Arquivo mensal: Fevereiro 2017

Pedras Grandes

pe. Vitor Gonçalves, pároco de S. Domingos – Lisboa, Voz da Verdade, 26.1.2017

“Procurai primeiro o reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo.” Mt 6, 33

Certamente alguns já escutaram a história das “pedras grandes primeiro”. Resumo-a: um especialista em gestão do tempo, numa conferência, começou por colocar algumas pedras do tamanho de um punho num frasco de boca larga até o encher. A assembleia concordou que estava cheio. Em seguida, colocou nele gravilha, que ocupou o espaço entre as pedras. Aí a assembleia já não foi tão unânime em dizer que o frasco tinha ficado cheio. Facto que apenas se confirmou quando o orador colocou, de seguida areia, e, por fim, água. Lição a reter? Se não pomos “as pedras grandes primeiro”, não as conseguimos pôr depois! Quais são as pedras grandes da nossa vida? O que pomos primeiro?

Jesus é suficientemente claro. O que os seus discípulos devem procurar em primeiro lugar é “o reino de Deus e a sua justiça”! Tudo mais vem depois, e Ele até diz que nos será dado. O dinheiro, os negócios, as coisas, comer, beber, vestir, divertir ocupam a maior parte do nosso tempo e do coração? Os ídolos do dinheiro e do poder, do luxo e da estravagância absorvem a nossa atenção (e devoção!) e escravizam-nos a uma inquietação doentia? A “cultura do bem estar”, o “fascínio do provisório”, a “economia da exclusão e da iniquidade”, como tem denunciado inúmeras vezes o Papa Francisco, ocupam o primeiro lugar em muitas das nossas atitudes egoístas?

Da teia dos cuidados e preocupações da vida que nos enredam quer libertar-nos Jesus. E apresenta-nos as aves do céu e os lírios do campo para propor a radical confiança em Deus. Que bom seria cruzarmos os braços e esperar que Deus nos satisfizesse as necessidades! Mas o que Jesus diz não é isso: Ele não nos demite do que podemos e devemos fazer, mas convida a estabelecer prioridades. Procurar o reino de Deus e a sua justiça é romper com os círculos viciosos do egoísmo e da ambição desmesurada, é recusar a ganância e o endeusamento dos bens, é recuperar a serenidade e a simplicidade, é valorizar a beleza dada e as pessoas. Quando “vendemos a alma” ao que ainda não temos e não partilhamos generosamente o que somos, a vida torna-se um inferno, e a inquietação faz-nos andar agitados como “baratas tontas”! É preciso recordar o que dizia o profeta Isaías de que Deus nunca nos esqueceria e gravou a nossa imagem nas palmas das suas mãos (cf. Is 49, 15-16).

Não é fácil o exercício de ver o que pomos primeiro. As máscaras de uma religiosidade acomodada são muitas. Os desejos de poder e abundância estão bem envernizados. A indiferença às desigualdades estabelece as convenientes distâncias. Bem irá insistir o Papa Francisco na mensagem para a Quaresma deste ano: “a raiz dos seus males [o rico] é não dar ouvidos à Palavra de Deus; isto levou-o a deixar de amar a Deus e, consequentemente, a desprezar o próximo.” Estamos dispostos a rever o que tem primeiro lugar em nós?

As tendas de Taizé

textos bíblicos com comentário, de Taizé

Tempo para mudar | Actos dos Apóstolos 1,1-11

Após a sua ressurreição, Jesus regressa para junto dos seus discípulos para lhes oferecer dons preciosos: em primeiro lugar, o Espírito Santo, que, como descreve o texto dos Actos dos Apóstolos, é um poder, uma dinâmica, uma força. A este pequeno grupo de seres humanos é conferida uma força de transformação, uma capacidade criadora de colocar as coisas em movimento e de fazer nascer o que ainda não existe.

O segundo é o tempo. Enquanto os discípulos pressionam Jesus para lhes dizer quando chegará o fim dos tempos, Jesus, na sua resposta, inverte a ordem das prioridades: conhecer o tempo do fim não é do vosso âmbito, nem se devem preocupar com isso, nem com quando restaurarei o Reino. Preocupem-se sobretudo em utilizar bem a força que vos é dada.

No fundo, os dois dons andam de mão dada: mais do que uma capacidade criadora, Deus oferece, também, tempo para realizar transformações. Se a Paixão, a Ressurreição, a Ascensão e o Pentecostes são momentos distintos uns dos outros, é porque Deus procura tomar o seu tempo e dar tempo aos seres humanos.

Uma das primeiras consequências é a impossibilidade de julgar as pessoas e a situações de forma definitiva. Perante os nossos «sempre» e os nossos «nunca», os nossos «tudo» e os nossos «nada», frequentemente pronunciados com demasiada rapidez, Deus continua a oferecer-nos o Espírito de transformação e o apelo à paciência. Sem soluções definitivas para os pequenos e grandes problemas da existência, mas com o convite a aceitar o provisório das situações e a trabalhar para evoluções positivas.

O Papa Francisco não para de repetir, em particular aos responsáveis sócio-económicos com que reúne, o que «o tempo é superior ao espaço». Na sua encíclica «A alegria do Evangelho», escreve: «Dar prioridade ao espaço leva-nos a proceder como loucos para resolver tudo no momento presente, para tentar tomar posse de todos os espaços de poder e autoafirmação. É cristalizar os processos e pretender pará-los. Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e transforma-os em elos duma cadeia em constante crescimento, sem marcha atrás. Trata-se de privilegiar as acções que geram novos dinamismos na sociedade e comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão até frutificar em acontecimentos históricos importantes» (Parágrafos 222-225).

Devemos, então, interrogar-nos: se aspiro a ser filho ou filha da ressurreição, como utilizar as minhas competências para iniciar processos novos em vez de o fazer para conquistar territórios?

Além de dar o Espírito Criador e tempo para mudar, Jesus encoraja os seus discípulos a não permanecerem ali após o Pentecostes, mas a ir «até às extremidades da terra». Entrar no longo tempo da paciência de Deus é um pouco como tornar-se um viajante nesta terra. Esta viagem para proclamar a boa nova é geográfica e espiritual: consiste não apenas em viajar até Jesus no sentido primordial do termo, partindo em missão, mas, também, tornar-se viajante na sua própria vida. Viver com poucos recursos, aceitar não conhecer as novas etapas, viver de uma forma provisória, aceitar não planificar nem controlar tudo: o tempo da paciência de Deus é o da mudança. Em detrimento de procurar respostas demasiado definitivas, aceitemos, então, o provisório. Um pouco como em Taizé, onde, após mais de 40 anos de encontros de jovens, preferimos manter as tendas para nos reunirmos em vez de construir mais edifícios. A falta de conforto e o provisório aligeiram-nos; tornam-nos humildes e criativos. Paradoxalmente, esta atitude de viagem interior não é a do consumidor desenfreado, nem a do turista, nem a do adepto da cultura do desperdício, que compra e descarta a um ritmo elevado. Aceitar não ter respostas definitivas leva, igualmente, a oferecer a sua vida num compromisso para sempre. É em nome de uma viagem ainda maior que as pessoas se unem num juramento para sempre. Este juramento não restringe a nossa liberdade criadora, antes a aprofunda e lhe confere, antes da hora, um gosto de eternidade.

- Já me lancei em projectos com um final incerto? O que me levou a fazê-lo? O que me permitiu continuar?

- Ao dar-nos o poder do seu Espírito Santo, Deus inspira-nos a fazer coisas novas. Como utilizar este dom que recebemos?

Ter ADN de índio

Luís Pedro Nunes, E, Expresso, 11.2.2016

Saber a ancestralidade pode dar resultados bizarros

Umas três semanas após ter esfregado vigorosamente a minha bochecha interna com uma zaragatoa no remanso do meu lar e a ter enviado para uma empresa de testes genéticos, eis que o carteiro me entrega um pacote enorme com os resultados. Ia finamente saber tudo sobre os meus antepassados. Contara a uns amigos e as apostas andavam entre o “mouro” com “romani” e “personagem de bandido que faz o Joaquim de Almeida em filmes americanos” com pitadas de europeu. Nada que me preocupasse. Tudo a bem de uma crónica, obviamente. Abri o pacote e saiu um diploma enorme, já devidamente emoldurado, certificando que eu, à presente data (31 janeiro de 2017), tinha realizado um teste de ADN para determinar a minha ancestralidade genética. Resultados biogeográficos ancestrais: Africana (0%). Leste asiático (0%). Europeia (85%). Américo Indígena (15%), bem acima dos 10 por cento de intervalo de confiança. Índio? Americano? Pocahontas? Touro Sentado? Moi?

Os resultados trazem um manual de interpretação dos resultados dos testes de ancestralidade que convém ler antes de repensar o lugar no mundo. Nele se dá a perceber que um “teste de ancestralidade” é uma avaliação estatística e apresenta estimativas da ascendência biogeográfica, pelo que divide a população do planeta nestes quatros grupos recuando aos movimentos migratórios que começaram há mais de 100 mil anos.

O Europeu, por exemplo, abarca todo o território a que chamamos Europa, mas também o Médio Oriente e o Sul da Ásia. África é África. E Indígena americano? Já lá vamos.

Estes testes existem em Portugal há vários anos. E a empresa, a Código ADN, dedica-se mais a fazer testes de paternidade caseiros por pouco mais de 200 euros com 99% de probabilidade de certeza. Se bem que em Portugal seja o Instituto de Medicina Legal a efetuar todos os testes para efeitos jurídicos, esta empresa fornece testes para quem queira tirar dúvidas. Muitas vezes o pai. E outras o filho. Efetuam também um teste pré-natal não invasivo com a colheita do sangue da mãe, que é enviado para os EUA.

Chegamos então a estes testes de ancestralidade. Surgem por vezes pessoas que querem saber se um avô ou um qualquer parente esteve no Brasil ou em África a pintar a manta. E se fez isto ou aquilo. Isso não é possível determinar. Normalmente desistem.

O grande grupo que vem fazer o teste são pessoas que estão dedicadas à sua árvore genealógica e se veem sem grandes opções pela 10ª geração, já com 1024 avós e sem papéis para consultar. Recorrem então à Código ADN.

Houve também o caso de uma empresa que importava bens da China e detetou um cabelo a contaminar um lote. Para saber se tinha tido origem lá ou cá, mandou analisar o ADN do cabelo e a sua ancestralidade, tendo despistado se alguém com ascendentes asiáticos manipulava o produto em Portugal. E o resultado foi que o cabelo era asiático em cerca de 70% de probabilidade.

Voltemos ao índio. É preciso ter em conta que isso da raça é um conceito da treta, não é um termo biológico e não passa de uma construção social. Há 99,9% de ADN que nos une a todos. Esses 0,1% é que definem a etnicidade e há mais variações genéticas dentro das raças do que entre elas.

O que mostra é a grande caminhada da Humanidade. A grande migração Humana, desde o coração de África há 125 mil anos. Para a Ásia e a Europa, até chegarem à América. Criando os referidos quatro grupos de populações fundadoras. Bonito.

Quem for (por exemplo, não sei se existe) 100% europeu, não pense que é um puro cidadão do espaço Schengen. Nada disso. Quer dizer que pertence a um grupo que saiu de África há 50 mi anos para povoar o Crescente Fértil no Médio Oriente, que hoje abrange o Líbano, Síria, Iraque e todo o território entre o Tigre e Eufrates, ramificando-se depois para a Europa e misturando-se com Sul da Ásia (atuais Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão, Uzbequistão).

