Arquivo mensal: Março 2017

Ter sede

pe. Vitor Gonçalves, pároco de S. Domingos – Lisboa, Voz da Verdade, 19.3.2017

“Disse-lhe Jesus:  «Dá-Me de beber».” Jo 4, 7

Damos tão pouco valor à água! Esquecemos facilmente o privilégio de abrir em casa uma torneira e ter água potável e abundante. Isso é inacessível ainda a milhões de pessoas, sendo causa direta da morte de 361 mil crianças por ano. Poços e fontes ainda estão na memória de muitos, e até na minha que muitas vezes bebi a água do chafariz do Largo da Eira. A água, bem comum e partilhado, é condição para a vida, e buscam-na incessantemente, em planetas distantes, os cientistas do espaço. Símbolo de tantas outras sedes que nem poços, nem fontes, conseguem saciar.

O poço-fonte de Jacob é hoje localizado no mosteiro ortodoxo de Bir Ya’qubl, na cidade de Nablus, na Cisjordânia. Assinalando o encontro de Jesus com a samaritana, lembra-nos como a simbologia do poço-fonte evoca também encontros nupciais em várias passagens da Bíblia. Não era comum ser junto à fonte que muitas vezes nasciam namoros e até casamentos? No diálogo com a samaritana, nas várias sedes e nas águas a receber e a dar, também saboreamos toda a envolvência do amor nupcial de Deus à humanidade que aquela mulher representa.

Não era necessário passar pela Samaria para ir da Judeia à Galileia. Seria até o caminho mais difícil e perigoso, mas Jesus não veio “passear” ao mundo, e sim encontrar-se connosco, nas periferias e desertos que vivemos. Não se vai à fonte ao meio-dia, à hora do sol a pique em que o calor é maior, a não ser que não se queira encontrar quem olha de soslaio ou insulta, como aquela mulher tão bem conhecia. São diferentes a sede da mulher e a de Jesus, e no fundo, são tão iguais. Jesus começa por pedir “água” que a mulher vinha buscar; mas o que deseja é dar “água viva” que a mulher acaba por pedir. A sede de Deus por nós sacia a nossa sede d’Ele. Esta sede humana que é também de verdade, de sermos amados mais do que podemos imaginar e perdoados mais do que julgaríamos possível. A verdade dos amores imperfeitos da samaritana não é obstáculo ao amor transformador que Jesus lhe oferece. E será com a fragilidade do seu testemunho, mas com o transbordar de alegria do coração, que ela irá interpelar aqueles que evitava, a virem também conhecer Jesus.

Ter sede de Deus leva-nos ao encontro. Felizes são os “que têm fome e sede de justiça” (Mt 5, 6) tinha Jesus dito na montanha das bem-aventuranças. Pois o perigo maior é a saciedade, o “estar farto” em que, também nós cristãos, podemos cair. Deixamos de ter sede da “água viva” que faz transbordar o coração e leva ao encontro de outros sedentos. É fácil acomodarmo-nos a riquezas de ouro e poder, de “pechisbeque” religioso e devocional, de ostentação não evangélica. Podemos esquecer a humildade de ter sede de Deus e da felicidade dos outros, e disfarçá-la com “bebidas” que parecem saciar. Que sede vai guiando os nossos passos?

Cinzas

Papa Francisco, Quarta-feira de Cinzas, homilia

«Convertei-vos a Mim de todo o coração, (…) convertei-vos ao Senhor» (Jl 2, 12.13): é o grito com que o profeta Joel se dirige ao povo em nome do Senhor; ninguém podia sentir-se excluído: «Juntai os anciãos, congregai os pequeninos e os meninos de peito, (…) o esposo (…) e a esposa» (Jl 2, 16). Todo o povo fiel é convocado para se pôr a caminho e adorar o seu Deus, «porque Ele é clemente e compassivo, paciente e rico em misericórdia» (Jl 2, 13).

