Arquivo mensal: Novembro 2016
Juntos
Mensagem do Papa Francisco para o 4º festival da Doutrina Social da Igreja, Verona, 24.Novembro.2016
“A nossa humanidade enriquece-se muito se estamos com todos os outros e em qualquer situação em que se encontram. É o isolamento que faz mal, não a partilha. O isolamento desenvolve o medo e a desconfiança e impede de beneficiar da fraternidade. É preciso com efeito dizer que se correm mais riscos quando nos isolamos do que quando nos abrimos ao outro: a possibilidade de nos fazermos mal não está no encontro mas no fechamento e na rejeição. A mesma coisa vale quando assumimos o cuidado de alguém: penso num doente, num idoso, num imigrante, um pobre, num desempregado. Quando tomamos conta do outro complicamos menos a vida do que quando estamos concentrados em nós mesmos.
Estar no meio das pessoas não significa só estar abertos e encontrar os outros, mas também deixar-se encontrar. Somos nós que temos necessidade de ser olhados, chamados, tocados, interpelados, somos nós que temos necessidade dos outros para nos podermos fazer participantes de tudo o que só os outros nos podem dar. A relação pede este intercâmbio entre pessoas: a experiência diz-nos que habitualmente dos outros recebemos mais do que damos.
Entre a nossa gente há uma autêntica riqueza humana. São inumeráveis as histórias de solidariedade, de ajuda, de apoio que se vivem nas nossas famílias e nas nossas comunidades. É impressionante como algumas pessoas vivem com dignidade a restrição económica, a dor, o trabalho duro, a provação. Encontrando estas pessoas tocas com a mão a sua grandeza e recebes quase uma luz através da qual se torna claro que se pode cultivar uma esperança para o futuro; pode acreditar-se que o bem é mais forte do que o mal porque elas estão ali. Estando no meio das pessoas temos acesso ao ensinamento dos factos.
Estar no meio das pessoas significa também dar-se conta de que cada um de nós é parte de um povo. A vida concreta é possível porque não é a soma de muitas individualidades, mas a articulação de muitas pessoas que concorrem para a constituição do bem comum. Estar juntos ajudar-nos a ver o conjunto. Quando vemos o conjunto, o nosso olhar é enriquecido e torna-se evidente que os papéis que cada pessoa desempenha no interior das dinâmicas sociais nunca podem ser isoladas ou absolutizadas. Quando o povo está separado de quem comanda, quando se fazem escolhas por força do poder e não da partilha popular, quando quem comanda é mais importante do que o povo e as decisões são tomadas por poucos, ou são anónimas, ou são impostas sempre por emergências verdadeiras ou presumidas, então a harmonia social é colocada em perigo, com graves consequências para as pessoas: aumenta a pobreza, a paz é posta em risco, manda o dinheiro e as pessoas passam mal. Estar no meio das pessoas, por isso, faz bem não só à vida de cada um mas é um bem para todos.
Estar no meio das pessoas evidencia a pluralidade de cores, culturas, raças e religiões. As pessoas fazem-nos tocar com a mão a riqueza e a beleza da diversidade. Só com uma grande violência se poderia reduzir a variedade à uniformidade, a pluralidade de pensamentos e de ações a um único modo de fazer e de pensar. Quando se está com as pessoas toca-se a humanidade: nunca é só a cabeça, há sempre também o coração, há mais concretude e menos ideologia.
Para resolver os problemas das pessoas é preciso partir de baixo, sujar as mãos, ter coragem, escutar os últimos. Penso que é espontânea a pergunta: como é que se faz assim? Podemos encontrar a resposta olhando para Maria. Ela é serva, é humilde, é misericordiosa, está a caminho connosco, é concreta, nunca está no centro da cena mas é uma presença constante. Se olharmos para ela encontraremos a melhor maneira de estar no meio das pessoas. Olhando para ela podemos percorrer todas as sendas do humano sem medo e preconceitos, com ela podemos tornar-nos capazes de não excluir ninguém.”
Sem perdão?
