Arquivo mensal: Outubro 2016

Tudo começa pelo espanto

índiceJosé Tolentino Mendonça  na E, Expresso, 29.10.2016

Lembro-me muitas vezes de um ensaio da escritora italiana Natalia Ginzburg sobre aquilo que os pais transmitem aos filhos. E a opinião dela é que os pais parecem esgotar o seu papel no ensinamento das pequenas virtudes, e frequentemente se demitem de dizer uma palavra ou tomar uma iniciativa sobre as grandes. É como se todo o nosso sistema de valores educativos se restringisse à aprendizagem do que é o senso comum adquirido, aquilo que de uma forma ou de outra se respira no ar, escolhendo assim a estrada mais cómoda. O pior, porém, é o que, neste modelo educativo, se deixa a descoberto em termos da aventura humana como aventura de construção do sentido.

E Natalia Ginzburg dá exemplos. A relação com o dinheiro é um deles. Os pais sentem o cuidado de ensinar os filhos a poupar e a utilizar de forma parcimoniosa os recursos financeiros, mas sentem menos, como tarefa, o ensinamento da generosidade ou até da indiferença perante o dinheiro quando está em causa aquilo que nenhum dinheiro compra. Os pais investem na transmissão da prudência, mas falam pouco da coragem ou do desprezo pelo perigo. Relevam a astúcia e não tanto o amor pela verdade. A diplomacia no lugar do abnegado amor ao próximo. O desejo de sucesso em vez do desejo de ser e de saber. É evidente que este não é simplesmente um problema dos pais X ou Y, mas tem que ver com os modelos de felicidade que a nossa sociedade maioritariamente adota.

Ora, não quer dizer que as pequenas virtudes não sejam ferramentas de vida fundamentais. Não é essa a discussão. O ponto que precisaríamos de refletir melhor é o do nosso esquecimento das grandes virtudes, deixadas à geração espontânea e à música do acaso. Pode ser que um jovem chegue a elas por um encontro, pelo alvoroço de uma grande alegria ou de um demolidor sofrimento que, em arriscada contramão, lhes permitam fazer um caminho interior inesperado. Porém, o que distingue hoje as nossas sociedades em relação a outras, contemporâneas ou passadas, é que nesse caminho cada um estará muito mais só do que se escolhesse fazer da sua inteira existência um quintal para cultivar as pequenas e óbvias virtudes.

Uma das grandes virtudes que precisamos reencontrar é a arte do espanto, pois é verdadeiramente por aí que tudo começa. Espanto deriva do latino expaventare que descreve a forte impressão originada por uma coisa inesperada e repentina. Se procurarmos sinónimos, encontramos assombro, admiração, surpresa. É o contacto (consciente, fulgurante, desarmado, rendido) com a vida maior do que nós, a vida em aberto, não predeterminada. No espanto, a nova e surpreendente expressão da vida prende a nossa atenção à maneira de um relâmpago, de um rasgão imprevisível. Não a conseguimos encaixar no nosso quadro habitual, pois o seu carácter inédito torna inúteis todas as previsões, saberes, experiências, etiquetas, mapas, preparações.

Gosto muito da definição de espanto dada por Adorno: “Espanto é o longo e inocente olhar sobre o objeto”. É, de facto, um ‘olhar longo’ e isso talvez explique porque consideramos hoje tão pouco o espanto, num tempo que nos programa para olhares breves, relances, observações fugidias e utilitárias, cada vez mais simplificadas.

