Arquivo mensal: Dezembro 2016

Juntos, abrir caminhos de esperança!

Irmão Alois, Riga, sexta-feira 30 de Dezembro 2016

Desde a nossa chegada a Riga na quarta-feira, os nossos encontros e as nossas orações são repletas de uma grande alegria. Ao mesmo tempo, estamos plenamente conscientes da gravidade das situações políticas e económicas que a Europa e o mundo enfrentam. Juntos, abrir caminhos de esperança. Mais do que um tema para o nosso encontro, é uma experiência que fazemos todos os dias. A bela hospitalidade que encontramos em Riga alimenta esta esperança.

(…) O nosso encontro possui uma mensagem para a Europa: optamos por uma fraternidade europeia respeitosa dos particularismos locais, onde a voz de cada povo conta. E comprometemo-nos a criar laços de amizade na Europa e, também, para além das fronteiras dos nossos países europeus.

Para nós, cristãos, a fraternidade tem ainda um outro nome, o da comunhão. Sim, Cristo reúne-nos numa só comunhão, com toda a diversidade das nossas culturas e das tradições cristãs. O ano que começa em breve assinalará o 500º aniversário da Reforma, que ofereceu uma profunda inspiração na Igreja. Contudo, conduziu também a uma infeliz divisão profunda.

Vós, os jovens aqui presentes, protestantes, ortodoxos, católicos, dão testemunho, pela vossa presença, do vosso desejo de unidade. Têm razão: devemos estar juntos para que se revele a dinâmica do Evangelho. À imagem do relato que lemos esta noite sobre os primeiros cristãos, queremos ser um só coração e uma só alma. É quando caminhamos juntos que a esperança que nos chega de Cristo se manifesta claramente. Venceu a morte e o ódio, reúne-nos hoje numa única comunhão de todos os baptizados.

Se estamos unidos em Cristo, podemos ser um sinal de esperança numa humanidade dilacerada. Sim, a nossa fraternidade, a nossa comunhão pode preparar a paz. (…)

fotos de Taizé

Jesus

José Tolentino Mendonça, E, Expresso, 23.12.2016

Jesus permanece para nós um desconhecido, e em muitos sentidos. Ao pensar nele assalta-nos o mesmo desconcerto dos seus concidadãos que o viram largar, ali diante dos olhos de todos, o ofício de artesão que exercia e abraçar um ministério de ensinamento e sanação, para o qual não o consideravam qualificado. Ele era apenas um deles, naquela aldeia que não excederia os seiscentos habitantes, a maior parte ocupados no cultivo do trigo e da oliveira, outros de cerâmica para uso doméstico, outros ainda, como ele e a sua família, dependentes da carpintaria, atividade necessária à manutenção do povoado. Não reconheciam naquele conterrâneo alguém capaz de anunciar o Reinado de Deus e ainda menos de alargar a compreensão sobre as suas implicações históricas. Mas resistindo à oposição dos mais próximos, Jesus tornou-se, de facto, um pregador itinerante que percorria a Baixa Galileia em torno ao ano 30 do século I, anunciando a consolação divina nos conglomerados da região, como cumprimento das promessas do Deus de Israel. Eram cerca de quinze as aldeolas onde ele concentrou a sua itinerância, evitando as pujantes cidades helenísticas da região: Tiberíades e Séforis, por exemplo.

Segundo o testemunho da mais antiga das narrativas evangélicas, o seu primeiro gesto público é de natureza cultural e já em rutura com o modo estabelecido: um rito de imersão praticado segundo o programa de um pregador apocalíptico e fora de formato, João Batista. Ao fazer-se batizar assim, Jesus partilha a aspiração à mudança disseminada nas margens do judaísmo do seu tempo e assume a crítica que muitos faziam ao templo e ao sistema alojado em Jerusalém. Com o desenvolvimento da sua missão, isso só se irá sedimentar. Não passará muito tempo para o vermos protagonizar, com todos os riscos inerentes, a releitura inovadora das instituições que deram identidade messiânica a Israel: não só o templo, mas também a terra e a lei. Algo de inédito começava. Não admira que a questão que persegue Jesus, do princípio ao fim, seja a da origem da autoridade com que ele ousa divergir do status quo.

