Arquivo mensal: Junho 2019

Deus sem mundo, mundo sem Deus

pe. Anselmo Borges, Diário de Notícias de 16.junho.2019

1. Segundo um estudo da Universidade de St. Mary, Londres (2014-2016), em 12 países europeus, a maioria dos jovens entre os 16 e os 29 anos admitem que não são crentes e que nunca ou quase nunca vão à igreja ou rezam. A República Checa é o país menos religioso da Europa: 91% dos jovens confessam não ter qualquer filiação religiosa. Seguem-se a Estónia, a Suécia, os Países Baixos, onde essa percentagem dos sem religião fica entre os 70% e os 80%. Também noutros países se nota a queda rápida da religião: na França, são 64% a admitir não serem crentes, na Espanha, 55% declaram que não confessam qualquer religião. Perante estes dados, o responsável pelo estudo, Stephen Bullivant, afirmou que “a religião está moribunda” na Europa.

Na Alemanha e em Portugal, a percentagem de não crentes desce para 45% e 42%, respectivamente. Entre os países mais religiosos estão a Polónia, onde só 17% se confessam não crentes, seguindo-se a Lituânia, com 25%.

Também a prática religiosa está em crise. Só na Polónia, em Portugal e na Irlanda, mais de 10% dos inquiridos admitiram que iam à missa pelo menos uma vez por semana. Mas no Reino Unido, na França, na Bélgica e na Espanha, entre 56% e 60% disseram que nunca iam à igreja e entre 63% e 66% que nunca rezam. Logicamente, na República Checa, 70% afirmam nunca ter ido a uma celebração religiosa e 80% nunca rezam.

2. Onde se encontram as razões para esta situação que caminha para uma Europa pós-cristã? As explicações são múltiplas. Mas chamo a atenção para a observação que o grande teólogo Yves Congar, primeiro condenado e, mais tarde, feito cardeal, teve já em 1935: “A uma religião sem mundo sucedeu um mundo sem religião.”

Outro grande teólogo, Philippe Roqueplo, demonstrou essa ausência do mundo na reflexão teológica e, consequentemente, na vivência da vida cristã. Fê-la no famoso e monumental Dictionnaire de Théologie Catholique, elaborado entre 1903 e 1950, em 22 volumes. Ele constatou que nesse dicionário, que deveria abarcar “todas as questões que interessam ao teólogo”, havia ausências de temas fundamentais para a existência humana. Assim, quando se procura amizade, o termo não consta; arte: um longo artigo sobre a arte cristã; beleza: nada; ciência: um longo artigo sobre ciência sagrada, ciência de Deus, ciência dos anjos e das almas separadas, ciência de Cristo, mas sobre a ciência como a entendemos, nada; economia: nada; emprego: nada; família: nada; história: nada; leigo e laicado: nada; mal: vinte colunas; mulher: nada; pessoa: remete para hipóstase; poder: um artigo com cento e três colunas sobre o poder do Papa na ordem temporal; política: nada; profano: nada; profissão: um artigo sobre profissão de fé; técnica: nada; trabalho: nada; vida: um artigo sobre a vida eterna…

3. Não há dúvida: Deus tem que ver com o sentido último e a salvação. Como escreveu L. Wittgenstein, um dos maiores filósofos do século XX, “crer num Deus quer dizer compreender a questão do sentido da vida, ver que os factos do mundo não são, portanto, tudo. Crer em Deus quer dizer que a vida tem um sentido”. Foi neste contexto que Nietzsche, sete anos antes de enlouquecer, escreveu a Ida, a mulher do amigo F. Overbeck, pedindo-lhe que não abandonasse a ideia de Deus: “Eu abandonei-a, não posso nem quero voltar atrás, desmorono-me continuamente, mas isso não me importa.” Numa longa entrevista concedida ao jornal Le Monde, em 2017, Edgar Morin, constatando que a humanidade se sente perdida, afirmou: “O mito da Europa é débil. O mito da globalização feliz está em zero. O mito da euforia do trans-humanismo só está presente entre os tecnocratas. Encontramo-nos num vazio histórico cheio de incertezas e de angústias. Só um projecto de via salvífica poderia ressuscitar uma esperança que não seja ilusão.”

