Arquivo mensal: Abril 2019
Salvos pela fraqueza
José Tolentino Mendonça, E, Expresso 13.abril.2019
Entrar numa igreja em dia de sexta-feira santa é uma experiência que só nos pode deixar atónitos. Olhamos para o tabernáculo e está aberto e vazio, como se tivesse sido espoliado. O altar não tem toalha nem adornos: apenas a pedra nua. Se procurarmos uma cruz, não a encontramos: foi retirada ou oculta ao olhar com um véu. Estamos ali como se estivéssemos num qualquer lugar perdido, rebuscando entre silêncio e escombros. Encontramo-nos numa situação paralela àquela descrita no Evangelho de João, quando os mensageiros vestidos de branco perguntam a Madalena: “Mulher, porque choras?” E ela responde: “Levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram” (Jo 20, 13). É verdade que demasiadas vezes o cristianismo (pelo menos, o nosso) corre o risco do excesso: demasiadas palavras, amontoação de símbolos e de ritualismos… Em dia de sexta-feira santa é o contrário: ocorre uma dramática redução. O espaço religioso esvazia-se até ao osso; torna-se simplesmente anónimo; nada o distingue de qualquer outro lugar desolado da terra. A liturgia, que nessa ocasião se celebra, principia em estrito silêncio e quando os presbíteros chegarem à zona do altar vão atirar-se por terra, longamente jazentes, como que inanimados, mimetizando com o próprio corpo o abandono que toda a comunidade é chamada a experimentar. Que espesso enigma é este? Onde nos conduz este tatear cambaleante, esta celebração assim desprovida, esta radical privação? A única resposta é esta: conduz-nos ao âmago ardente dos mistérios cristãos que, na verdade, são puro escândalo, aturdimento e loucura, pois os cristãos acreditam num Messias crucificado, num Salvador que salva não através da força, mas da impotência. Isso que São Paulo explicitou na Primeira Carta aos Coríntios: “Nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo… e loucura” (1 Cor 1, 22).
Um dos mais importantes teólogos do século XX, o pastor-mártir Dietrich Bonhoffer, rebelava-se contra o recurso que, na prática, os crentes fazem a um deus ex-machina, a um Deus “tapa-buracos”, que se assemelha a uma solução mágica para todos os dilemas humanos. De facto, o cristianismo opera uma corajosa inversão de paradigma: enquanto que a religiosidade natural leva a que o homem procure o Deus poderoso como auxílio para a sua vulnerabilidade, o cristianismo reenvia continuamente o homem à impotência e ao sofrimento de Deus. Segundo Bonhoeffer, “é absolutamente evidente que Cristo não nos socorre em razão da sua omnipotência, mas em razão da sua fraqueza”, pois “Deus deixa-se expulsar do mundo no alto da cruz, Deus revela-se aí impotente e frágil, e só dessa maneira está o nosso lado e nos ajuda”. Neste caso, o que é a fé? Para Dietrich Bonhoeffer, a fé é tomar parte no sofrimento de Deus no mundo, abraçando e cuidando de cada pessoa que sofre, responsabilizando-se solidariamente com esta história, fincando nela os dois pés. Se vivermos agora a difícil história humana, com as suas emergências e apelos, apenas com um pé colocado no chão, teremos depois também apenas um pé colocado no paraíso.
Outra mártir do século XX, a escritora Etty Hillesum, abre-nos para um intenso desafio existencial quando diz: “Eu compreendi que tenho de ajudar Deus.” No diário que redigiu no campo de concentração, deixou escritas estas palavras: “São tempos temerosos, meu Deus. Esta noite, pela primeira vez, passei-a deitada no escuro de olhos abertos e a arder, e muitas imagens do sofrimento humano desfilavam perante mim. Mas torna-se-me cada vez mais claro o seguinte: que tu não nos podes ajudar, mas nós é que temos de ajudar-te, e, ajudando-te, ajudamo-nos a nós mesmos”.