As suas palavras e ações, seguidas não só por multidões de curiosos, mas por um bando que passa a acompanhá-lo para toda a parte, pedem para ser lidas como manifestação da presença compassiva de Deus: “O Espírito do Senhor está permanentemente sobre mim, pois me ungiu para evangelizar os pobres. Enviou-me a curar os quebrantados de coração, a pregar liberdade aos cativos, a restauração da vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos, a anunciar o ano aceitável do Senhor” (Lc 4,18-19). Jesus vinha colocar em perspetiva a realização da salvação de Deus, salvação que, segundo ele, atuava já no presente: na dignificação da vida para todos e na capacidade de reconciliar os distantes (doentes, endemoninhados, pecadores, estrangeiros…), esse coral de segregados das várias culturas inscritas naquele pequeno território (a cultura judaica, a helenística, cananeia e romana). O constante retrato que os evangelhos dão de Jesus como comensal e amigo dos pecadores assinala essa vontade firme de cruzar as fronteiras, que eram morais e de etnia, género, cultura ou de classe. Todas estas escolhas ficam bem patentes nas suas parábolas, a forma de comunicação por ele privilegiada. Essas curtíssimas narrativas, entre o enigmático e o poético, colocam em crise a imagem ordinária e convencional do mundo, fazem irromper novas possibilidades em situações supostamente encerradas, reinventam a vida.

Uma espécie de milagre

José Tolentino Mendonça, E, Expresso, 17.12.2016

Frederico Lourenço é uma espécie de milagre. E continua a sê-lo depois de recordarmos a geografia familiar donde provém: filho de M.S. Lourenço, um dos intelectuais portugueses mais excêntricos e fascinantes da última metade do nosso século XX; afilhado dileto de João Bénard da Costa; crescido entre uma tribo de criadores, melómanos de ouvido absoluto, curiosos vorazes e viajados; maturado nessa elite culta de espíritos disponíveis, inclinados para improváveis aventuras de
liberdade, com um balanço constante e apaixonado entre artes, mística e política. Um berço desses tanto pode gerar genialidade como inaptidão completa. Frederico Lourenço é um lídimo herdeiro, claro, mas é também, como se pode imaginar, um admirável lutador, um self-made man, umsobrevivente.

Frederico Lourenço é uma espécie de milagre no contexto português. Pense-se no que ele teve de contrariar para entregar-se a empresas tão desproporcionadas, na ambição e no brilho, empresas no fundo tão humílimas e necessárias, como traduzir sem perder o fôlego o cancioneiro homérico, uma parte da lírica grega e agora adentrar-se no mare magnum
que é o repositório bíblico. E realizar isso nas condições possíveis em Portugal, onde a erosão de uma área disciplinar fundamental como a dos estudos clássicos parece um desastre em vias de consumar-se. Certamente é fantástico aquilo que António Barreto sublinhou em nome do júri do Prémio Pessoa que agora lhe foi atribuído, e de que ele é inteiramente merecedor: “Frederico Lourenço é responsável por um fenómeno raro: tornou a ‘Odisseia’ e a ‘Ilíada’ best-sellers entre nós.” Mas como se faria outra justiça ao trabalho do nosso miglior fabbro se, por exemplo, as edições dessas obras pudessem ser ao mesmo tempo best-sellers e bilingues como noutras paragens? Ninguém como Frederico Lourenço lamenta que “a língua de Homero, Platão e do Novo Testamento se tenha tornado, em Portugal, aquilo que em três mil anos de história nunca chegou verdadeiramente a ser: uma língua morta”. Contudo, ele não desiste. Dá o seu melhor. Dá-nos chão. Amplia-nos. Transcende-nos.

Frederico Lourenço é, para quem quiser ver, um milagre em sentido absoluto. Em “Presenças Reais. As Artes do Sentido” (Presença, 1993), George Steiner propõe um território utópico: em vez da cidade dos comentadores, que nos curto-circuitam na tagarelice e na obsidiante espetacularidade, deveria antes emergir “uma cidade de pintores, poetas, compositores, coreógrafos, uma cidade de arte, de música ou de dança, tanto no espaço público como nas universidades”. Uma sociedade de intérpretes, de protagonistas que atravessam o ordálio de fogo da experiência, mais do que o grémio de críticos e analistas que se mantêm sempre a salvo. Ora, como lembra Steiner mais adiante, se a alguma arte se pode chamar interpretação é à tradução, inclusive na sua etimologia. E concretiza: “Não há estudo crítico da inspiração e dos limites do barroco que possa competir com as traduções do castelhano de São João da Cruz feitas por Roy Campbell. Nem nenhuma crítica literária poderá educar o nosso ouvido interior para as transmutações da música do sentido da língua inglesa melhor do que o faz a leitura das sucessivas versões de Homero nas traduções de Chapman, Hobbes, Cowper, Pope, Shelley, T. E. Lawrence e Cristopher Logue.” O que devemos a Frederico Lourenço? Apetece responder com as palavras que aqui George Steiner coloca à nossa disposição: ele educa o nosso ouvido interior para as transmutações da música do sentido. É nessa linha que se deve ler a explicação que Frederico Lourenço dá do seu mester em “Grécia Revisitada” (Cotovia, 2004): “Quando me perguntam a profissão e eu digo ‘professor de grego’, a reação é invariável: ‘Isto serve para quê?’ Houve tempos em que dei por mim a responder “não serve para nada”. Mas agora estou absolutamente convicto da seguinte resposta: ‘Serve para tudo.’” Continuar a ler Uma espécie de milagre

a Alegria

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III do Advento, homilia, Capela do Rato