Queremos também nós fazer ecoar este apelo, queremos voltar ao coração misericordioso do Pai. Neste tempo de graça que hoje iniciamos, fixemos uma vez mais o nosso olhar na sua misericórdia. A Quaresma é um caminho: conduz-nos à vitória da misericórdia sobre tudo o que procura esmagar-nos ou reduzir-nos a outra coisa qualquer que não corresponda à dignidade de filhos de Deus. A Quaresma é a estrada da escravidão à liberdade, do sofrimento à alegria, da morte à vida. O gesto das cinzas, com que nos colocamos a caminho, lembra-nos a nossa condição original: fomos tirados da terra, somos feitos de pó. Sim, mas pó nas mãos amorosas de Deus, que soprou o seu espírito de vida sobre cada um de nós e quer continuar a fazê-lo; quer continuar a dar-nos aquele sopro de vida que nos salva de outros tipos de sopro: a asfixia sufocante causada pelos nossos egoísmos, asfixia sufocante gerada por ambições mesquinhas e silenciosas indiferenças; asfixia que sufoca o espírito, estreita o horizonte e anestesia o palpitar do coração. O sopro da vida de Deus salva-nos desta asfixia que apaga a nossa fé, resfria a nossa caridade e cancela a nossa esperança. Viver a Quaresma é ansiar por este sopro de vida que o nosso Pai não cessa de nos oferecer na lama da nossa história.

O sopro da vida de Deus liberta-nos daquela asfixia de que muitas vezes nem estamos conscientes, habituando-nos até a «olhá-la como normal», apesar dos seus efeitos que se fazem sentir; parece-nos «normal», porque nos habituamos a respirar um ar em que a esperança é rarefeita, ar de tristeza e resignação, ar sufocante de pânico e hostilidade.

A Quaresma é o tempo para dizer não. Não à asfixia do espírito pela poluição causada pela indiferença, pela negligência de pensar que a vida do outro não me diz respeito; por toda a tentativa de banalizar a vida, especialmente a daqueles que carregam na sua própria carne o peso de tanta superficialidade. A Quaresma significa não à poluição intoxicante das palavras vazias e sem sentido, da crítica grosseira e superficial, das análises simplistas que não conseguem abraçar a complexidade dos problemas humanos, especialmente os problemas de quem mais sofre. A Quaresma é o tempo de dizer não; não à asfixia duma oração que nos tranquilize a consciência, duma esmola que nos deixe satisfeitos, dum jejum que nos faça sentir bem. A Quaresma é o tempo de dizer não à asfixia que nasce de intimismos que excluem, que querem chegar a Deus esquivando-se das chagas de Cristo presentes nas chagas dos seus irmãos: espiritualidades que reduzem a fé a culturas de gueto e exclusão.

A Quaresma é tempo de memória, é o tempo para pensar perguntando-nos: Que seria de nós se Deus nos tivesse fechado as portas? Que seria de nós sem a sua misericórdia, que não se cansou de perdoar-nos e sempre nos deu uma oportunidade para começar de novo? A Quaresma é o tempo para nos perguntarmos: Onde estaríamos nós sem a ajuda de tantos rostos silenciosos que nos estenderam a mão de mil modos e, com ações muito concretas, nos devolveram a esperança e ajudaram a recomeçar?

A Quaresma é o tempo para voltar a respirar, é o tempo para abrir o coração ao sopro do Único capaz de transformar o nosso pó em humanidade. É o tempo não tanto para rasgar as vestes frente ao mal que nos rodeia, como sobretudo para dar espaço na nossa vida a todo o bem que possamos realizar, despojando-nos daquilo que nos isola, fecha e paralisa. A Quaresma é o tempo da compaixão para dizer com o salmista: «Dai-nos [, Senhor,] a alegria da vossa salvação, sustentai-nos com um espírito generoso», a fim de proclamarmos com a nossa vida o vosso louvor (cf. Sal 51/50, 14), e que o nosso pó – pela força do vosso sopro de vida – se transforme em «pó enamorado».