáticas quanto aos movimentos de libertação e aos sistemas de liberdade. Não esqueçamos que o marxismo surgiu como a única grande força política do sec. XX a reclamar para si a criação do novo mundo da liberdade e do homem liberto. Foi exatamente para a liberdade e para a criação do mundo novo, que fez com que aderissem a ele muitos dos espírtos mais arrojados da nossa época: enfim, até apareceu como a força que podia mudar a doutrina cristã da redenção numa prática de liberdade realista – como força que podia instaurar o reino de Deus à maneira do verdadeiro reino do homem. O desabar do socialismo real nos Estados da Europa de Leste não removeu tais esperanças por completo; aqui e além elas persistem silenciosamente e procuram novas formas. À derrocada política e económica não correspondeu uma superação espiritual efetiva, e por isso a questão levantada pelo marxismo ainda não se encontra solucionada. É, todavia, óbvio que o seu sistema não funcionou como prometido. Que esse pretenso movimento de libertação, a par do nacional-socialismo, foi o maior sistema de escravatura na história dos tempos modernos, já ninguém o pode negar. A dimensão da cínica destruição do homem e do mundo é muitas vezes coberta por um manto envergonhado de silêncio, mas contestá-la já não é possível a ninguém.

A superioridade moral do sistema liberal na política e na economia, que deste modo se evidenciou, não provoca, no entanto, nenhum entusiasmo. É demasiado grande o número de pessoas que não partilham dos frutos desta liberdade, ou mesmo perdem qualquer liberdade: o desemprego torna-se novamente um fenómeno de massas; o sentimento de não ser necessário, da utilidade, atormenta os homens não menos que a pobreza material. A exploração sem escrúpulos pratica-se cada vez em maior escala, o crime organizado faz uso das oportunidades do mundo livre, e no meio de tudo vagueia o fantasma do sem-sentido. O filósofo polaco Andrzej Szczypiorski descreveu cruamente nas Semanas Académicas de Salzburgo, em 1995, o dilema da liberdade que se fez sentir depois da queda do muro; vale a pena ouvir mais em pormenor:

“Não existe qualquer dúvida de que o capitalismo trouxe grandes progressos. Também não há qualquer dúvida de que não satisfez expectativas. No capitalismo ouve-se sempre o grito das grandes massas cujas ambições não foram atendidas… O naufrágio da concepção soviética do mundo e do homem na prática politica e social foi uma libertação da servidão para milhões de vidas humanas. Todavia, no pensamento europeu, à luz da tradição dos últimos duzentos anos, a revolução anticomunista é também o fim das ilusões iluministas, a destruição portanto da concepção intelectual em que se baseava o desenvolvimento desta Europa… Apareceu uma singular época de uniformização do desenvolvimento, de ninguém conhecida até aqui. E de repente tornou-se claro – porventura a primeira vez na história – que havia apenas uma única receita, um único caminho, um único modelo, uma única maneira de dar forma ao futuro. E os homens perderam a fé no sentido das transformações em curso. Também perderam a esperança de que o mundo possa ser mudado, que valha a pena mudar o mundo… A falta hoje de alternativa faz, porém, que os homens levantem questões completamente novas. Primeira dúvida: talvez o Ocidente não tivesse razão. Segunda dúvida: se o Ocidente não tinha razão, quem tinha então razão? Como na Europa ninguém duvida que o comunismo não tinha razão, coloca-se a terceira pergunta: talvez não exista o que tenha razão? Mas, se assim é, então todo o tesouro de pensamento do Iluminismo não tem qualquer valor… Talvez que a velha máquina de vapor do Iluminismo, após duzentos anos de trabalho útil e ininterrupto, tenha parado diante dos nossos olhos e com a nossa ajuda. E o vapor escapa-se apenas para o ar. Se, de facto, é assim, então são negras as perspetivas.”

Por mais questões que se possam levantar contra esta exposição, não podemos, contudo, afastar o realismo e a lógica das questões fundamentais de Szczypiorski; e, ao mesmo tempo, o diagnóstico é de tal maneira deprimente, que não podemos parar aqui. Não tinha ninguém razão? Acaso não haverá nada em que se tenha razão? Os fundamentos do Iluminismo europeu, em que se apoia o nosso caminho de liberdade, serão falsos, ou pelo menos deficientes? Não é a pergunta “O que é a liberdade?”, afinal, não menos complicada que a pergunta “O que é a verdade?”. O dilema do Iluminismo, em que inegavelmente caímos, força-nos a pôr as duas perguntas de maneira nova e, de maneira nova, a procurar a sua mútua implicação. Para avançar é necessário que pensemos de novo o ponto de origem do percurso moderno da liberdade; a correção de percurso – de que claramente precisamos para que, na escuridão das perspetivas, se tornem visíveis novos caminhos – tem de se reportar aos inícios para aí tornar o seu ponto de partida. Naturalmente, só posso fazer aqui a tentativa de lançar alguma luz sobre a grandeza e os perigos deste caminho dos Tempos Modernos, para ajudar a uma nova tomada de consciência.

Cristianismo

bento-16Bento XVI, Fé Verdade Tolerância

A fé cristã não é fundada em poesia e política, estas duas fontes de religião; o seu fundamento é o conhecimento. A fé venera aquele Ser, que está na base de tudo o que existe, o “verdadeiro Deus”.  No Cristianismo, o esclarecimento racional tornou-se religião, não o seu adversário. Porque foi assim, porque o Cristianismo se entendeu a si mesmo como vitória da desmitologização, como vitória do conhecimento e, com ele, da verdade, por isso ele tinha de ser visto como universal e ser levado a todos os povos: não como uma religião específica que reprime outras, não a partir de uma espécie de imperialismo religioso, mas como verdade que torna supérflua a aparência. Exatamente por isso o Cristianismo aparece como intolerável para a vasta tolerância dos politeísmos.