Queridos irmãos e irmãs,

Celebramos hoje o Domingo Laetare, o domingo da alegria, o terceiro domingo do Advento. Os que caminham experimentam a alegria contemplando, mesmo que ao longe, o lugar para onde se dirigem.

No caminho para Santiago de Compostela há um momento, uma parada, uns 20 Km antes, onde os peregrinos lavavam as suas roupas, robusteciam-se para entrar na cidade de Santiago e dar o abraço a Santiago não como uns mendigos cheios da poeira e do cansaço das estradas, mas renovados e em festa. É essa alegria de uma meta próxima, de um porto, de um abrigo que o nosso coração adivinha que nos faz estar em sobressalto.

E o que é a alegria? O Ricardo Araújo Pereira, que é um especialista na alegria, e temos também de o ouvir, conta muitas vezes que começou a descobrir o humor e o riso em criança, como vêm as grandes vocações, e porque estava em convívio com uma avó muito deprimida. O que ele faz é tentar fazer rir a avó. Cada riso da avó era para ele uma vitória. E como é que ele entendia o riso? Como a capacidade que um corpo tem, sem tocar no outro, de despertar uma reação bonita, feliz no outro.

Então, a alegria não é uma coisa vaga. A alegria é, e os Evangelhos contam isso de forma concreta, um estremecimento. A alegria é uma emoção que nos percorre, a alegria é alguma coisa que nos toca, que nos transforma.

A alegria neste Domingo Laetare também não é uma alegria vaga, uma alegria abstrata. Nós sabemos porque é que experimentamos uma alegria. E esse saber vem da pergunta que João Batista manda fazer a Jesus. A situação é impressionante, João Batista está preso e sabe que a sua morte está próxima, mas manda perguntar a Jesus: “És Tu Aquele que há de vir? Ou devemos esperar outro?” É interessante a palavra em grego porque é um particípio presente: o erchómenos, “tu és Aquele que vem?” E este “o erchómenos”, “Aquele que vem”, é uma espécie de senha para falar do Messias escatológico, do profeta do fim dos tempos, Daquele que havia de vir consumar, dar um sentido pleno à história e à vida. Por isso João Batista manda perguntar: “Tu és Aquele que vem ou devemos esperar outro?” A resposta de Jesus é espantosa, porque não é um “sim” ou um “não”, é uma resposta narrativa: “Ide contar o que vedes e ouvis.” E então o que é que se vê? Vê-se o impacto messiânico na vida concreta daquelas pessoas, vê-se o impacto da chegada de Jesus naqueles corações, e de repente esta liberdade, esta libertação: os cegos veem, os coxos andam, os mortos ressuscitam, a Boa Nova é partilhada com os pobres. Isto é, a história está a ser transformada e isso é uma fonte de alegria, e isso confirma que o erchómenos, aquele que está para vir verdadeiramente chegou.

A razão da nossa alegria não é uma ideia vaga, não é uma expectativa sem rosto, sem nome que cada um de nós alimenta um bocadinho às cegas dentro de si. Não, a nossa alegria brota daquilo que somos capazes de contar uns aos outros, das histórias que somos capazes de narrar. Isto é, da vida multiplicada, da vida acontecida, daquilo que em nome de Jesus continua a acontecer nas nossas histórias, daquilo que a fé em Jesus é capaz de despertar, é capaz de fazer irromper como sobressalto, como emoção, como irradiação de vida em cada um de nós. É isto que contamos uns aos outros, e é isto que dizemos àqueles que estão presos, é isto que dizemos àqueles que aguardam com expectativa a vinda de um sentido, a chegada de uma luz, é isso que nós temos a missão de contar. Isto que vemos e ouvimos.

