Arquivo mensal: Setembro 2018

Periferia

Ser marginal. Não ser fora-da-lei por desprezo da norma comum. Por amoralidade, miserabilismo, ou abjeção. Ser apenas do lado da vida em que não passa muita gente, se é quase anónimo, fora do alvo que é visado pela notoriedade, curiosidade pública, grande reputação. Ser em humildade, na discrição de nós, na curta dimensão de nós. Não é por comodismo, orgulhosa modéstia, ressentimento. Não por nada disso ou outras coisas disso, mas só para nos não perdermos de nós, não nos esbanjarmos na invasão da dissipação alheia. Não por nada disso mas só pela economia do pouco que nos pertence e mal dá para abastecermos uma vida.

                                                                       Vergílio Ferreira, Conta-Corrente, IV

A fé como risco

Luciano Manicardi, Viver uma fé adulta, Edições Paulinas

A fé é a grata rendição a Cristo, a resposta humana à humanidade divina de Jesus, o sim à vida vivida por Cristo, que também se torna forma da nossa vida; portanto, é um concreto criar espaço para Cristo na nossa existência, um fazer reinar o Espírito de Cristo nas relações e situações quotidianas. Tudo isto na convicção de que a existência de Cristo narra quem é Deus; que a vida de Cristo, vivida na obediência filial a Deus e na doação total aos irmãos até ao paradoxo do amor pelo inimigo, é o sentido último, humano e divino, do viver; e também convencidos de que a fé de Jesus, a que Ele próprio viveu em relação ao Pai, confiando-se a Ele como Abbá, mesmo nos momentos da cruz, quando continuou a confiar-se àquele que o abandonava, é a referência normativa do nosso crer, o seu paradigma.

Aqui percebemos uma aspecto importante da fé cristã: ela consiste num momento de progressiva (e sempre parcial) assimilação do sujeito crente ao sujeito crido (Jesus Cristo): a fé tem em si uma dinâmica pascal, é um ato de morte e ressurreição. A fé atualiza em nós a morte e a ressurreição e de Cristo. Deste ponto de vista, a fé é risco mortal e possibilidade impensada de vida. Risco mortal porque eu ponho a subsistência do meu ser e do meu viver (“Se não acreditardes, não subsistireis”: Is 7, 9) em que não vejo e de quem os outros deram testemunho (a fé revela aqui a sua dimensão eclesial-comunitária intrínseca); é risco porque este movimento exige a minha saída de mim mesmo e a perda de relevância do meu eu e das suas pretensões para viver no espaço do amor gratuito e preveniente de Deus. E talvez o grande risco da fé seja crer no amor. “Nós conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele” (1Jo 4, 16), amor que Deus manifestou na vida, morte e ressurreição de Cristo.

Na sua raíz, a fé cristã é sempre crer no amor de Deus por nós. Portanto, o amor de Deus narrado por Cristo (Rm 5, 6-10), fundamento da nossa confiança e da nossa fidelidade, é , também e simultaneamente, fonte e objeto da nossa fé. É verdade que crer no amor de Deus é um risco, porque aqui o crente tem de enfrentar o enigma, a não evidência desse amor e, às vezes, também da confiança ou da fiabilidade daquele em quem põe a sua fé; mas, aqui, é também o germe da fé como possibilidade não pensada e não crível de vida, de renovação da vida. Nos momentos em que tudo vacila, a fé simplificada, a fé nua, a fé que crê contra toda a evidência, a fé que habita os infernos, torna-se o lugar da esperança.

Na sociedade atual que multiplica os sistemas de segurança e de previdência, que elabora métodos de precisão e de proteção para esconjurar as incertezas e os riscos do futuro, a fé comporta a dimensão do risco. Não é que a fé não conheça a dimensão da certeza, mas a certeza da fé é de uma ordem diferente da certeza do tipo racional. Pascal escreve: “Se não se devesse fazer nada, excepto por aquilo que está certo, não se deveria fazer nada pela religião, porque ela não é certa” (isto é , não está no mesmo comprimento de onda da certeza comum). O saber próprio da fé é o saber da confiança. Se o risco próprio da fé é inerente a este saber e a esta linguagem de confiança, então também parece inerente à fé e, por assim dizer, à sua própria prova. Assim, crer torna-se também um desafio que, hoje, o homem vive quotidianamente, num contexto que requer demonstrações e evidências e, como dizíamos, procura seguranças e quer evitar a incerteza.

Viver uma fé adulta, itinerário para um cristianismo credível, Edições Paulinas,

Luciano Manicardi é prior da comunidade monástica de Bose