4. A pergunta é: onde e como encontrar essa via de salvação? Todos, incluindo a Igreja, e a Igreja de modo especial, são convocados para encontrar a resposta a esta pergunta decisiva.

Sobre a marginalização da Igreja, concretamente na Europa, escrevia recentemente o teólogo José M. Castillo: “A sociedade “descristianiza-se” a uma velocidade e até a níveis que impressionam quem, pela idade e pelas recordações de família, tem a sensação de estar a viver numa sociedade que, há umas décadas, não podia imaginar.” Mas, afinal, porquê?, qual a razão? Não está a Igreja a ser marginalizada, porque ela própria vive à margem? Castillo acrescenta: “Uma Igreja, que vive à margem da sociedade, é uma Igreja que se não relaciona com a “realidade”, mas que se relaciona com a “representação da realidade”, que a própria Igreja elabora para si, segundo os seus interesses e conveniência. Se a Igreja se situou na “margem” da vida e da sociedade, pretendemos, a partir de fora da sociedade, influenciá-la?” “Se a Igreja não pôde assinar e fazer sua a Declaração dos Direitos Humanos, com que autoridade e com que credibilidade pode falar de amor à humanidade?”

5. Pensando nas relações entre Deus e o mundo, o mundo e Deus, o aquém e o Além, se se não quiser mentir a si próprio nem aos outros, é inevitável virem à ideia estas palavras célebres de Immanuel Kant: “A praxis deve ser tal que não se possa pensar que não existe um Além.”

o peixe

José Tolentino Mendonça, E, Expresso de 15.junho.2019

A verdade é que existem dimensões da nossa existência que não são explicáveis, que não pertencem à ordem da razão lógica. Através de um silogismo ou do conhecimento matemático não chegaremos a apreender o seu sentido. E o mesmo se passa com a técnica e com as outras formas da ciência. Mas também é errado pensar que pela razão afetiva se consegue desfazer o enigma. Podemo-nos talvez aproximar mais profundamente, mas não é por acaso que os grandes mitos do amor são, a maior parte das vezes, mitos da procura de amor, de desejo de amor, não são histórias de fusão, de coincidência perfeita ou de uma reciprocidade sem ângulos.

Também à afetividade se pede que aprenda a abraçar o enigma, que deixe de temer aquela porção inalienável de silêncio e mistério que cada ser humano irradia até ao fim. Amar é também amar o que não compreendemos do outro. Lembro-me que José Augusto Mourão defendia, a propósito deste argumento, uma posição desafiadora. Ele dizia: “O que os biólogos marinhos, a indústria de peixe e os compradores de mitos partilham, é simplesmente isto: ninguém realmente sabe o que é um peixe.” É uma coisa em que pensamos pouco: o papel que na nossa vida cabe a este não saber. Se realmente não sabemos o que é um peixe, temos que retirar daí elações e perguntar: como me posso avizinhar de um peixe? Mourão responde: “Aprendamos a negociar.” Isto é, dispúnhamo-nos a aprender, ouvindo, tentando construir pacientemente um pacto, não vinculados a um saber teórico, mas sendo fiel à observação da própria realidade. Sobre o peixe, há aquele conto instigador de Herberto Helder, no livro “Os Passos em Volta”.

 “Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe. O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava… Ao meditar sobre as razões da mudança, o pintor supôs que o peixe, efetuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose. Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.”

A lei da metamorfose não será certamente a única lei. Há um património de verdade e uma ontologia que persistem e se tornam a chave do que somos. Mas a história do peixe amarelo de Herberto Helder também relata dimensões significativas da vida. Identifico rapidamente duas. Primeiro, a importância daquilo que chamaria uma “espiritualidade do provisório”. E cito Roger Schutz, fundador da comunidade ecuménica de Taizé, que explicava o provisório como o aceitar ir de começo em começo; aceitar a peregrinação, a desinstalação permanente; aceitar que podemos habitar a passagem; aceitar comprometer-se apaixonadamente com a vida não apenas quando temos todas as coisas garantidas, mas porque aceitamos caminhar na confiança. A outra coisa é a necessidade de realizar um percurso de reconhecimento. Reconhecer é antes de tudo identificar: tenho que saber quem é o outro e quem sou eu próprio; tenho de ouvir melhor, aprender a ver em profundidade. Mas o reconhecimento é também a gratidão que me faz compreender que a vida é pura economia do dom.