Queridos irmãs e irmãos, o tempo do Advento é um tempo muito comprometedor, porque é o tempo do Messias. Nós vivemos a nossa vida muitas vezes como se não esperássemos nada, como se tudo estivesse realizado, como se tudo estivesse consumado, como se só contássemos apenas com as nossas forças, com aquilo que trazemos para explicar o enigma da história. Muitas vezes nós fechamos a nossa porta e fechamos mesmo, fechamos o nosso coração e trancamo-lo mesmo, e não contamos com mais nada. Acreditamos em Deus mas isso é uma crença, é uma convicção, não é um poder transformador das nossas vidas. Ora, o tempo messiânico é habitar a tensão do Messias que vem, é não contar só com as pedras que temos na mão, não contar só com as nossas forças, mas contar com aquilo que Ele nos traz. Não apenas contar connosco mesmos, com a nossa fragilidade ou o nosso voluntarismo, mas contarmos com a energia salvadora, transformadora do próprio Jesus. É esse rasgão, essa abertura, essa hospitalidade que fazemos ao Deus que vem que nos sobressalta, que nos enche de alegria, que nos dá razões para acreditar, para festejar.

Queridos irmãos, o Natal não está arrumado numa caixa que nós abrimos anualmente e tiramos de lá os ornamentos, as musiquinhas e as luzinhas, e pomos tudo a piscar e a construir como um teatrinho anual que fazemos uns aos outros para nos consolarmos daquilo que não somos. Não, o Natal é um berço, o Natal é uma manjedoura, o Natal é a possibilidade da mulher e do homem que somos nascer verdadeiramente. E nascer porque Deus vem, Ele é o erchómenos, nascer porque Ele nos levanta. Nascer porque Ele nos faz ser, nos faz ser, nos faz ser!

O Natal não é um símbolo, o Natal é alguma coisa que está a acontecer. É como uma gargalhada que nós damos, como um sorriso que nós damos, forte e que altera o nosso corpo. O Natal também nos altera. E altera-nos não na epiderme, não na superfície, altera-nos profundamente porque Ele está connosco, Ele é o Emanuel, Ele passa a ser o companheiro das nossas vidas. Não contamos apenas com aquilo que trazemos, com aquilo que conseguimos, colocamo-nos por inteiro nas mãos Dele. E isto faz toda a diferença.

Queridos irmãs e irmãos, vivamos o Advento nesta profundidade que Ele nos pede. É tão fácil distrairmo-nos nestes dias que são muito curtos para tudo aquilo que são as obrigações sociais, familiares, culturais, profissionais – temos de estar com isto e com aquilo e mais a pensar no outro. É muito fácil pensar em tudo e deixar de lado o essencial. Por isso, há aqui uma sabedoria, há aqui um alerta, há aqui uma chamada profética a dizer: “Concentra-te, abre os olhos, abre o coração, compromete-te.”

Os ditadores

indiceuhviugD. Nuno Brás, bispo auxiliar de Lisboa, A Voz da Verdade

Não consigo entender os ditadores. A história está cheia dos seus nomes, descrevendo-os habitualmente como homens sanguinários. E se sobre eles faz algum juízo positivo é por causa do império que construíram, a ferro e fogo, com sangue e opressão, nos anos em que estiveram à frente dos destinos dos povos, com os problemas que daí surgiram para todos.

Julgaram-se salvadores; pensaram que eram os únicos a saber resolver problemas, a indicar caminhos, a tomar resoluções. Mas todos foram derrubados. Sem excepção. Uns caíram devido a revoltas populares; outros por causa dos ódios que fizeram nascer à sua volta; outros por doença; outros porque, simplesmente, morreram. Pensaram fazer-se grandes e que o seu nome permaneceria para sempre. O poder humano é, de facto, uma espécie de droga que pode criar uma clara dependência naqueles que o exercem. Nunca lhes passou pela cabeça que mesmo os homens importantes, depois de mortos, são apagados da memória dos que vivem, no espaço de alguns anos. Deles ficará apenas o registo num livro, numa pedra, num resto de arqueologia.

Apenas Deus permanece. E isso relativiza todos os poderes humanos. Senhor do tempo e da história, Deus tudo governa com amor. S. João não hesita em dar uma definição de amor: “não fomos nós que amámos a Deus, mas foi Ele mesmo que nos amou e enviou o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados” (1Jo 4,10). O próprio Deus, para nos mostrar quem é e para nos convidar a participar da Sua Vida, nos mostrou o caminho: fez-se o menor de todos, até à morte de cruz. Só aí o homem encontra o amor e a salvação. Só aí o poder faz sentido.

O Advento proclama, em cada ano que passa, a Verdade de Deus acima dos pensamentos, das vontades e das atitudes humanas. Não é a história que julga – que absolve ou condena – os ditadores ou qualquer ser humano. Ao recordar que o único poder que permanece é o do amor que se esquece de si mesmo – e que é o próprio Deus –, o Advento convida a olhar e a viver o poder que temos não como afirmação da vontade pessoal mas como serviço. No fundo, o Advento é já o começo do julgamento dos ditadores, grandes ou pequenos.