E é um ‘olhar inocente’, isto é, aberto à revelação do próprio objeto, ao que ele pretende de nós e não ao que imediatamente pretendemos dele. O espanto obriga-nos a uma revisão do que sabemos de nós próprios e do mundo. Obriga-nos a recomeçar, como se fosse um nascer. Certamente que, no seu processo, o espanto desarruma e dói. Mas o amor, o conhecimento, a poesia ou a santidade principiam com ele.

dsc_5162

Meteorologia

índiceJosé Tolentino Mendonça  na E, Expresso, 22.10.2016

Se há coisa que aprendemos depressa é esta: todos queremos, precisamos, desesperamos por ser felizes. Mas cada um é feliz à sua maneira. Dentro da semelhança aloja-se, portanto, esta inultrapassável variação que torna a vida (ainda mais) complexa e fascinante. Por exemplo, uma das minhas amigas mais antigas adora a chuva e o frio. Eu, por mim, prefiro de longe o calor e o sol. A princípio nem percebia bem as lamentações dela quando a primavera se enrobustecia e tudo decididamente se ilumina. Com os anos habituei-me ao mau humor dela em relação ao verão, aos adjetivos resmungados contra as rotinas estivais, ao completo rancor com que ela olha a meteorologia desses meses seguidos que fazem a felicidade de tantos. Mas habituei-me também à alegria dela sempre que chove, às desculpas que engendra para desdramatizar os inverniços, à sua disposição de repente ensolarada só porque, em vez de sol, a manhã traz doses massivas de nevoeiro, geada e frio. Claro que o espanto persiste e ainda dou comigo a pensar perante uma tarde ensopada de água e de vento: “Como é que se pode gostar tanto disto?”, mas já não tento convencê-la, nem a contrario. Quando não consigo acompanhar o seu entusiasmo, deixo-me ficar calado a refletir nele, como uma hipótese curiosa em que não tinha pensado. Quem gosta do inverno ama os dias breves, a apagarem-se progressivamente. E esta minha amiga repete que os dias longos do verão são excêntricos e desregulados. Os dias certos são estes que se vão instalar para a semana, com a hora de inverno. Em Portugal sente-se um bocado a diferença, mas noutras geografias o choque é bem maior.

Lembro-me de quando vivia em Itália e começava a escurecer às quatro da tarde. Nos primeiros dias ficava completamente transido. O tempo parecia rasgado e em falta, com o seu quê de hostil. A habituação não era fácil. Para não falar já das peculiaridades ainda mais exigentes dos países do norte. Mas até disso nos aprendemos a rir. O relativismo não tem só coisas más. Ruy Belo, num daqueles poemas que nos descrevem dos pés à cabeça, deixou escrito: “É triste no outono concluir que era o verão a única estação.” Ora, para desmantelarmos o peso da tristeza que nos sequestra, é importante reconciliarmo-nos com as estações que nos são menos naturais. A vida hoje afastou-nos da natureza: as paisagens urbanas, com as suas florestas de vidro e betão, encerram a nossa existência entre paredes eficazes, que podem até ser muito cómodas. Mas o ar que respiramos, por alguma razão se chama “ar condicionado”. E vivemos de uma forma tão superprotegida que basta um aguaceiro ou um pé de vento para nos transtornar.

Lembro-me muitas vezes do chamado “Cântico das Criaturas”, composto por São Francisco de Assis, e que é consensualmente considerado o texto poético mais antigo da literatura italiana (datado de um período em torno a 1224-1226). São Francisco finaliza o poema já enfermo, na iminência da morte, quando praticamente havia deixado de ver. Esta sua situação de enorme vulnerabilidade não lhe retira a paz, pelo contrário: só adensa a espantosa sabedoria que os seus versos refletem. O poema é um dos grandes textos do cânone ocidental e desenha-se como uma oração de louvor ao “Altíssimo, omnipotente, bom Senhor”, a quem se faz chegar o integral louvor das suas criaturas, sem distinção. E estão lá todos os que, de uma forma ou de outra, se derramam sobre nós em cada estação: o “irmão Sol”, a “irmã Lua”, o “irmão Vento”, a “irmã Água”, o “irmão Fogo”, a “mãe Terra”, a “nossa irmã Morte”.

