Arquivo mensal: Agosto 2019

Há ciência no pecado

https://images.impresa.pt/expresso/2015-05-20-Cristina-Margato.jpg-3/1x1/mw-200

texto de Cristina Margato, E, Expresso

Até ao Papa Gregório I (590 a 604 d.C.) os pecados mortais eram dez. Ele conseguiu reduzi-los a sete. Foi dessa lista que hoje conhecemos que o neurobiólogo britânico Jack Lewis partiu para estudar a ciência que existe por detrás do pecado e escrever um livro. Apesar de ter crescido sem acreditar em Deus e até se considerar ateu, o neurobiólogo deu-se conta de que agia como um bom cristão: “Toda a vida resisti ativamente à influência do Cristia­nismo, mas um dia percebi que a minha moral, o sentido daquilo que considerava estar certo ou errado havia sido diretamente retirado do modelo cristão. Sem acreditar em Deus comportava-me como um bom cristão.”

Sabendo que a ciência não tem respostas para todas as questões, Jack Lewis começou a interessar-se pela forma como o cristianismo “estuda” há milénios o comportamento humano: “A ciência é muito mais recente nesta área. O comportamento humano só é estudado há décadas. Há na religião uma velha sabedoria, um conhecimento que resulta de uma coleção de observações feitas por diferentes pessoas, século após século, sobre o que podem ser as regras para uma boa ou uma má vida. Porquê então rejeitar esse conhecimento? Porquê deitar fora o bebé com a água do banho?”

https://images.impresa.pt/expresso/2019-08-20-jack-lewis-01_t-_idp.jpg/original/mw-1920

Foi nesta linha de pensamento que Jack Lewis olhou para os sete pecados mortais, definidos por São Gregório, e descobriu neles sete tipos de comportamento. O orgulho, a gula, a luxúria, a preguiça, a avareza, a inveja e a ira “constituem um bom sistema de categorias”, explica Lewis, num tom assertivo. Na opinião dele, os sete pecados mortais são mais do que regras para evitar o Inferno e ir para o Paraíso: “São regras para a vida.” Regras que evitam sofrimento, garantem cooperação, colaboração e boa convivência dentro de um grupo, mas também a saúde do indivíduo: “A ciência já conseguiu provar que uma pessoa isolada tem uma maior incidência de doenças cardiovasculares, cancro, doenças mentais, como depressão, ansiedade e outras desordens borderline, e logo é provável que vá morrer mais cedo.”

Wook.pt - A Ciência do Pecado

Em “A Ciência do Pecado” (Desassossego, 2019), o livro no qual Jack Lewis defende a clarividência dos sete pecados mortais e a sua importância para a boa saúde de quem os respeita, o neurobiólogo escrutina a literatura existente na área da neurociência, os estudos que registam a atividade cerebral sempre que está em causa um dos comportamentos associados a um dos sete pecados. Acaba por concluir que em quatro, destes sete pecados, é ativada sempre a mesma área do cérebro, aquela que está diretamente relacionada com a dor física e psicológica.

Em cada um dos pecados existem, contudo, componentes benignos e malignos: “Se tivessem sido completamente abolidos, é bastante possível que a nossa espécie nunca tivesse sobrevivido.” E dá exemplos: “O orgulho pode ter consequências saudáveis ou nocivas dependendo de como se manifesta em cada um dos indivíduos. Ser demasiado centrado em si mesmo irrita as outras pessoas, mas não ter orgulho naquilo que fazemos também pode causar problemas. Uma pitada de luxúria é claramente vital para a perpetuação da espécie, mas quando permitimos que a libido domine todas as nossas decisões pode causar grande sofrimento. A gula permitiu aos nossos antepassados caçadores-recoletores sobreviverem durante a escassez de alimentos, mas atualmente mata um número impressionante de pessoas…”

