Maria Clara Bingemer, Viver como crentes no mundo de mudança, Paulinas Editora
A fé cristã, hoje, já não acontece em contexto homogeneamente cristão. Assim, supõe um novo sujeito dotado de uma nova consciência religiosa, que é importante assimilar e integrar ao conjunto do tecido eclesial. Já não seria mais nem a tradição, nem a herança, nem a continuidade de uma cultura banhada de cristianismo que determinaria o que é ser cristão. Trata-se mais de uma opção livre e que deve configurar-se na contramão de uma cultura que nem sempre entenderá os seus gestos e símbolos. No fundo, tratar-se-ia de dar de novo ao amor a primordialidade da cidadania dentro da comunidade que pretende e se dispõe a viver o facto cristão.
A fé cristã foi, desde os seus começos, uma fé no testemunho de outros. Os discípulos acreditaram em Jesus, no qual reconheceram e ao qual proclamaram Testemunha Fiel. As mulheres acreditaram que o túmulo não era o lugar daquele que estava vivo. Os Apóstolos, depois de certa relutância, acreditaram nas mulheres. E assim começou o caminho dessa proposta de vida que foi conquistando o mundo conhecido de então, assente apenas na palavra de alguns frágeis seres humanos que diziam: “Isto é verdade porque eu vi, eu experimentei. Dou testemunho e sou capaz de morrer por isso.”
A fé cristã, desde o início, é, portanto, uma fé de testemunhas, e não tanto de textos. Torna-se cada vez mais verdadeira e verificável a afirmação de que há que fazer uma teologia não de textos, mas de testemunhas. Fazendo apelo aos testemunhos de homens e mulheres que foram alcançados por Deus ao longo da história, torna-se mais evidente a diferença entre fé e religião, fé e instituição. Mais claro ainda, o que constitui a identidade mais profunda dos homens e mulheres de fé que somos chamados a ser e a ajudar outros a serem nesta difusa contemporaneidade em que vivemos. São esses e essas que nos mostram que a fé cristã ainda tem um papel a desempenhar hoje, desde que não perca a sua identidade no meio dos tempos nebulosos que vivemos.
Ser cristão hoje implica ter uma esperança estranha que se revela justamente quando parece que não há futuro e uma liberdade que culmina na doação da vida. O cristão ama tanto a vida – porque se encontrou em profundidade com Aquele que diz que é o caminho, a verdade e a vida – que está disposto a morrer por aquilo em que acredita. E é esta confiança corajosa e alegre que dá sentido ao seu testemunho.
O incrível do Cristianismo encontra-se na proximidade inédita entre Deus e o homem. Portanto, leva a humanidade a uma nova relação consigo mesma, que tem como imagem a comunidade ecuménica de Jesus Cristo.
Ser cristão hoje é viver e proclamar os valores constitutivos da proposta de Jesus, que são:
- numa sociedade e cultura onde se espera que se odeiem os inimigos, o Cristianismo propõe o amor incondicional, mesmo aos inimigos. Ser cristão é experimentar que se é amado incondicionalmente, independentemente de méritos ou vitórias;
- numa sociedade onde se responde ao mal com o mal e se busca a vingança, o Cristianismo propõe o perdão, a persistência no mesmo dom, quando não há razões para tal;
- numa sociedade desigual e injusta, opressora, o Cristianismo propõe uma igualdade radical entre todos. Todos têm a mesma dignidade e merecem o mesmo respeito;
- numa sociedade que glorifica o poder, o sucesso, o êxito, o Cristianismo propõe a humildade e o serviço como atitudes primordiais e necessárias;
- numa sociedade onde as leis são simétricas e, portanto, muitas vezes desumanas, o Cristianismo propõe uma justiça que se transcende a si mesma e se torna caridade. Uma justiça não retributiva, mas restaurativa, que não dá ao outro o que merece, mas o que necessita;
- numa sociedade onde todos buscam o melhor para si, ainda que devendo passar sobre os demais, o Cristianismo propõe a generosidade da partilha e da solidariedade sem limites, que está disposta mesmo a sofrer e a morrer pelos outros.
Tudo isto supõe uma fé em Deus que é mistério, que não é um Ser Supremo ou Substância Suprema, mas sim Espírito de criatividade neste universo. Um Deus em quem, por isso, a fé nunca é permanente e definitiva, mas continuamente procurada. Ser cristão é ser um buscador. Um cristão é um sujeito. Enquanto tal, está em constante crescimento e transformação, em processo permanente de chegar a ser. Portanto, como diz Felix Wilfred, “o “cristão” é um projeto e, obviamente, um projeto inacabado”. Ou ainda Karl Rahner: “Creio que ser cristão é a tarefa mais singela, mais simples e, ao mesmo tempo, aquele pesado jugo leve de que fala o Evangelho. Quando se carrega esse jugo, ele carrega-nos a nós mesmos e, quanto mais tempo vivamos, tanto mais pesado e mais leve chegará a ser. No final, só fica o mistério. Mas é o mistério de Jesus”.
Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio