Luís Pedro Nunes, E, Expresso, 11.2.2016
Saber a ancestralidade pode dar resultados bizarros
Umas três semanas após ter esfregado vigorosamente a minha bochecha interna com uma zaragatoa no remanso do meu lar e a ter enviado para uma empresa de testes genéticos, eis que o carteiro me entrega um pacote enorme com os resultados. Ia finamente saber tudo sobre os meus antepassados. Contara a uns amigos e as apostas andavam entre o “mouro” com “romani” e “personagem de bandido que faz o Joaquim de Almeida em filmes americanos” com pitadas de europeu. Nada que me preocupasse. Tudo a bem de uma crónica, obviamente. Abri o pacote e saiu um diploma enorme, já devidamente emoldurado, certificando que eu, à presente data (31 janeiro de 2017), tinha realizado um teste de ADN para determinar a minha ancestralidade genética. Resultados biogeográficos ancestrais: Africana (0%). Leste asiático (0%). Europeia (85%). Américo Indígena (15%), bem acima dos 10 por cento de intervalo de confiança. Índio? Americano? Pocahontas? Touro Sentado? Moi?
Os resultados trazem um manual de interpretação dos resultados dos testes de ancestralidade que convém ler antes de repensar o lugar no mundo. Nele se dá a perceber que um “teste de ancestralidade” é uma avaliação estatística e apresenta estimativas da ascendência biogeográfica, pelo que divide a população do planeta nestes quatros grupos recuando aos movimentos migratórios que começaram há mais de 100 mil anos.
O Europeu, por exemplo, abarca todo o território a que chamamos Europa, mas também o Médio Oriente e o Sul da Ásia. África é África. E Indígena americano? Já lá vamos.
Estes testes existem em Portugal há vários anos. E a empresa, a Código ADN, dedica-se mais a fazer testes de paternidade caseiros por pouco mais de 200 euros com 99% de probabilidade de certeza. Se bem que em Portugal seja o Instituto de Medicina Legal a efetuar todos os testes para efeitos jurídicos, esta empresa fornece testes para quem queira tirar dúvidas. Muitas vezes o pai. E outras o filho. Efetuam também um teste pré-natal não invasivo com a colheita do sangue da mãe, que é enviado para os EUA.
Chegamos então a estes testes de ancestralidade. Surgem por vezes pessoas que querem saber se um avô ou um qualquer parente esteve no Brasil ou em África a pintar a manta. E se fez isto ou aquilo. Isso não é possível determinar. Normalmente desistem.
O grande grupo que vem fazer o teste são pessoas que estão dedicadas à sua árvore genealógica e se veem sem grandes opções pela 10ª geração, já com 1024 avós e sem papéis para consultar. Recorrem então à Código ADN.
Houve também o caso de uma empresa que importava bens da China e detetou um cabelo a contaminar um lote. Para saber se tinha tido origem lá ou cá, mandou analisar o ADN do cabelo e a sua ancestralidade, tendo despistado se alguém com ascendentes asiáticos manipulava o produto em Portugal. E o resultado foi que o cabelo era asiático em cerca de 70% de probabilidade.
Voltemos ao índio. É preciso ter em conta que isso da raça é um conceito da treta, não é um termo biológico e não passa de uma construção social. Há 99,9% de ADN que nos une a todos. Esses 0,1% é que definem a etnicidade e há mais variações genéticas dentro das raças do que entre elas.
O que mostra é a grande caminhada da Humanidade. A grande migração Humana, desde o coração de África há 125 mil anos. Para a Ásia e a Europa, até chegarem à América. Criando os referidos quatro grupos de populações fundadoras. Bonito.
Quem for (por exemplo, não sei se existe) 100% europeu, não pense que é um puro cidadão do espaço Schengen. Nada disso. Quer dizer que pertence a um grupo que saiu de África há 50 mi anos para povoar o Crescente Fértil no Médio Oriente, que hoje abrange o Líbano, Síria, Iraque e todo o território entre o Tigre e Eufrates, ramificando-se depois para a Europa e misturando-se com Sul da Ásia (atuais Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão, Uzbequistão).
Deixem-me alertar que até 15% de ADN há pouca influência deste na aparência física. Uma pessoa pode ter 85% de europeia e 15% de africana e ter praticamente nenhumas características físicas vincadas. Racistas de pré-aviso.
Chega-se então ao caso de um fulano que está em Lisboa e é 85% europeu e 15% de índio e está a escrever este texto. Diz o diretor do centro que não me pode dar uma resposta concreta. Há muitos europeus com 10% de sangue Indígena Americano sem nunca terem tido algum ancestral a pisar o Novo Mundo. Isso deve-se ao facto de as populações que migraram para a América serem relativamente recentes e terem deixado marcadores genéticos em Itália, Grécia e Turquia quando subiram para o estreito de Bering, há cerca de 10 mil anos. Com o Império Romano, por exemplo, esses marcadores foram espalhados pela a Europa.
Tenho aqui uma explicação. Esta percentagem (alta) de genes índio ser afinal devido à presença dos romanos na Península Ibérica, por exemplo. Mas estamos a falar de portugueses, conhecidos por engravidar pelo Império fora. Não é de descartar que um filho de um embarcado qualquer tenha regressado como legítimo e seguido a sua vida por cá.
Dizia-me alguém: afinal não ficaste a saber nada. Claro que fiquei. Que pertenço a uma única Humanidade nómada que não tem raças e tem uma história comum, sem fronteiras. O que no momento em que vivemos é fundamental ter em conta e não esquecer.