Jack Lewis acredita que o orgulho não foi colocado à cabeça por São Gregório por acaso. O orgulho “alimenta a chama” de outros pecados mortais, e pode levar à luxúria, à gula, à avareza, à ira e à inveja, reduzindo a possibilidade de “forjar relações íntimas, duradouras e cooperantes, com sucesso. (…) O problema é que o excesso de orgulho é já uma realidade, e corresponde a uma pandemia dos nossos dias, a do narcisismo: “O mundo está a tornar-se não apenas mais tolerante para com o exibicionismo obcecado, como parece mais sedento dele.” De acordo com Lewis, o número de pessoas com Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN), e logo com menos capacidade de sentir empatia, ou seja sentir o que os outros sentem, “tem vindo a aumentar firmemente nos Estados Unidos”. O que não é estranho, tendo em conta que há uma “normalização do narcisismo”, reiterada pelas redes sociais e pelos meios de comunicação social. “Não me parece que, em breve, possamos melhorar na área do narcisismo. O comportamento é altamente incentivado em todos os media, seja na televisão ou nas redes sociais, lugares onde os narcisistas obtêm mais sucesso, e onde são incentivados a comportarem-se como idiotas.” É provável que daqui a 20 anos a nossa tolerância para com o narcisismo seja total, alerta o neurobiólogo.

Também é interessante a relação que estabelece entre o consumo de sites pornográficos nos rapazes e a libido sexual: “Começam por provocar uma resposta de excitação sexual gradualmente menor; a seguir, esta diminuição desenvolve-se numa redução generalizada da libido e pode mesmo resultar na incapacidade de obter uma ereção.” A exposição a muita pornografia acaba por treinar os cérebros para produzirem apenas “respostas sexuais a estímulos supernormais, ou seja, mais intenso, mais chocante do que aquele que encontramos na vida normal”. Cria um efeito a que se começou a chamar “pornificação”, a uma cultura de “aceitação de domínio estereo­tipado do homem, assim como das práticas sexuais agressivas”. O que não é surpreendente, tendo em conta a natureza neuroplástica do cérebro: “Os ambientes em que passamos o nosso tempo moldam os cérebros e os cérebros desenvolvem capacidades de dar novas formas aos ambientes, que nos moldam ainda mais os cérebros, e assim sucessivamente.” Razão pela qual, Jack Lewis é um grande defensor da meditação, como instrumento para alterar processos mentais doentios que causam muito sofrimento ou do tratamento com drogas psicadélicas em ambientes clínicos.

Num estudo, citado por Lewis, quanto mais inveja uma pessoa sentia, “maior a atividade gerada na parte dorsal ou superior do córtex cingulado anterior dorsal (dACC)”, ou seja, a mesma área ativada por um narcisista sempre que experimenta a rejeição social”. E quanto mais invejosa era uma pessoa, menor era a sua inteligência emocional, menor também uma determinada área cerebral: “O estudo encontrou uma diferença significativa no tamanho de uma região do córtex pré-frontal dorsolateral (dlPFC) que fica mesmo junto à linha de cabelo da maior parte das pessoas, sobre a testa do lado direito. Quanto mais inveja a pessoa experimentava diariamente, consoante os resultados da pontuação da inveja tendencial, mais pequena era esta zona do dlPFC.” Lewis não se limita a analisar os pecados do ponto de vista da sua área científica. Está preocupado com a forma com estes pecados são utilizados todos os dias para produzirem lucro, na nossa sociedade, e bastante sofrimento em muitos indivíduos, além de uma economia que está a gerar escassez de recursos, e alterações climáticas que colocam a nossa sobrevivência em causa.

No final do livro, avança conclusões curiosas, perante as quais até o próprio Lewis se surpreendeu. À cabeça está o caso de o paracetamol ser tão eficaz a combater a dor psicológica quanto a dor física: “Nem queria acreditar quando li”, confessou ao Expresso. Mas também há uma outra conclusão relativa ao Botox: “As pessoas que colocam Botox na cara apresentam comportamentos menos agressivos, porque os músculos paralisam e deixam de conseguir imitar as caras zangadas dos outros. As injeções reduzem as ativações da amígdala quando são apresentadas a estas pessoas imagens com rostos zangados.”

Para Lewis, não há dúvida de que há alguma ciência nestas regras religio­sas, no sentido em que elas encerram em si sabedoria acumulada, e que uma vida que se relacione com os sete pecados mortais com moderação pode ser mais saudável não só para o indivíduo como para o grupo: “É importante recordar que o que importa é a qualidade das relações pessoais, não a quantidade.” E é por isso que o neurobiólogo não hesita: “Mesmo que não acreditemos em Deus, é melhor que tenhamos em mente estas sete regras, na medida em que isso irá aumentar a qualidade da nossa vida e a nossa possibilidade de sobrevivência. É preciso ir além da tentação. Olhar para nós periodicamente e tentar analisar o nosso comportamento para perceber qual destes tipos de comportamento pode estar desequilibrado.”