Laurinda Alves, Observador, 22.11.2016
Gosto muito, muitíssimo, do encontro de Jesus com a mulher adúltera, por tudo o que me diz quem está dentro e fora de cena. Não gostei sempre desta passagem e confesso que durante muitos anos a evitei por me chocar o apedrejamento eminente, o terrível suspense sobre o destino imediato daquela mulher e a sua fragilidade perante um musculado colectivo de juízes de bancada, prontos a atirarem as suas pedras. Horrorizava-me a atitude condenatória, e mesmo sabendo que Jesus estancou a ira dos mortais e travou aqueles homens, custava-me encarar um bando de acusadores que afinal nos representa a todos nós, sempre prontos a julgar e a condenar.
Comecei a conseguir ver melhor o filme dos acontecimentos quando aprendi a ler os Evangelhos fazendo uma composição do lugar. Olhando para a geografia, detendo-me em cada um dos personagens, vendo o espaço em que se movem, ouvindo o que dizem, vendo o que fazem, interpretando os silêncios e meditando as palavras de cada um. Ensinaram-me a rezar desta maneira muitos anos depois da minha catequese. Na infância, e ainda durante a adolescência, o inferno parecia ter mais peso e mais poder que o céu. Deus estava em toda a parte, mas era muito mais para me controlar e acusar, do que para me perdoar.
Lembro-me de ter conversas com os meus irmãos e um deles me dizer que tinha pesadelos com o inferno. Nunca tive, mas percebia que ele os tivesse e sofresse com isso. Afastou-se da Igreja, dessa igreja, quero dizer, por não conseguir suportar um olhar permanentemente delator. Tive a sorte de anos mais tarde encontrar outra Igreja e outros padres, muito mais capazes de revelar a bondade e a misericórdia de Deus. E foi então que, para mim, Ele passou de impiedoso a indulgente. De castigador a amnistiador.
Aos cinquenta e (quase) cinco anos dou-me conta de que, mesmo sem ter a noção disso, a minha vida espiritual adulta se construiu a partir da imagem da mulher que os homens queriam delapidar. Não por ela ou por eles, mas pela entrada de Jesus no cenário. Pela maneira como resolveu um drama aparentemente sem solução. Tranquilo, sem pressas e capaz de ajoelhar para ouvir, Jesus não desatou aos berros. Nem mandou parar tudo para ele próprio fazer justiça. Muito menos travou a violência com mais violência. Simplesmente fez-se presente e notado, para poder ser ouvido. Fez perguntas em vez de dar respostas. E não se deu ao trabalho de dar conselhos por saber que quase nunca são bem vindos.
Ao contrário dos moralistas e justiceiros, Jesus manteve o tom e permaneceu no registo habitual de quem acolhe sem julgar, de quem interroga sem moralizar. E no silêncio escreveu com o dedo na terra. E depois de ter escrito com o dedo na terra, convidou os homens sem pecado ali presentes a atirarem a primeira pedra. E nenhum deles foi capaz de lançar o que tinha na mão. Um por um, todos baixaram os braços e cair e saíram. Em silêncio.
Podemos e devemos perguntar-nos o que pode ter Jesus escrito na terra. Os exegetas estudaram e continuam a estudar este e outros instantes de contornos mais e menos definidos, mas gosto de pensar que a versão que ouvi numa homilia porventura mais iluminada, pode estar proxima da verdade. Fez-me sentido até para perceber como é que aqueles homens, naquela situação, foram ao fundo de si mesmos para encontrarem uma saída radicalmente diferente da que estava escrita na sua lei ou inscrita no coração punitivo de cada um.
Jesus pode ter escrito na terra coisas tão simples como um enunciado de atitudes que habitualmente não catalogamos como pecados. Coisas aparentemente tão insignificantes como a arrogância, a auto-suficiência, a presunção de superioridade, a inveja, a falta de liberdade, a pouca solidariedade, a meia-verdade e por aí adiante. Não terá certamente usado estas palavras, mas o sentido pode ter sido próximo deste. A sua lógica pode ter sido escrever no chão, de forma que todos pudessem ler, que há muito mais pecados que o adultério. Traímos e dividimos mesmo sem nos deitarmos com o homem ou a mulher do outro.
