Arquivo mensal: Fevereiro 2019

A perfeita alegria

José Tolentino Mendonça, E, Expresso 23.fevereiro.2019

É uma arte difícil, a alegria. Por uma lado, sabemo-la próxima e acessível, como se os nossos dedos pudessem, a cada momento, e sem esforço, alcançá-la. Mas sabemos também como nos escapa, como é precária, dolorosa e inexplicável a alegria. Como nos obriga a procuras extenuantes e a desertos cujo fim não de divisa. Não admira, por isso, que muitos desistam da alegria e se metam a caminhar, vida fora, excluindo-a do seu alforge. A alegria, porém, é uma condição necessária da existência. Sempre que ela nos falta temos de interpretar isso como uma iniludível sintoma, a que é preciso atender. Temos de nos interrogar sobre o porquê do nosso viver burocrático e tristonho, o porquê do nosso passo precocemente anoitecido, do nosso errar entre o peso e a cinza de onde a alegria se ausenta.

Não raro o problema é fazer depender a alegria de motivações acidentais, que nada têm que ver com a sua essência julgamos extrair a alegria do sucesso, da abundância, da força, da afirmação, de eficácia, do poder, mas o tempo encarrega-se de demonstrar o nosso equívoco. Os mestres espirituais ensinam, por exemplo, que a alegria não depende do imediato ou conjuntural: a alegria liga-se às razões profundas do viver. De facto, ela não deve ser reduzida a uma espécie de estado de graça que nos toca em certas estações ou a uma maravilhosa isenção face à turbulência e aos contrastes do mundo. Pelo contrário. Se pensarmos bem, a maior parte do tempo, a nossa vida é a experiência de inacabamento e incompletude, é esboço e é projecto, é movimento transformante. Como escrevia Montale: “Não existe um tempo inteiro:/ temos sempre tantos fios/ a correr em paralelo/ fios em sentido contrário/ que raramente coincidem.” Conta-se nos ‘Fioretti’ (a célebre recolha hagiográfica que se tornou uma das fontes para conhecer o franciscanismo das origens) que regressando São Francisco de uma viagem para o seu convento de Santa Maria dos Anjos, fustigado por um inverno particularmente hostil, o seu companheiro Frei Leão lhe perguntou: “Pai, peço-te, da parte de Deus, que me digas onde está a perfeita alegria” E que São Francisco lhe respondeu desta maneira: “Imagina que ao chegarmos a Santa Maria dos Anjos, completamente encharcados, desfigurados pela lama, pela fome e pelo frio, batemos à porta do convento; o porteiro aproxima-se irritado e diz: ‘quem são vocês’; e nós explicamos: ‘somos dois dos vossos irmãos’; mas ele responde, ‘vê-se claramente que estão a mentir, são, sim, vagabundos que roubam as esmolas destinadas aos pobres. Fora daqui!’. Quando o irmão porteiro nos fechar a porta, e nos abandonar sem apelo à neve e à fome, se soubermos suportar tal injúria de bom modo, sem nos perturbarmos e sem murmurarmos contra ele, possuiremos então a perfeita alegria.

“É uma arte de paciência, a alegria. Ela pede de nós a capacidade de construir as nossas expectativas, necessidades, idealizações – coisas a que estamos mais apegados do que supomos – e a provar aquela liberdade que vem de abraçar a vida nas suas não-coincidências (como sugeria a verso de Montale), com os seus sofrimentos, os seus revezes, as suas interrogações e pausas, as suas misteriosas travessias. E a fazê-lo sem ressentimentos, mas aceitando que a esperança se expressa de um modo alternativo, prossegue por um caminho outro, capaz de nos surpreender.

Na verdade, é um artesanato a alegria, não um produto prefabricado. É uma coreografia que avança por tentativas e não um enredo prévio, que já dominamos. Somos felizes quando, reconhecendo a nossa própria fragilidade, nos reconhecemos também prometidos não só à alegria, mas à perfeita alegria.

Imagem Viva

Pedro Mexia, E, Expresso, 9.fevereiro.2019

A fé dos outros não me diz respeito; aquilo em que acredito ou não acredito já é um trabalho a tempo inteiro. Mas admito que me faz alguma impressão a total indiferença religiosa. Não a indiferença à fé ou às igrejas, mas ao sagrado enquanto facto antropológico e alegoria do humano. Entendo, e às vezes acompanho, as críticas às intolerâncias e iniquidades das religiões organizadas, incluindo as cristãs, mas sempre achei bizarro que alguém declare, por exemplo, que nunca leu a Bíblia porque é ateu, como se a Bíblia fosse imprestável para incréus.

Uma refutação veemente desse tipo de recusas encontrei-a num artigo que a escritora italiana Natalia Ginzburg (1916-1991) publicou no jornal comunista “l’Unità” a 22 de Março de 1988. Nascida numa família laica de origens judaicas, filiada no PCI, Ginzburg interveio inesperadamente na polémica sobre os crucifixos nas escolas. Não é a questão concreta que aqui me interessa, até porque defendo que num Estado não-confessional os edifícios públicos não devem ter símbolos religiosos; mas impressionou-me a valorização simbólica que a escritora faz da cruz de Cristo, que ela não interpreta exclusivamente como um artefacto religioso. Admitindo que, se fosse professora, preferia ter a cruz na sala de aula, Ginzburg assevera que “o crucifixo não gera nenhuma discriminação” E que é, bem pelo contrário, a imagem de uma revolução, a “revolução cristã que espalhou pelo mundo a ideia de igualdade entre homens”. E, então, pergunta: vamos negar que essa ideia mudou o mundo? E vamos negar que é justo celebrá-la?

Pode contrapor-se que a cruz simboliza para muita gente alguns aspectos do cristianismo bem menos benévolos. Mas o argumento do artigo é que o crucifixo é igualmente um símbolo de todo o sofrimento humano. Os pregos e a coroa de espinhos e a cruz evocam a dor, a solidão, a morte, os males aos quais ninguém está imune. Quem é aquele condenado na cruz? Filho de Deus para uns, judeu perseguido para outros, é para tantos a imagem viva de um homem martirizado pelo amor a Deus e ao próximo. Esta ideia do “próximo” não pode ser indiferente nem a um ateu, muito menos a progressista. Jesus na cruz representa todos aqueles que sofreram e morreram pelos outros, escreve Ginzburg, e esclarece logo que não vê escândalo nenhum nessa afirmação: “Porque antes de Cristo ninguém tinha dito que todos os homens são iguais, e irmãos; todos, os ricos e pobres, crentes e não-crentes, judeus e não-judeus, negros e brancos; e ninguém tinha dito que no centro da nossa existência deve estar a solidariedade entre os homens. E ser vendido, traído, martirizado e morto por causa da fé é uma coisa que pode acontecer a todos. Acho que é bom que os rapazes, as crianças, aprendam isso nos bancos da escola”.

A autora de “Léxico Familiar” (Natalia Ginzburg, Relógio d’Água, 2019) diz que olhamos para o crucifixo como coisa muda que está numa parede ou faz parte da parede, mas que o crucifixo não é mudo nem inócuo: é um símbolo que traz consigo palavras. Palavras cristãs mas que há muito fazem parte da consciência colectiva, palavras como “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão saciados”. pergunta Ginzburg: “Como e onde serão saciados? No Céu, dizem os crentes. Enquanto os outros não sabem nem quando nem onde, mas estas palavras fazem com que sintam, sabe-se lá porquê, a fome e a sede de justiça de forma mais severa, mais ardente e mais forte”.