Religião e Espiritualidade

Anselmo Borges, Diário de Noticias 25.agosto.2019

1. Não haja dúvidas. A religião, concretamente na Europa, também entre nós, está em queda. O número de agnósticos e de ateus aumenta, para não falar na chamada “prática religiosa”, que desce a olhos vistos. O padre José Antonio Pagola escreveu recentemente um texto com o título “Depois de séculos de ‘imperialismo cristão’, os discípulos de Jesus têm de aprender a viver em minoria”.

Significa isto o triunfo do materialismo crasso ou o que está em causa é mesmo a religião institucional, mas não a espiritualidade? O que é facto é que tenho encontrado cada vez mais grupos interessados na espiritualidade e no aprofundamento da vida interior. Multiplicam-se esses grupos e também a bibliografia sobre o tema. Por exemplo, com sucesso escreveu recentemente o teólogo Francesc Torralba uma obra: La Interioridad Habitada, onde se pode ler: “A educação da interioridade não é, em caso algum, um luxo nem uma questão menor, pois tem como objectivo final o cuidar de si mesmo, e, para isso, desenvolver todas as potencialidades latentes no ser humano, como a memória, a imaginação, a vontade, a inteligência e a emotividade, mas também o fundo último do seu ser: a espiritualidade, admitindo que esta pode adquirir formas, expressões e modos muito diversos em virtude dos contextos educativos e dos momentos históricos. No modelo da interioridade habitada reconhecem-se dois magistérios: o exercício do mestre humano que fala e actua a partir de fora e o do mestre interior que habita lá no íntimo.”

Wook.pt - A Biografia do Silêncio

2. Hoje, quero referir-me concretamente a Pablo D’Ors, padre e escritor. Numa recente entrevista a José Manuel Vidal, director de ReligiónDigital, disse: “As formas tradicionais da Igreja não respondem à sensibilidade e à linguagem contemporâneas.” Numa outra entrevista, a La La Razón, declarou: “Boa parte do descrédito da Igreja deve-se a ela sucumbir ao ritualismo.” Pablo D’Ors publicou um livro célebre do qual se venderam já mais de 150 mil exemplares, com o título Biografia do Silêncio. E é o fundador da associação Amigos do Deserto, que conta com uma rede de meditadores com mais de 500 membros, porque, como afirmou: “Há uma ânsia espiritual muito grande nesta sociedade secularizada.” Deixo aí, a partir destas duas entrevistas, pensamentos que julgo ser urgente meditar.

Porque é que o livro teve tanto sucesso? “Uma das razões do êxito é precisamente a sua oportunidade. Surgiu num momento em que aumentava claramente o interesse pela meditação. O seu prestígio construiu-se sobre o desprestígio da religião. O facto de muitas pessoas terem abandonado as formas religiosas não quer dizer que a sua sede espiritual esteja saciada ou se tenha anulado. Persiste e é preciso procurar novas formas de a alimentar. A meditação é uma delas. Costumo dizer que a religião é o copo e a espiritualidade é o vinho, e o que nos sacia verdadeiramente é o vinho. A religião tem de estar ao serviço de suscitar a experiência espiritual, e nós, os cristãos, contentámo-nos com o copo. As formas, para ir ao fundo da questão, deixaram de ser formas para o conteúdo e encerraram-se em si mesmas. O mal não está no rito, mas no ritualismo. As pessoas não sentem que isso as alimente. A isto junta-se que a linguagem tanto verbal como gestual do cristianismo não responde à sensibilidade nem à cultura contemporânea.” Não podemos esquecer de que tão importantes como o património que recebemos, o Evangelho, são o homem e a mulher de hoje. Por isso, “a nossa fidelidade não é só ao Evangelho, é a este homem e a esta mulher de hoje. Se estivermos longe deles, dificilmente entramos em relação”. Impõe-se que se perceba que “as formas têm de estar ao serviço do fundo, e muitas vezes as formas perdem-nos, pois ficamos no formalismo e privamo-nos de ir ao núcleo da questão. Qual é a urgência fundamental para a Igreja de hoje? Uma renovação espiritual; que estejamos verdadeiramente no nosso centro”.