Nunca saberemos exactamente o que ficou escrito no chão, mas sabemos como acaba a narrativa. Saíram todos. E só depois Jesus falou com a mulher e fez mais uma pergunta. Só então disse o que lhe ia no coração. E é deste perdão incondicional que o Papa Francisco falou no encerramento do Ano Santo da Misericórdia. Não para contar uma parábola de há dois mil anos, mas para actualizar a história ao dia e para que cada um se possa continuar a perguntar hoje, amanhã e depois: “e eu, o que é que tenho a ver com isto?”
O Papa Francisco encerrou o Jubileu Extraordinário da Misericórdia com uma Carta Apostólica em que fala de misericórdia e paz, pedindo para continuarmos a viver a misericórdia nas nossas famílias, círculos e comunidades. A exigência do pedido é total, quase brutal, mas o amor sem exigência não é amor.
Cristo Rei
pe. Vitor Gonçalves, pároco de S. Domingos – Lisboa, Voz da Verdade, 20.11.2016
“Se és o Rei dos judeus, salva-Te a Ti mesmo.”Lc 23, 37
“Senhor, que eu possa trazer mais um!…” Esta é a prece de Desmond Doss, o protagonista de “O Herói de Hacksaw Ridge”, o novo filme de Mel Gibson, no meio da sangrenta batalha de Okinawa. Trata-se da história real deste objector de consciência que participou na II guerra mundial, sem pegar em nenhuma arma, e nessa batalha tratou e salvou 75 camaradas feridos tirando-os da frente de batalha. Foi o único soldado condecorado pelos Estados Unidos sem ter disparado um tiro e recusou até à sua morte (em 2006) que se fizessem filmes sobre ele. Mel Gibson, num retrato violentíssimo sobre a guerra, descreve o seu exemplo de fé e determinação: “Quero ir à guerra para salvar os que puder!” diz a dada altura do filme Desmond Moss.
Perante toda a espécie de violência nem sempre pensamos as nossas reações. Luta, fuga, medo, vergonha, desespero, indignação… tudo é possível. Sabemos que a natureza comporta violência: as estrelas explodem, os planetas colidem, há terramotos e vulcões, tempestades e secas, e tudo parece fazer parte da vida em transformação. Que bom termo-nos libertado das ideias (talvez alguns ainda não!) de deus ou deuses vingativos com os desvarios da humanidade, a enviar cataclismos da natureza como castigo. Assim foi o triste exemplo de um padre italiano que afirmou serem os recentes terremotos no centro de Itália um castigo de Deus pelas “ofensas à família e à dignidade do casamento, em particular através das uniões civis dos casais gay”. Isto sim é violência gratuita e ofensiva!
É indescritível a violência de qualquer guerra e ainda recentemente o filme português “Cartas da Guerra” de Ivo M. Ferreira, baseado na correspondência do escritor António Lobo Antunes com a sua mulher, a mostrou com dureza e beleza. Não podemos fechar os olhos a tantas violências bem próximas de todos, mas o que marca verdadeiramente a diferença é o desejo de “salvar quantos pudermos”. Tão oposto ao “salva-te a ti mesmo” que Jesus crucificado ouve por três vezes. Os chefes, os soldados e um malfeitor, na violência do calvário, são porta-vozes da tentação começada no deserto: viver para si e por si, ser o centro do mundo, usar todo o poder em proveito próprio. Mas Jesus vive com o Pai e o Espírito Santo, e o seu amor é transbordante; quer chegar a todos, a mais um…, mais um…, sempre mais um. Assim, na cruz, Jesus promete o Paraíso ao mais inesperado dos pedintes, o ladrão “que roubou o paraíso”, como comentou S. João Crisóstomo, acrescentando: “Ó admirável malfeitor! Viste um homem crucificado, e proclamaste-o Deus!”
Culminamos o Ano da Misericórdia na festa da realeza de Cristo, o Deus connosco a “entrar” em todas as “guerras” humanas para salvar todos, e sempre “mais um”. Este “um” é cada um de nós e também os que encontramos em perigo. Não esqueçamos a feliz imagem do Papa Francisco a comparar a Igreja a um “hospital de campanha”: “Essa é a missão da Igreja: curar as feridas do coração, abrir portas, libertar e dizer que Deus é bom, que perdoa tudo, que é Pai, é terno e nos espera sempre.” Quantos continuam sem ouvir isto?
