Arquivo mensal: Novembro 2018

Dar o que sobra não tem a marca de Deus

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António Couto, bispo de Lamego, Mesa de Palavras

1. Um braçado de gravetos, um copo de água, um punhado de farinha, um tudo nada de azeite. Juntando as pontas destes fios soltos, a viúva de Sarepta prepara-se para fazer uma última refeição de despedida da vida juntamente com o seu filho único. É nesta terra quase a terminar, onde já mal se tem pé, nesta vida quase a expirar, que surge Elias, o homem de Deus, conduzido por Deus, que atira à pobre mulher mais um fio de voz e de esperança a que se agarrar: Deus. Não é a quantidade que importa; o que importa é a totalidade. Pelo fio de voz e de esperança de Elias, Deus não reclama alguma coisa; reclama tudo: o coração todo, a alma toda, a confiança toda, as forças todas! E nem a farinha se esgota na amassadeira, nem o fio de azeite deixa de cair da almotolia! Extraordinária lição para a pobre viúva de Sarepta (Primeiro Livro dos Reis 17,10-16) e para nós, que atravessamos a secura da paisagem desta terra de Novembro.

2. O coração todo, a alma toda, a confiança toda, as forças todas: assim se ouve ou se lê no famoso Shemaʽ Yisraʼel [= «Escuta, Israel], de Deuteronómio 6,4-5, que tivemos a graça de ouvir no Domingo passado. E nesse lugar se diz também a Israel que deve formar com essas palavras um fio de luz e de sentido que deve atar ao coração, às mãos, aos pés, aos filhos (Deuteronómio 6,6-9). Este fio é fundamental para segurar as pontas soltas dos podres, pobres fios da nossa vida.

3. Bem, neste contexto, o fio ou a linha poética e melódica do Salmo 146, que põe Deus tão perto de nós, a fazer justiça aos oprimidos, a dar pão aos que têm fome, a tomar a seu cuidado o órfão e a viúva, e a atirar-me todo para Deus, com aquele grito repetido: «Ó minha alma, louva o Senhor!». O Salmo 146 é uma espécie de carrilhão musical, e convida-nos a cantar os «doze belíssimos nomes» de Deus, decalcando aqui a expressão muçulmana que exalta os «99 belíssimos nomes» de Allah. É claro que os doze nomes que passaremos em revista não celebram tanto a essência divina, mas a sua acção em favor das suas criaturas, sobretudo dos mais pobres e desfavorecidos. É assim que o Salmo evoca o Deus que fez o céu, a terra, o mar, o Deus Criador (1), o Deus da verdade (ʼemet) (2), o Deus que faz justiça aos oprimidos, defensor dos últimos (3), que dá pão aos famintos (4), que liberta os prisioneiros (5), que abre os olhos aos cegos (6), que levanta os abatidos (7), que ama os justos (8), que protege os estrangeiros (9), que sustenta o órfão e a viúva (10), que entrava o caminho dos ímpios (11), o Deus que reina eternamente (12). Este maravilhoso Salmo ajuda-nos a saborear musicalmente toda a liturgia de hoje.

4. Na verdade, «Deus habita nos louvores de Israel» (Salmo 22,4). Habita nos nossos louvores, na nossa dedicação e devotação total a Ele, na nossa vida posta em melodia, fio ou linha melódica que ata o nosso coração ao coração de Deus, a nossa mão à mão de Deus. Foi assim, sacerdotalmente, que Jesus Cristo se ofereceu totalmente ao Pai e a nós e por nós, deixando-nos à espera e a viver dessa espera na esperança da sua Vinda. Um fio tenso de luz e de sentido, a que se chama esperança, nos ata para sempre a esse Senhor-que-Vem. Fio ou linha musical, vital, de cada Domingo, em que cantamos: «Senhor, vem!» (marana tha’), porque sabemos que «o Senhor vem!» (maran ’atta’). O Dia de Domingo deve imprimir em nós o «tique» da esperança, deixando-nos com o pescoço esticado para Deus, situação de quem O espera e vive da sua Vinda a todo o momento. É a Lição de Hebreus 9,24-28.