Deixem-me alertar que até 15% de ADN há pouca influência deste na aparência física. Uma pessoa pode ter 85% de europeia e 15% de africana e ter praticamente nenhumas características físicas vincadas. Racistas de pré-aviso.

Chega-se então ao caso de um fulano que está em Lisboa e é 85% europeu e 15% de índio e está a escrever este texto. Diz o diretor do centro que não me pode dar uma resposta concreta. Há muitos europeus com 10% de sangue Indígena Americano sem nunca terem tido algum ancestral a pisar o Novo Mundo. Isso deve-se ao facto de as populações que migraram para a América serem relativamente recentes e terem deixado marcadores genéticos em Itália, Grécia e Turquia quando subiram para o estreito de Bering, há cerca de 10 mil anos. Com o Império Romano, por exemplo, esses marcadores foram espalhados pela a Europa.

Tenho aqui uma explicação. Esta percentagem (alta) de genes índio ser afinal devido à presença dos romanos na Península Ibérica, por exemplo. Mas estamos a falar de portugueses, conhecidos por engravidar pelo Império fora. Não é de descartar que um filho de um embarcado qualquer tenha regressado como legítimo e seguido a sua vida por cá.

Dizia-me alguém: afinal não ficaste a saber nada. Claro que fiquei. Que pertenço a uma única Humanidade nómada que não tem raças e tem uma história comum, sem fronteiras. O que no momento em que vivemos é fundamental ter em conta e não esquecer.

O que não queremos ver

Isabel Leal, psicóloga, CARAS, 28.1.2107

Vamos percorrendo o nosso caminho, cruzando pessoas e acontecimentos, estabelecendo relações e, também, sofrendo desilusões. Quem nunca se desiludiu com alguém que julgava conhecer muito bem? Pode ter sido a propósito de amigos, considerados do peito, que um dia mostraram inveja ou ciúme, ou se descobriu que foram, para lá de inconvenientes, especialmente maledicentes, traíram uma confidência ou um segredo, ou, descaradamente tomaram o partido de quem considerávamos como adversários ou inimigos. Ou então foi o familiar próximo que em fase de partilhas se abotoou ao que não era dele, reinvindicando o que não tinha direito, dispôs de tudo à revelia dos outros. Quem nunca ouviu contar, lhe aconteceu ou teve por perto casais recém-casados que de pessoas vulgares e bem formadas se transformaram em poços de mesquinhez, capazes de agressividade absurdas e atitudes até aí inimagináveis? Quem nunca se sentiu humilhados, desapoiado ou ignorado pelas pessoas de quem se esperava exatamente o contrário?

Frequentemente ao longo da vida experimentamos situações que nos obrigam a pensar o quão bem conhecemos as pessoas que fazem parte da nossa vida. Concluímos sempre que afinal as conhecíamos mal, não entrando em linha de conta com as nossas expectativas sobre elas. Se ponderarmos um pouco mais, no entanto, somos capazes de concordar que os amigos que se viraram contra nós já o tinham feito em relação a outros, que o irmão com quem discutíamos partilhas sempre foi ganancioso ou se sentiu com direitos especiais, que o ex-cônjuge que agora não reconhecemos já tinha demonstrado noutros aspectos da vida as mesmas características vingativas ou obessivas, que os pais, os filhos, ou os amigos que num dado momentos nos criticam sempre foram demonstrando as usas opiniões sobre o que era melhor para nós e, por isso, devíamos ser ou fazer.

A questão do conhecimento que temos dos outros é sempre minorada pelos afetos que lhes dedicamos e, nesse sentido, achamos que, sejam eles como forem, connosco são diferentes. Esquecemos que os afetos mudam mais rapidamente que as pessoas, daí o confronto frequentemente entre as nossas expectativas e a realidade que, bem vista, sempre lá esteve.

Para o bem e para o mal, só vemos mesmo o que queremos ver.