Quem (não) tem medo da morte?
Pe. Miguel Almeida, sj, no jornal Observador, 12.11.2016
A morte é o evento que nos acompanha desde que somos gente. É o grande mistério da vida que em todas as épocas da história o ser humano tenta perscrutar e decifrar. Aliás, a morte é um processo que começa com a nossa concepção. Morte e vida coabitam o intrincado tecido biológico, físico, mental, psicológico e espiritual que constitui a identidade de cada pessoa.
O mês de Novembro é, no contexto religioso, mas também culturalmente, dedicado à memória daqueles que nos precederam na história. Seja com a celebração cristã do dia de Todos os Santos, seja com a mesma celebração, mas batizada pelo mundo secular como a festa Halloween tão na moda, iniciamos este mês convidados a olhar para o além. Ou, pelo menos, para os que já não estão no aquém. O segundo dia do mês é dedicado a Todos os Fiéis Defuntos, celebração que a liturgia cristã mantém desde o início do séc. XI.
Como sabemos, Halloween é uma contração da expressão All Hallows’ Eve. Interessante. O mundo, compreensivelmente, tem aversão a pensar na morte. O desconhecido sempre provocou medo e a morte é o salto para esse grande desconhecido acerca do qual a ciência, desoladamente, nada consegue balbuciar. Por isso, tentamos fintar a presença desta constante companheira de viagem, que a cada momento, mais ou menos inesperado da vida, nos vai espreitando, a nós e aos que nos rodeiam. O Halloween é só uma maneira de lidar com essa dimensão. Mas basta ligar qualquer canal de televisão ou de séries para vermos a presença dos dead men walking e afiliados. Anjos e demónios, bruxas, espíritos, almas que vêm do outro mundo ou comunicam connosco, constituem uma panóplia de cosmética da morte que povoa o nosso imaginário.
Cada sociedade tem os seus tabus. E tabus são necessários para vivermos, convivermos e nos organizarmos em sociedade. Mas é bom que tomemos consciência de que o tabu é tabu. E a morte, juntamente com a solidão (que é a expressão vivente da morte), é o grande tabu da nossa sociedade. Ainda me lembro como, quando morreu a minha avó – estava eu na escola primária, por isso já lá vão umas dúzias de anos –, tanta gente se preocupava por eu ir ao seu enterro. Até o diretor da escola simpaticamente se ofereceu para ficar comigo enquanto a minha família estaria na celebração. Escondemos a morte das crianças. Mas depois temos que lhes dar uma noite halloween. Como ainda não havia halloween nem séries sobre mortos-vivos, graças a Deus pude ir ao enterro da minha avó de que me lembro com saudade e não com pavor ou trauma de infância.
Mas, será só por ser o confronto com o desconhecido que a morte nos mete medo? Para quem não tem fé, a vida acaba no momento da morte. É o ponto final, o fim. Medo de quê, propriamente, se não há absolutamente nada? Talvez apavore precisamente isso: o absoluto nada, o vazio total. A morte, para quem tem fé e para quem a não tem, levanta a grande questão do sentido da vida. A humanidade não se divide entre quem crê e quem não crê, mas entre quem busca e quem desistiu ou vive instalado. Claro que é mais fácil viver centrado no comezinho do quotidiano, divergindo-se do essencial – ou viver divertido, como diria Pascal dos que se alienam da verdadeira questão da existência humana – do que confrontar-se com o sentido último da vida. Procurar o sentido da existência, que se colhe em cada decisão e em cada opção de vida, é trabalho de todos, crentes e não crentes.
Quem tem fé, nomeadamente quem crê em Cristo, sabe que a vida não acaba; apenas se transforma. Então porque encontramos cristãos com medo da morte? Que imagem de Deus tem quem acredita nele e lhe tem medo? Não certamente a imagem de Deus que Jesus Cristo, a preço tão alto, nos deixou. A presunção da salvação por mérito é isso mesmo: presunção. O Céu é, por definição, graça, gratuito, free of charge. E, se é graça divina, ninguém o merece. Quem de nós pode dizer que merece o Céu? Mas Cristo morreu e ressuscitou por nós. O Céu já nos foi dado. Afirmar o contrário é negar o poder salvador de Jesus Cristo. Negação obviamente compreensível da parte de quem não tem fé, mas ponto absolutamente crucial para o cristão.