5. O Evangelho deste Domingo XXXII do Tempo Comum, Marcos 12,38-44, põe em cena e em claro destaque uma viúva pobre que dá a Deus a sua vida toda, em contraponto com os escribas e muitos outros, que fazem bom teatro religioso (não é o caso do escriba do Domingo passado). Excelente inclusão literária no Evangelho de Marcos: da primeira vez que Jesus aparece a ensinar em público, neste Evangelho, o povo exclama: «Este ensina com autoridade, e não como os escribas!» (Marcos 1,22); a terminar a sua atividade pública neste Evangelho, é Jesus que mostra bem que não é como os escribas (Marcos 12,38-40). A cena central passa-se no átrio das mulheres do Templo de Jerusalém, num lugar chamado «Casa do Tesouro» (bêt ha-gazît) (Marcos 12,41-44). Muita gente deitava aí muito do que lhe sobrava, mas a viúva pobre deu «tudo quanto tinha, a sua vida toda!». Fio de sentido que liga este episódio ao que já encontrámos no Primeiro Livro dos Reis 17,10-16.

6. O Evangelho refere que a viúva é pobre. Duplamente desfavorecida, portanto. Enquanto viúva e enquanto pobre. Mas a tecla que soa mais forte, é que deu tudo, ainda que tenha dado pouco: duas pequenas moedas (leptà dýo), ou seja, um quadrante (kodrántês). O quadrante é uma coisa insignificante: é a sexagésima quarta parte de um denário! A pobre viúva recuperá-lo-ia rapidamente, mal se pusesse a pedir! O acento não está posto na quantidade, mas na totalidade. É bom que, observando bem esta cena exemplar, aprendamos a passar da mera ajuda para o dom de nós mesmos. Dom total. O discípulo de Jesus, à maneira de Jesus, deve pôr em jogo a própria vida, e não simplesmente os adereços. Tudo, e não apenas o supérfluo. Dar o que sobra não tem a marca de Deus, não é fazer a verdadeira memória de Jesus, que se entregou a si mesmo por nós (Efésios 5,2), por mim (Gálatas 2,20). O supérfluo deixa a vida intacta. O dom de si mesmo transforma a vida para sempre. A marca deste dom é a totalidade e a definitividade.

7. Dar a vida toda ou entreter-se com os adereços, eis a verdadeira questão, meu irmão deste Domingo de novembro.

Um telemóvel com quatro anos é velho?

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Henrique Raposo, Expresso  9.Novembro.2018

Insisto nesta tecla: não entendo a forma como os média glorificam de manhã o capitalismo das Websummits e das Apple para depois criticarem à tarde as velhas indústrias; qualquer erro ou escândalo na indústria automóvel é amplificado enquanto crime ambiental. Ao mesmo tempo, encolhe-se os ombros ante a fraude intrínseca do mercado de telemóveis que leva o consumidor a comprar um aparelho novo a cada dois anos. Há maior crime ambiental do que a obsolescência programada que é a base do enriquecimento deste sector?

O meu telemóvel só tem quatro anos e as poucas aplicações que tenho já me dizem que não podem atualizar isto e aquilo; para descarregar a distinta aplicação da Web Summit, fui obrigado a apagar o Whatsapp. A mensagem é clara: compra um novo, compra um novo, compra um novo. O fetichismo da mercadoria, o comprar por comprar, nunca foi tão aberrante. Os média falam imenso da necessidade de não gastarmos os recursos do planeta, mas calam-se perante este fetichismo. São os próprios jornais que glorificam cada reencarnação do iPhone, por exemplo. É estranho. Um motor a diesel de um Volkswagen que dura uma década é o fim do mundo (e ainda bem), mas as baterias dos telemóveis já não são um problema. De onde vem o minérios da bateria? E para onde vai a bateria depois de o telemóvel cair em desuso um ano ou dois depois? Porque é que se criou esta ideia de que o novo capitalismo “geek” é mais verde do que o outro?

Além da poupança do planeta, fala-se muitas vezes da necessidade da poupança financeira das famílias. Mas como é que isso é possível num sistema em que um telemóvel de quatro anos é velho? Ou seja, a economia representada pela Web Summit torna impossível a poupança do planeta, por um lado, e poupança da nossa carteira, por outro. O fetichismo da mercadoria nunca foi tão perigoso, porque as pessoas assumem que trocar de telemóvel é um ato da natureza.

