Arquivo mensal: Julho 2019

O coração da vida

José Tolentino Mendonça, E, Expresso 13.julho.2019

Diz-se que os saberes são aquilo que nos permite ganhar a vida. Mas não podemos esquecer que a sabedoria é aquilo que nos permite verdadeiramente vivê-la. Cada um de nós transporta um conjunto de competências — fruto de múltiplas aprendizagens — que nos dão acesso a um ofício, a um labor, a uma função. Os saberes pertencem a esse plano. A sabedoria, por seu lado, é aquilo que nos faz tocar o coração da vida, os seus porquês entusiasmados, sejam de dor ou delícia, e os seus sem porquês a perder de vista. A nossa tendência, demasiadas vezes, é afunilar a realidade ao trabalho da sua conquista imediata. A luta pela sobrevivência literalmente nos esgota e deixámos por fazer a viagem mais profunda, essa que sem palavras justifica o nosso estar aqui. O místico Silesius escreveu que “a rosa é sem porquê”, desafiando-nos à aventura profunda do viver. E, de facto, precisamos desse viver que não depende da contingência que nos rodeia, nem da exclusiva confirmação que o utilitário ou o funcional possam trazer.

A verdade é que vivemos muito à superfície, a esbracejar, a correr de um sítio para outro, e fazemos disso um hábito. Vivemos dando respostas às solicitações que constantemente nos são feitas, às imagens que se atropelam numa sonâmbula sucessão. Na voragem destas sequências, cada instante emerge como um ponto desconexo que num relâmpago se esvazia e não como testemunho de uma iminência maior que perdura. E é assim que raramente mergulhamos no coração da vida. Raramente pensamos numa vida que nos pertença, e que seja mais do que um tique, mais do que a cega forma rotineira de aparecermos a nós próprios e aos outros. Não tenhamos dúvidas: precisamos de mais do que isso. Precisamos de uma existência que nos expresse, que decline o silêncio, o mistério, a imensidão, o aberto do próprio ser, e não a vidinha sempre à pele, condicionada, diminuída e cheia de retrações.

Acontece-nos isto: olhamos para um jardim, gostamos, não gostamos, intervimos, cortamos, cerceamos e, de repente, temos um jardim geométrico, deslumbrado por formas perfeitas. Contudo, é bom saber que o nosso desejo deste artifício é uma enganadora ilusão, porque a vida é informe, ainda em bruto, ainda inicial. Por isso, ela é viva. Creio que temos de construir os nossos canteiros bem ordenados, mas temos de desejar ardentemente que também as flores de que não conhecemos o nome venham florir à nossa porta. Porque elas nos dão o endereço da existência em cascata, na sua pura torrente, na sua originalidade e verdade.

Uma das formas fundamentais da sabedoria é a descoberta que cada um de nós vai fazendo numa vida adulta, a ciclo e a contraciclo, a tempo e fora do tempo, de que somos inacabados. Não por acaso os mestres espirituais ensinam que um dos maiores obstáculos na vida interior é a perfeição, ou melhor, a ideia da perfeição. Porque, no fundo, ela nos atira para fora da própria vida, e nos mantém como que aprisionados à miragem de uma existência que não é a nossa. Mais importante do que a completude é nos sabermos nas mãos do oleiro. São duas experiências a associar: a do inacabamento e a de habitarmos continuamente um processo de (re)criação. Por exemplo: os dias da nossa vida, em que parece que já não há nada para acontecer, são, mesmo se de uma forma que porventura ignoramos, um tempo de criação. Grande tarefa esta de levarmos a sério a própria vida. Porque o abraço ao que somos é a única possibilidade de um abraço que nos salve. A possibilidade do abraço de Deus.