Para Pablo D’Ors, o silenciamento interior é uma necessidade de primeira ordem. “A meditação é uma prática de silenciamento e quietude. É um trabalho que se faz com o corpo e com a mente e cujo propósito fundamental é o autoconhecimento.” Quando muitas coisas exteriores se foram afundando, ele descobriu a aventura interior, que é um processo de higiene da mente e do coração: “Normalmente temos uma grande confusão intelectual e sentimental. Criámos uma cultura da exterioridade, representada fundamentalmente pelo telemóvel. Quanto maior conexão fora, menor conexão dentro. Perde-se a dimensão interior, porque a nossa cultura nos impulsiona e estimula para estar sempre fora.” Então, nas crises existenciais, as pessoas ficam desamparadas por dentro, pois nem sequer sabem se há “um dentro”. Por isso, “boa parte do êxito de muitas escolas de meditação radica nesta busca. Hoje, não falamos tanto de espiritualidade como de interioridade, que é o modo laico de dizer o mesmo”.

Precisamos de arrumar o nosso interior, para que haja mais espaço, pois, desse modo, distinguimos melhor. É como quando numa casa repleta de coisas começas a tirar o não necessário e começas a ver. Daí surge, paradoxalmente, o segundo fruto: a humildade. “Saber quem és, ter uma visão realista de ti mesmo, essa humildade, esse saber qual é o teu lugar, isso é o que te dá a paz interior.”

Pergunta-se se não há o perigo de estas correntes de espiritualidade serem um pouco individualistas, egocêntricas, ignorando a transformação do mundo. Responde: “Creio que a meditação autêntica não se afasta de Deus, mesmo que isso se não verbalize de maneira explícita. Quem verdadeiramente se conhece a si mesmo, mais cedo ou mais tarde, aponta para o mistério. Esse mistério poderá chamá-lo Deus ou não, mas Ele está lá. Em ti gerou-se uma atitude espiritual.” Quanto à denúncia e ao compromisso com a mudança das estruturas: sim, há o perigo de grupos espirituais caírem num espiritualismo desencarnado, mas a questão é de prioridades: “A justiça social, a denúncia, tudo isso, vem por acréscimo, é o fruto de estarmos centrados. Primeiro, vamos transformando a nossa própria vida. A oração, o nosso próprio espírito transforma-nos e, simultaneamente, vai transformando a vida à nossa volta, a vida familiar, a vida social, a vida do bairro. A vida da nação.”

Deve-se prescindir das religiões? De modo algum. “O mindfulness não é puramente laico, mesmo que os termos e as práticas se apresentem numa linguagem puramente secular. Isto é o que, modestamente, os Amigos do Deserto e eu queremos fazer com o cristianismo. Que seja uma tradução secular, para o mundo de hoje, da mensagem cristã. Para o Ocidente, a figura de Cristo é muito mais próxima do que a de Buda, e por isso o salto cultural que é preciso dar para ser meditador cristão é muito menor. Julgo que prescindir das religiões é um suicídio, porque isso significaria prescindir do nosso passado. Ora, quem prescinde do seu passado não sabe qual é o seu presente.” Não, não há o perigo de obsessão pelo “aqui e agora”. Porque “o sublinhado no presente não deveria fazer-nos perder de vista a importância do passado e do futuro. Recordar é passar a história pelo coração e ajuda-nos a compreender quem somos. Uma árvore sem raiz não se aguenta, o passado é a nossa raiz e é preciso cuidar dela. O mesmo digo do futuro. O homem não é sem projecção e projecto de si. A espiritualidade cristã sempre sublinhou o futuro, o horizonte, e a budista, o presente. Penso que estamos num tempo de síntese.”

A propósito, como se relacionam em Pablo D’Ors “o ego do escritor e o não ego do meditador?” “Devo dizer que para mim silêncio e palavra são duas faces da mesma moeda. O segredo da palavra é o silêncio e o do silêncio, a palavra. Uma palavra nasce matinal no coração do leitor na medida em que foi preparada no silêncio. Para que a palavra seja fecunda, tem de nascer do silêncio. Com o tempo, fui descobrindo que a minha dupla vocação, sacerdotal e literária, é a mesma.”