Outra história completamente diferente é se eu, no auge da minha pseudo-liberdade, não aceito o que me é dado de graça. Se alguém me quer oferecer um presente e eu não o aceito, não há presente, não há oferta. Se o inferno existe, é isso: a prepotência humana levada ao extremo da autossuficiência que nega a necessidade do outro, que rejeita a gratuidade do amor. O resultado é o egoísmo total, a solidão absoluta – o inferno. E, neste sentido, remeter exclusivamente o Céu ou o inferno para depois da morte é tentação. Cada decisão egoísta que tomamos é já experiência de inferno. E, ao contrário, cada experiência de entrega, de serviço e de amor que fazemos é já antecipar algo de Céu. Claro que, absolutamente, estas experiências se vivem só onde encontra absoluto: na eternidade.
Por isso, o cumprir da Lei de Deus, o amor ao próximo, a vida moralmente correta e boa não é o modo de ganhar o Céu. Ao contrário! É a forma de aceitar e agradecer o Céu que já nos foi dado. Outra vez, o Céu não é um prémio de bom comportamento. Essa é a atitude criticada por Jesus nos fariseus que, por cumprirem as regras, se sentem com direito à salvação. É pura Graça. Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, não é o meio para alcançar o Céu. É o modus vivendi próprio de quem já foi alcançado pelo amor de Deus.
Nas referências escatológicas catequéticas e teológicas, bem como nas grandes representações pictóricas (veja-se a Capela Sistina de Michelangelo) ou na literatura universal (por exemplo a Divina Comédia de Dante Alighieri), encontramos sempre a menção aos três possíveis estados: Céu, inferno e purgatório. Se o inferno é o egoísmo absoluto, a solidão eterna, o Céu é a comunhão plena, o amor total, a alegria, a felicidade eterna. Claro que estamos a tentar titubear o que pouco ou nada sabemos. Mas temos uma certeza: a nossa imaginação ficará sempre aquém da realidade: “está escrito: o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, o coração do homem não pressentiu, isso Deus preparou para aqueles que o amam” (1Cor 2, 9).
O purgatório é frequentemente representado como um “estado intermédio” entre Céu e inferno. Quer dizer, um estado sofredor, mas que garante a entrada na alegria e comunhão eterna com Deus. Almas que ardem no fogo e que são libertadas desse tormento pelos anjos de Deus que as elevam aos Céus. Ou as que pedem as nossas orações, como testemunham tantos monumentos às “Alminhas” espalhados pelas estradas do nosso país, como marca de uma profunda religiosidade popular.
Mas, de facto, purgatório não é substantivo; é adjetivo. É o encontro de amor com Deus que é purgatório. A entrada na comunhão plena com Deus purga-nos. Se formos minimamente honestos, todos reconhecemos que há sempre algo na nossa vida a purificar. Todos nós sabemos o bem que queremos mas tantas vezes fazemos o mal que não queremos (Rm 7,19). Até no bem que fazemos, tantas vezes (sempre?) as intenções não são totalmente puras. Por isso, a imagem do fogo é sugestiva. Simboliza fortemente o ardor de coração que se purifica pelo amor de Deus, tal como o ouro se liberta das impurezas através do fogo. Não por acaso o nosso poeta diz que o amor é fogo que arde sem se ver. O purgatório não é uma questão de tempo (eternidade não é tempo sem fim, mas ausência de tempo), mas de intensidade do encontro com o Amor em Pessoa.
Para quem tem fé, a morte não pode amedrontar. Teria Jesus Cristo morrido e ressuscitado em vão? Se tememos a morte, quão longe estamos da “querida irmã Morte” de S. Francisco de Assis ou do “morro porque não morro” de Sta. Teresa de Ávila!
Mas não, estas expressões não são apologia da morte. Porque não há duas vidas, uma antes e outra depois da morte. A pessoa é a mesma, a sua vida é que se transforma em plenitude de alegria e amor – no fundo o que todos desejamos no nosso íntimo. Por isso, quem não tem medo da morte, geralmente é porque ama profundamente a vida.