Crianças

índiceKatya Delimbeuf, E, Expresso, 8.10.2016

Álvaro Bilbao, 40 anos, é doutorado em Psicologia da Saúde pela Universidade de Deusto, em Bilbau. Já colaborou com a Organização Mundial de Saúde e trabalha no Centro Estatal de Referência de Atenção ao Dano Cerebral – mas costuma dizer que o seu maior currículo são os três filhos, de 6, 4 e 3 anos. O seu livro, “O Cérebro das crianças explicado aos Pais” (editora Planeta), já chegou às livrarias do nosso país.

ddddd

Porque é importante conhecer o cérebro para educar melhor?
Porque este oferece-nos muitas estratégias e ferramentas que nos ajudam. Explica-nos como aprende o cérebro da criança, as suas necessidades de desenvolvimento e que ferramentas devem usar os pais na ordem que os filhos precisam. O cérebro do adulto aprende através da linguagem e da razão. O das crianças aprende essencialmente através do jogo e do carinho.

E através do exemplo, não?
Também. As crianças aprendem muito através da observação dos adultos. Se queres ter um filho feliz mas passas o dia aborrecido e frustrado, ele vai imitar essa forma de lidar com os problemas. O nosso exemplo é muito importante. Acontece o mesmo com os smartphones e iPads. Podemos pôr-lhes regras, mas se nós próprios andarmos com o telemóvel atrás o dia todo, eles vão fazer o mesmo.

O que lhe ensinaram os seus filhos?
Ensinaram-me que uma coisa é a teoria e outra é a prática. A teoria ajuda-nos muito a melhorar a prática, mas a prática não sai sempre como queremos. Ensinaram-me também uma coisa muito importante, que não vem nos manuais: a importância do carinho, de lhes dar beijos. A minha mulher ajudou-me muito, porque vem de uma família muito afetuosa, com poucos limites, muito hippie, e eu venho de uma família muito conservadora e tradicional. Juntos, encontrámos uma forma equilibrada de educar. Mas uma das coisas fundamentais para educar é errar – para os teus filhos verem que também te enganas e que é normal não fazer tudo bem. Também é muito importante estarmos em contacto com a nossa criança interior. Estar com crianças põe-nos em contacto com aquela parte de nós que esquecemos em adultos – a capacidade de brincar, de sonhar, de sentir afeto.

Brincar é fundamental?
Sim. O jogo livre é fulcral. O momento em que se apaga a televisão é mágico. É incrível o que os miúdos inventam quando os pais não lhes dizem o que fazer. Isso ajuda imenso a desenvolver a imaginação.

Defende que, até aos 6 anos, as crianças não devem ter contacto com a tecnologia. Isso é possível nos dias que correm?
Até aos 3 anos não devem contactar com tecnologia, absolutamente. Em minha casa não há tablets e os miúdos não usam os telemóveis. Este verão, perguntei ao mais velho o que achava de lhe comprarmos um tablet. Respondeu: ‘Talvez seja melhor esperar mais um pouco. Gosto muito de brincar com legos, de desenhar e não quero deixar de gostar’. Não comprámos.

Mas os limites são igualmente essenciais, não?
Absolutamente. Os limites ajudam as crianças a saber o que não devem fazer. A não bater nos irmãos, a respeitar os mais velhos, a não desobedecer, a não gritar… Há pais que, sabendo da importância dos afetos, não dão limites. Não está certo.

O “não” é a palavra mais importante na educação de uma criança?
Enquanto palavra, talvez seja. Mas o mais importante não está nas palavras – são os abraços, os beijos, o carinho. Afetos e limites são igualmente importantes. Ao dizermos ‘não’, estamos a ensinar-lhes o autocontrolo, a disciplina, a capacidade de controlar a frustração.

