Arquivo mensal: Agosto 2018

Ser cristão!

Maria Clara Bingemer, Viver como crentes no mundo de mudança, Paulinas Editora

A fé cristã, hoje, já não acontece em contexto  homogeneamente cristão. Assim, supõe um novo sujeito dotado de uma nova consciência religiosa, que é importante assimilar e integrar ao conjunto do tecido eclesial. Já não seria mais nem a tradição, nem a herança, nem a continuidade de uma cultura banhada de cristianismo que determinaria o que é ser cristão. Trata-se mais de uma opção livre e que deve configurar-se na contramão de uma cultura que nem sempre entenderá os seus gestos e símbolos. No fundo, tratar-se-ia de dar de novo ao amor a primordialidade da cidadania dentro da comunidade que pretende e se dispõe a viver o facto cristão.

A fé cristã foi, desde os seus começos, uma fé no testemunho de outros. Os discípulos acreditaram em Jesus, no qual reconheceram e ao qual proclamaram Testemunha Fiel. As mulheres acreditaram que o túmulo não era o lugar daquele que estava vivo. Os Apóstolos, depois de certa relutância, acreditaram nas mulheres. E assim começou o caminho dessa proposta de vida que foi conquistando o mundo conhecido de então, assente apenas na palavra de alguns frágeis seres humanos que diziam: “Isto é verdade porque eu vi, eu experimentei. Dou testemunho e sou capaz de morrer por isso.”

A fé cristã, desde o início, é, portanto, uma fé de testemunhas, e não tanto de textos. Torna-se cada vez mais verdadeira e verificável a afirmação de que há que fazer uma teologia não de textos, mas de testemunhas. Fazendo apelo aos testemunhos de homens e mulheres que foram alcançados por Deus ao longo da história, torna-se mais evidente a diferença entre fé e religião, fé e instituição. Mais claro ainda, o que constitui a identidade mais profunda dos homens e mulheres de fé que somos chamados a ser e a ajudar outros a serem nesta difusa contemporaneidade em que vivemos. São esses e essas que nos mostram que a fé cristã ainda tem um papel a desempenhar hoje, desde que não perca a sua identidade no meio dos tempos nebulosos que vivemos.

Ser cristão hoje implica ter uma esperança estranha que se revela justamente quando parece que não há futuro e uma liberdade que culmina na doação da vida. O cristão ama tanto a vida – porque se encontrou em profundidade com Aquele que diz que é o caminho, a verdade e a vida – que está disposto a morrer por aquilo em que acredita. E é esta confiança corajosa e alegre que dá sentido ao seu testemunho.

O incrível do Cristianismo encontra-se na proximidade inédita entre Deus e o homem. Portanto, leva a humanidade a uma nova relação consigo mesma, que tem como imagem a comunidade ecuménica de Jesus Cristo.

Ser cristão hoje é viver e proclamar os valores constitutivos da proposta de Jesus, que são:

  • numa sociedade e cultura onde se espera que se odeiem os inimigos, o Cristianismo propõe o amor incondicional, mesmo aos inimigos. Ser cristão é experimentar que se é amado incondicionalmente, independentemente de méritos ou vitórias;
  • numa sociedade onde se responde ao mal com o mal e se busca a vingança, o Cristianismo propõe o perdão, a persistência no mesmo dom, quando não há razões para tal;
  • numa sociedade desigual e injusta, opressora, o Cristianismo propõe uma igualdade radical entre todos. Todos têm a mesma dignidade e merecem o mesmo respeito;
  • numa sociedade que glorifica o poder, o sucesso, o êxito, o Cristianismo propõe a humildade e o serviço como atitudes primordiais e necessárias;
  • numa sociedade onde as leis são simétricas e, portanto, muitas vezes desumanas, o Cristianismo propõe uma justiça que se transcende a si mesma e se torna caridade. Uma justiça não retributiva, mas restaurativa, que não dá ao outro o que merece, mas o que necessita;
  • numa sociedade onde todos buscam o melhor para si, ainda que devendo passar sobre os demais, o Cristianismo propõe a generosidade da partilha e da solidariedade sem limites, que está disposta mesmo a sofrer e a morrer pelos outros.

Tudo isto supõe uma fé em Deus que é mistério, que não é um Ser Supremo ou Substância Suprema, mas sim Espírito de criatividade neste universo. Um Deus em quem, por isso, a fé nunca é permanente e definitiva, mas continuamente procurada. Ser cristão é ser um buscador. Um cristão é um sujeito. Enquanto tal, está em constante crescimento e transformação, em processo permanente de chegar a ser. Portanto, como diz Felix Wilfred, “o “cristão” é um projeto e, obviamente, um projeto inacabado”. Ou ainda Karl Rahner: “Creio que ser cristão é a tarefa mais singela, mais simples e, ao mesmo tempo, aquele pesado jugo leve de que fala o Evangelho. Quando se carrega esse jugo, ele carrega-nos a nós mesmos e, quanto mais tempo vivamos, tanto mais pesado e mais leve chegará a ser. No final, só fica o mistério. Mas é o mistério de Jesus”.

Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio

Quem não arde não vive

cardeal Gianfranco Ravasi, Avvenire

«Diante do crucifixo de uma igreja/ uma vela acesa derrete-se do amor e da fé./ Dá toda a luz, todo o calor que possui,/ sem pensar se o fogo a extingue e reduz a pouco e pouco./ Quem não arde, não vive./ Como é bela a chama de um amor que consome,/ contanto que a fé permaneça sempre assim!/ Eu olho e penso. Treme a chama, a cera cola e o pavio fumega.»

Talvez lá fora se ouça o rumor de uma cidade do litoral repleta de veraneantes, ou se aprecie o plácido silêncio da montanha, ou as ruas desertas e sobreaquecidas de uma grande cidade. Abres a porta de uma igreja e eis, na penumbra, o tremeluzir das velas votivas. Avanças e nesse oásis de quietude sentas-te diante desse lume. É este o quadro que o poeta Trilussa delineia num dos seus não raros poemas religiosos ou espirituais. Sabiamente ele entretece amor e fé, que se fundem na cera daquela candeia que lentamente se derrete. E formula esse princípio basilar da vida autêntica, não só espiritual: «Quem não arde, não vive». Para se ser luz e calor, é preciso consumir-se. Se, ao contrário, preferes conservar-te, talvez te mantenhas longamente, talvez consigas acumular um belo pé-de-meia de coisas e de dinheiro, mas tornas-te uma pedra fria, uma vela extinta, uma semente murcha. A lei evangélica do perder para encontrar, do dar para ser feliz, da morte pela vida é difícil de abraçar, e todavia é o único caminho que permite, inclusive a nós, ter uma vida transfigurada. Como a de Cristo na Transfiguração, esplêndido na sua luz que rasga o gelo e a treva.

tradução de Rui Jorge Martins, Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura