Arquivo mensal: Junho 2017

We’re off to see the wizard…

José Tolentino Mendonça, E, Expresso, 17.junho.2017

A aventura de não ir a parte nenhuma

Creio que levamos uma grande parte da vida a funcionar como nessa parábola que é “O Feiticeiro de Oz”. Vivemos aspirados por ciclones ou a desejar sê-lo; queremos voar para longe do sítio onde estamos; qualquer mapa que folheemos aparece-nos cheio de promessas encantadas; a felicidade define-se como um lugar que alcançaremos além do arco-íris. A vida comum assemelha-se a um inglório arrastar-se com sapatos de ferro, enquanto rebrilha nos nossos sonhos um extraordinário e levíssimo calçado de rubi. Sentimo-nos emparedados por um quotidiano que asfixia, quando poderíamos estar a trilhar um caminho de tijolos tão amarelos como o sol, na direção da cidade que refulge, e não do regresso previsível ao lugar cinzento que nos abriga. Desta maneira, o primeiro sinónimo que encontramos para a palavra aventura é evasão. E colocamos em cima dessa carta o nosso ouro.

Depois, demoradamente, à custa dos desencontros, passos em falso ou de tempo gasto com outras escutas, aprendemos o que a pequena Dorothy de “O Feiticeiro de Oz” conclui: “Se voltar a procurar os anseios do meu coração, não irei procurá-los além do meu quintal. Se não estiverem lá é porque realmente nunca foram meus.” A moral da história não é propriamente a dissuasão da viagem. É importante que os nossos olhos tenham contemplado tudo aquilo que lhes coube contemplar. E, como recomenda o poema “Ítaca”, de Constantino Kavafis, temos, de facto, de peregrinar a muitas cidades numa rota desejavelmente longa, vivida com euforia, contactando com empórios e sábios, arrematando mercadorias belas, madrepérolas e corais, âmbares e essências que fiquem, para sempre, a perfumar a vida. Mas as verdadeiras viagens são aquelas que nos entusiasmam e iniciam no regresso a nós próprios, sem o qual a viagem é só dispersão e em vez de conhecimento, um amontoar ruidoso e desconexo de experiências em vez de sabedoria. Não nos aconteça aquilo que vem ilustrado num velho relato islâmico: era uma vez um homem que tendo perdido a chave de casa, algures dentro do quarto, foi no entanto para a rua procurar a chave perdida, porque lá havia mais luz. Um dos maiores viajantes da literatura ocidental é Henry David Thoreau e os seus mais de vinte livros, muitos escritos numa solitária cabana nas margens do lago Walden, repetem o mesmo: a vida só tem sentido se for vivida de uma forma deliberada; e não importa por onde viajes ou quanta distância os teus passos alcançaram: a única coisa verdadeiramente importante é saberes quão vivo estás.

Uma vez ensinaram-me um provérbio que se repete na região de Quioto, no Japão. Diz o seguinte: “Não te limites a fazer coisas. Senta-te.” Na sua concisão esconde um programa exigente e cheio de possibilidades. Creio que nessa linha vai também o aforisma filosófico de Pascal: “Toda a infelicidade do ser humano nasce de um simples facto: não conseguir ficar quieto no seu quarto.” É claro que o quarto não é apenas o quarto, mesmo se muitas vezes não é mau começar por aí.

O verão sobrecarrega de atividade as agências de viagens, as redes sociais bombardeiam-nos com sugestões mirabolantes, as autoestradas e aeroportos bloqueiam-se com a nossa sofreguidão, os “ciclones” que fantasiamos durante o ano atiram-nos para paragens que supostamente cumpririam uma função compensatória ou supletiva em relação à vida ordinária. Há, porém, cada vez menos quem nos ajude a abraçar uma aventura só nossa, uma maravilhosa aventura necessária: a aventura de não ir a parte nenhuma.