O que podemos fazer para lidar com as terríveis birras?
Entre os 2 e os 3 anos, não há nada que se possa fazer. Têm que fazê-las e pronto. Mas há três coisas que podem ajudar e três outras que podem piorar a situação – e a maioria dos pais costuma fazer estas últimas. A primeira que não devemos fazer é zangarmo-nos com as crianças ou ficarmos nervosos. A segunda é envergonhá-las, comparando-as; e a terceira é tentar agarrá-las pela força. Pelo contrário, aquilo que pode ajudar é empatizar com elas, mostrar-lhes que percebemos o que sentem; dar afeto, abraçá-las; e ajudá-las a serem flexíveis, oferecendo-lhes uma alternativa (por exemplo: adiar aquele ato para outro dia).cerebro-crianca-explicado-para-os-pais

Alguma vez bateu num filho?
Nunca. Castiguei-os duas vezes, mas nunca através do castigo físico. Está demonstradíssimo que o castigo físico não é bom. Ensina à criança a perda de controlo, a agressividade. Humilha-a, põe-na triste. O castigo físico não pode ser uma forma de educar. Educamos melhor quando não batemos. Já me aconteceu pedir ajuda aos meus filhos, para não gritar com eles.

Há rotinas imprescindíveis em vossa casa?
Somos mais flexíveis em termos de horários e mais ritualistas em relação a certas coisas. Jantamos sempre em família – e se eu não tiver fome, sento-me com eles. Lê-se sempre uma história antes de dormir. Dormem pelas 21h30. Somos bastante flexíveis. Para nós, os afetos são mais importantes do que a ordem.

Não estaremos a passar demasiado stress às crianças, com horários para tudo?
O cérebro não percebe as horas, percebe as sequências. É importante que as crianças e os pais aprendam a ter flexibilidade. As regras são importantes, mas não é preciso ter síndromas de perfecionismo. Para a criança, também é duro ter de fazer tudo perfeito. Atualmente, sabemos que o maiores problemas das crianças se devem ao stress. O déficit de atenção, a obesidade infantil, problemas de comportamento, derivam daí. Isso deriva de querermos que as crianças tenham muitas atividades, façam muitas coisas, que cheguem a horas a todo o lado… E nós também queremos fazer tudo de forma perfeita. A exigência e o perfecionismo da nossa sociedade são tremendos. Em minha casa, tentamos ter manhãs sem stress. Tentamos fazer tudo com antecedência, levo os meus filhos à escola mais perto de casa.

A avaliação, a preocupação excessiva com as notas, não são também um sintoma de obsessão da nossa sociedade?
Sim. O mais importante é que as crianças se apaixonem pela aprendizagem, mais do que por terem boas notas. A maior prenda que podemos dar aos nossos filhos é incutir-lhes o gosto por aprender. Os melhores alunos são miúdos que gostam de aprender.

Como se pode tentar passar o gosto por saborear em vez de consumir?
A primeira coisa que podemos tentar é não consumirmos nós próprios, no dia-a-dia. Não consumir tecnologia, ócio. Não temos que fazer 25 coisas ao fim de semana, podemos simplesmente passar o fim de semana sem fazer NADA. Estar em casa, brincar, dar um passeio. Quando consumimos muito, damos impressão à criança de que tudo acontece muito depressa, de que tem de estar sempre ocupada, sempre feliz. Das primeiras coisas a fazer é dar à criança a liberdade e a confiança para não ter de fazer nada. Depois, é importante não dar demasiada importância ao resultado. Podemos jogar a passar a bola, sem ser a marcar golos.

A nossa sociedade vive cheia de pressa?
Sim. Vivemos num modelo que diz que fazer depressa é fazer melhor. Não é verdade. Um tomate biológico é melhor que um tomate de estufa. Se se for maduro aos 7 anos, em que idade se vai ser imaturo? É muito importante respeitar os ritmos das crianças.

O que mais o fascina no cruzamento da neurologia com a pedagogia?
facto de tudo encaixar. Tudo faz sentido quando juntas a neurologia (que explica como aprende o cérebro), a pedagogia (que explica como aprendemos) e a psicologia (que nos explica o que fazemos e sentimos). As memórias afetivas, por exemplo, são as mais antigas. Situam-se na parte do “cérebro emocional”. Podemos esquecer quem é uma pessoa, mas não esquecemos que nos sentimos bem ao pé dela. Um filho nunca vai esquecer uma bofetada. Mesmo que isso não seja consciente.