nem frio nem quente

textos biblicos com comentário, de Taizé

Apocalipse 3,14-16.19-20: Cristo à porta das nossas vidas Cristo ressuscitado diz: «Ao anjo da igreja de Laodiceia, escreve: ‘Isto diz o Ámen, a Testemunha fiel e verdadeira, o Princípio da Criação de Deus: Conheço as tuas obras: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente. Assim, porque és morno – e não és frio nem quente – vou vomitar-te da minha boca. (…) Aos que amo, eu os repreendo e castigo. Sê, pois, zeloso e arrepende-te. Olha que Eu estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, Eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo.’» (Apocalipse 3,14-16.19-20)

Estas palavras vêm do livro do Apocalipse, no final da Bíblia. São destinadas a uma igreja de uma cidade chamada Laodiceia. Pode-se ter a impressão que os cristãos desta cidade estão a passar ao lado das suas vidas. Não estão frios nem quentes, diz o texto. Não estão a favor nem contra algo. Estão tépidos.

Será que tinham perdido o sentido da sua vida? Não acreditavam que aí pudesse haver algo a buscar ou a fazer. Tornaram-se satisfeitos, indiferentes e desligados. O decurso das coisas é-lhes igual. Pensam que não têm necessidade de nada, nem de ninguém. Contentam-se com o que consideram ser as suas riquezas, as suas possibilidades, o seu conhecimento. Tudo isso os torna inaptos a permanecer numa comunhão com Cristo.

Através deste texto do Apocalipse, Jesus convida-os – e, com eles, a nós – a reconhecer o que lhes falta, a procurar a sua riqueza em Deus, a fazer escolhas, a comprometer-se. Numa palavra: a viver. É este apelo à vida que nos dirige Cristo quando bate à nossa porta. É como se dissesse a cada um e a cada uma: não tens tudo na tua existência, há uma dimensão de profundidade que podes ainda descobrir. Faz, então, prova de zelo, podes viver de outro modo!

Com Cristo, é a vida, a vida verdadeira, que bate à nossa porta para que aí reconheçamos Deus. Não em manifestações incomuns ou em acontecimentos extraordinários, mas no humilde quotidiano das nossas existências. O profeta Elias já tinha feito a experiência: Deus raramente derruba as nossas portas com um sismo, fogo ou tempestades. Mais frequentemente, aproxima-se de nós discretamente e convida-nos a discernir a sua presença (cf. 1 Reis 19).

Tudo na nossa vida nos pode aproximar dele. Os acontecimentos felizes e os infelizes são ocasiões para nos virarmos para Deus para lhe expressar o nosso louvor ou a nossa queixa. Poderíamos ver relevo de uma paisagem ou no voo de uma ave o traço da mão do Criador. Poderíamos discernir no rosto da pessoa à nossa frente os traços de Cristo. Poderíamos descobrir numa intuição inesperada o sopro do Espírito. Tudo pode tornar-se local da presença de Deus. Porém, mesmo quando estamos atentos, isso não se faz automaticamente. É possível que Deus bata à nossa porta e nós não o escutemos.

É por isso que no início do texto do Apocalipse se repete: «Quem tem ouvidos, ouça…». Não existe nenhum automatismo. Porém, existe esta promessa: «Eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo». É Deus que opera aqui, é Cristo que vem a nós: e quando escutamos a sua palavra, estabelece-se uma comunhão. O texto exprime com esta imagem a intimidade de uma refeição partilhada.

Quando não o escutamos, resta uma atitude. É desta forma que termina o livro do Apocalipse, onde se lê: «‘Vem!’ Diga também o que escuta: Vem!’» (Apocalipse 22,17). Quando nada sentimos da presença de Deus nas nossas vidas, também nós podemos dizer: «Vem!»

  • O que significa não se ser frio nem quente? Até que ponto este retrato dos crentes da Laodiceia descreve o nosso mundo actual, as nossas comunidades cristãs? Podemos fazer algo a esse respeito?
  •  Como está Cristo a bater à nossa porta hoje? Como podemos ouvir essa chamada? Como lhe podemos abrir a porta?