Passemos à outra margem

José Tolentino Mendonça in “Avvenire”

O tempo constitui fundamentalmente uma espécie de coreografia interior. Dir-se-ia que a própria vida nos solicita a que a escutemos de um outro modo. É com este imperativo que cada um de nós é chamado a confrontar-se: a irresistível necessidade de reencontrar a vida na sua forma pura. Por exemplo: se a linha azul do mar nos seduz tanto, é também porque esta imensidão nos recorda o nosso verdadeiro horizonte; se subimos às altas montanhas, é porque na visão clara de cima se alcança do real, nessa visão luminosa e sem cesuras reconhecemos uma parte importante de um apelo mais íntimo; se vamos à procura de outras cidades (e, nessas cidades, de uma imagem, de um fragmento de beleza, de um não sei quê…), é também porque estamos em busca de uma geografia interior; se simplesmente nos concedemos uma experiência do tempo dilatada (refeições tomadas sem pressa, conversas que se prolongam, visitas e encontros), é porque a gratuidade, e só essa, nos dá o sabor prolongado da própria existência.

Tomemos esse verbo cunhado por Rainer Maria Rilke que diz: «Espero o verão como quem espera uma outra vida». Este verso não nos projeta para fora de nós, antes inicia-nos na arte da imersão interior. Verdadeiramente durante os longos invernos do tempo não é uma vida estranha e fantasiosa aquela que devemos esperar (e para a qual trabalhar!), mas uma vida que realmente nos pertença. É de um verão assim que Rilke fala, e que pode coincidir com qualquer estação: uma necessária oportunidade para nos imergirmos mais a fundo, mais dentro, mais alto, aceitando o risco de colher a vida integralmente e dela nos espantarmos. Na escassez e na plenitude, na dolorosa imprevisibilidade como na sabedoria confiante. Pensemos na proposta que, mais de uma vez, Jesus faz aos discípulos: «Passemos à outra margem» (Marcos 4, 35). Passar à outra margem não significa necessariamente a transferência para outro lugar, diferente daquele em que nos encontramos.

Às vezes, tudo o que nos é preciso é habitar a vida de um outro modo. É simplesmente caminhar com um outro passo nas estradas que já percorremos a cada dia. É abrir a janela quotidiana, mas lentamente, nas consciência de que estamos a abrir. É reaprender uma outra qualidade para uma quotidianidade talvez demasiado abandonada às rotinas e aos seus automatismos. É, no fundo, saborear o gosto das coisas mais simples. Podemos fazer uma viagem inesquecível, fascinados pelo sabor do instante presente, pela contemplação da paisagem que nos é mais próxima, da sabedoria de uma conversa, do silêncio de um livro que já temos entre as mãos. Pensemos no que escreve Marcel Proust: «Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que passámos com um livro predileto». Que desafio, esta noção de «dias plenamente vividos», e como nos é necessário avizinharmo-nos dela! «Passemos à outra margem.» As viagens não são só exteriores. Não é simplesmente na cartografia do mundo que o homem viaja. Fazer uma deslocação comporta uma mudança de posição, uma maturação do olhar, abertura ao novo, uma adaptação a realidades e linguagens, um confronto, um diálogo, inquietante ou encantado, que necessariamente deixa impressões muito profundas. A experiência da viagem é experiência da fronteira e de novos espaços, de que o homem tem necessidade para ser ele próprio. «Passemos à outra margem.»

A viagem é uma etapa fundamental na descoberta e na construção de nós mesmos e do mundo. É a nossa consciência que caminha, descobre cada detalhe do mundo e tudo olha de novo como se fosse a primeira vez. A viagem é uma espécie de motor desse olhar novo. Por isso é capaz de introduzir na nossa vida e nos seus esquemas, na sua organização, elementos sempre inéditos que podem operar essa recontextualização radical que, com um vocabulário cristão, chamamos “conversão”. Muitas mudanças de paradigma epocais (também eclesiais) tiveram a ver precisamente com a aceitação de um olhar viajante sobre o nosso mundo habitual e as suas convenções. O escritor Bruce Chatwin utiliza, a esse respeito, a expressão «alternativa nómada», expressão secularizada mas que pode bem ser reconduzida ao campo teológico e bíblico.

Abraão é um errante. Moisés descobre a sua vocação e missão como mandato de itinerância. Muitos dos profetas de Israel, de Elias a Jonas, viveram como exilados e proscritos. Jesus não tinha onde pousar a cabeça e habitava, dando-lhe sentido, um trânsito permanente. Os seus discípulos são convidados aos quatros cantos da Terra. O cristianismo define-se assim através de uma extraterritorialidade simbólica, sem cidade e sem morada, que permite a fenda, a abertura à revelação de um sentido maior. «Passemos à outra margem», propõe-nos Jesus.

 Trad.: Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura , Publicado em 06.06.2017