Zona de silêncio

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Gonçalo Cadilhe, Visão 31.10.2108

É talvez o mais surreal sinal de trânsito que alguma vez verás na tua vida. Um encapuçado de perfil com o dedo esticado à frente dos lábios. O encapuçado não representa um algoz ou um clandestino. A vestimenta que ele usa seria quase universalmente reconhecida como a de um religioso, de um despojado por livre-arbítrio, a roupa de um homem de Deus. O hábito do monge. O gesto que ele faz também seria quase universalmente reconhecido: o gesto a indicar silêncio.

A estrada estreita, escavada na montanha, a pique sobre o abismo, em curva e contracurva; e a vegetação cerrada e escura que não permite ver para lá da curva e da contracurva, transmitem a sugestão permanente de perigo na condução e o mais sensato seria avisar com umas boas buzinadelas a quem vier em sentido contrário que estou aqui. Mas o sinal de trânsito não o permite. “Zona de Silêncio.”

A estrada conduz a um parque de estacionamento ao lado de um edifício sóbrio e solene. Saindo do automóvel, percebes melhor a configuração da zona de silêncio. É um vale profundo e apertado, coberto de um manto denso de bosque impenetrável e para cima das colinas verdes, quando a inclinação já não permite mais árvores, erguem-se falésias brancas, verticais, majestosas, mas também intransponíveis. Ninguém vem parar por acaso a este vale, só uma determinação de ascetismo e isolamento conduziriam um ser humano aqui.

Ainda faz calor mas sente-se já na humidade da terra e na inclinação do sol que em breve chegará o tempo do frio. E frio, aqui, significa frio. Tal como o silêncio, aqui, já percebeste, significa silêncio. Entro no edifício. Neste, posso entrar: é o museu, aberto a turistas, do mosteiro da Grande Chartreuse. Mas no corpo central do complexo monástico, dois quilómetros mais para lá, por uma estrada semeada de sinais de trânsito “Zona de Silêncio”, não é permitida a entrada a nenhum de nós que chegamos da vida real, do mundo exterior, dos tempos modernos. É um dos poucos mosteiros de clausura que ainda resistem no planeta. Um testemunho anacrónico de uma opção existencial que até há bem poucas décadas era bastante comum no cristianismo. Imagina-te a tomares a decisão de te retirares para um mosteiro no meio dos Alpes, coberto por neves permanentes durante meses seguidos, dedicado a uma vida de oração, contemplação, trabalho manual e silêncio. Para sempre. Imagina-te a chegares a casa e anunciares aos teus pais, ou à tua mulher, ou aos teus amigos de copos e futebol: “Vou viver para um mosteiro de clausura. Adeus.” Não é um “até qualquer dia, até breve”. A clausura é para sempre.

O mosteiro foi fundado em 1084, dando início à Ordem dos Cartuxos que, nos séculos, se espalharia pelo mundo inteiro. Este mosteiro é, ainda hoje, a casa-mãe da ordem. No seu apogeu, só aqui na Grande Chartreuse terão vivido uns 200 monges. Hoje, a ordem toda, no mundo inteiro, conta com pouco mais de 300. No mosteiro, resistem 30 homens.

Subo pelo trilho que permite ver o complexo desde o alto, inserido no meio desta paisagem extraordinária, serena, agreste. Lá em baixo, imenso, arranjadinho, delicado como um kit para crianças, estende-se a Grande Chartreuse. Mas só vejo os telhados, o resto está encoberto, reparado de olhares indiscretos. Imagino claustros limpinhos, jardins geométricos, sebes aparadas, lenha cortada toda igual, celas luminosas mas isoladas. Lá em baixo, oração, trabalho manual, contemplação.

Regresso ao carro rodeado de um silêncio imóvel e infinito. Um corvo grasna no céu. O vento sibila entre as árvores, a água de um riacho gargareja. Um sino toca, algures. Sons que, aqui, fazem parte do silêncio.