Então, não existe realmente o perigo maior, que consiste em ficar encerrado em si mesmo, no egocentrismo? “O ego (o eu), que não é outra coisa senão a tendência para auto-afirmar-se, é necessário para viver. Não se trata de matar o ego, mas de colocá-lo no seu lugar.” Por isso, quanto a escutar-se a si mesmo ou a escutar o outro, “é como perguntar o que é que é mais complicado: amar-se a si mesmo ou aos outros. É exactamente a mesma coisa. Por isso digo que a meditação é uma escola de escuta. Se aprenderes a escutar-te a ti mesmo poderás escutar os outros. Ninguém pode dar o que não tem.” Quanto ao egocentrismo: “Eu vejo-me agora a mim mesmo menos egocêntrico do que há uns anos. Mais magnânimo, com a alma maior. O critério para verificar que um caminho de meditação é autêntico é se te torna mais compassivo, mais justo e caritativo. Se o outro tem um papel mais importante na tua vida. A meditação corre o risco de perverter-te, se esquece a dimensão transcendente e se fica pela busca utilitarista de benefícios pessoais.”

O jornalista: “Chama-me a atenção que diga que é mais importante ser si mesmo do que alguém ‘bom’.” Pablo D’Ors: “Refiro-me a que o essencial é o indicativo da graça e não o imperativo moral. O decisivo para a construção de uma pessoa é experienciar o que é, e, na medida em que o fizer, comportar-se-á de uma maneira ou outra. Não temos de estar tão preocupados em ser bons, pela dimensão moral, como pela metafísica do ser. Sermos quem estamos chamados a ser. Se o formos, se na verdade fores tu, serás bom.” Objecção: “Haverá gente que seja ela mesma e seja egoísta.” Resposta: “Isso baseia-se numa visão do mundo, que é a minha, segundo a qual a luta entre a luz e a sombra não é paritária. O que há fundamentalmente é luz. Este ponto de partida não é subjectivo, é contrastável. Por exemplo, se contares quantos comboios descarrilaram hoje no mundo e quantos chegaram ao destino, verás que a imensa maioria chegou bem. Se fizermos o mesmo com tudo, vemos que o bem é significativamente mais. O que acontece é que os meios de comunicação social fazem-nos crer que o que existe é o mal, quando é o contrário. É como o céu e as nuvens: as nuvens podem tapar o céu, mas o que na realidade há é um céu. Estamos bem feitos.” Neste contexto, sobre a sua vocação: “Aos 18 anos. É como quando alguém se enamora e sabe que é a pessoa adequada quando a conhece. Foi uma experiência de encontro com o mistério, com a graça de Jesus Cristo. É uma sedução, um fascínio, um sentir que é o eixo vertebrador da tua vida, que lhe dá sentido, força. Foi a experiência do entusiasmo. Estar habitado pelos deuses, pelo espírito. A experiência de que havia algo substancial que tudo sustenta. Dessa experiência, a mais decisiva da minha vida, nunca duvidei.”

Qual é então o sentido da vida? “Redimir o mundo. Colocar luz onde há trevas, amor onde há desamor, esperança onde há inesperança e desespero, claridade na dúvida. Na medida em que fizermos isso, estamos bem e semeamos o bem.”

3. Está aí, bem à vista, a chave para entender a crise da religião e perceber a conversão de que a Igreja urgentemente precisa para ser o que Jesus quer. Ele passava noites na montanha a rezar e fez a experiência inexcedível do mistério de Deus como Abbá, Papá, querida Mamã. A consequência: amou a todos, por palavras e obras, a começar por aqueles e por aquelas que ninguém ama, porque Deus é o sentido último da existência, não caminhamos para o nada, porque Deus é Amor. Tomás Moro disse-o, numa síntese perfeita: “O fundamento da religião é o medo. O fundamento do cristianismo é o amor.”

Conversem uns com os outros

José Tolentino Mendonça, E, Expresso 24,agosto.2019

Vi uma vez, à entrada de um café, este aviso gentil impresso em tamanho garrafal, impossível de passar despercebido: “Não temos Wi-Fi. Conversem uns com os outros”. E, como tudo na vida, há quem o lesse e entrasse no estabelecimento a sorrir e há quem, com visível desconforto, procurasse outro poiso. Conversar com os outros — ainda o saberemos fazer? Penso em algumas pinturas que representam a história humana como uma conversa. No célebre fresco de Rafael, intitulado “Escola de Atenas”, onde a emergência do

Resultado de imagem para escola de atenas

pensamento filosófico é contada como uma sucessão interminável de conversas: a de Platão e Aristóteles no centro, mas também a de Sócrates, Epicuro, Heraclito, Euclides, Pitágoras ou a da única mulher ali citada, Hipácia, uma importante matemática e astrónoma de Alexandria. Mas penso também nas conversas dos ceifeiros de Bruegel, onde se vê, sob a tortura da fadiga imposta, como a

Resultado de imagem para ceifeiros de bruegel

palavra partilhada é um reduto e um alimento. Ou nesse autorretrato de Matisse,

Resultado de imagem para auto retrato de matisse pijama azul as riscas

conversando com a mulher, ele de pijama azul às riscas, ela de robe verde, a mesma cor da janela aberta sobre uma manhã despreocupada de verão, há mais de cem anos atrás. Não seríamos o que somos sem a conversa.

É evidente que hoje continuamos a conversar (e a cavaquear, a confabular, a conferenciar, a grulhar, a parlamentar, a prosear, etc.), mas parece que contamos menos com o que daí pode provir. Mesmo se não o reconhecemos, à custa de recorrermos a um conhecimento prefabricado que nos é servido num ecrã, tornámo-nos menos curiosos pelo mundo do outro que temos diante de nós. Neste afã por conectar com o distante, empobrecemos a relação com o que está próximo. O nosso discurso povoa-se de intermitências. Estamos e não estamos. A concentração dura o instante de um relâmpago. O tempo real de escuta cai. O baraço que permitimos ao desenvolvimento da palavra é sempre mais curto, porque nesta nossa época o que não for imediato não existe.

As conversas, porém, precisam de tempo. São as deambulações, as digressões e as derivas que nos conduzem à ciência do encontro, que nos desarmam enquanto falamos ou escutamos, que nos sobressaltam ou comovem, que nos deslocam interiormente, que nos interligam. Montaigne definiu a conversa como “um falar franco que abre caminho a um outro falar”. É um belo modo de descrever aquilo que numa conversa verdadeira acontece, quando a confiança oferecida pela palavra e sustentada pela escuta autorizam a expressão desse “outro falar” que está submerso em nós, que espera uma oportunidade de ser dito, e já não se manifesta apenas em palavras, mas numa experiência plena do tempo. Frequentar os outros capacita-nos para o encontro connosco mesmos e o conhecimento próprio dá-nos chaves para viver a aventura da alteridade. A conversa serve-nos de caminho para essas grandes viagens. Ela ensina-nos aquilo que Montaigne observava: que “a palavra pertence em parte àquele que fala e em parte àquele que escuta”. A vida é, de facto, essa circularidade, essa procura do quinhão que nos falta, essa entrega ao outro da metade que nos coube trazer até aqui, e que ele poderá continuar de uma forma imprevista, talvez ainda mais límpida do que aquela de que fomos capazes. Por isso, persiste sempre uma tensão na experiência da conversa. O autor dos “Essais” compara-a ao que acontece numa partida de ténis. Os interlocutores não estão estáticos. Mesmo parados movem-se, segundo a geometria da bola que voa de campo a campo. E o importante, por fim, não é fazer vencer as minhas ideias, nem se adequar às do outro, mas reagir em sintonia, compassar, cadenciar, aprender a alegria da troca.

Elogio do inútil

Anselmo Borges, Diário de Notícias 11.agosto.2019

1. Vivemos num tempo com algumas características deletérias. Por exemplo, não penso que seja muito favorável assistirmos em restaurantes a famílias inteiras a dedar num smartphone: o pai, a mãe, os filhos…, que quase se esquecem de comer e sem palavra uns com os outros. É bom estar informado, mas neste dedar constante perde-se o contacto autêntico da e com a família, esse estar presente aos outros mais próximos. E, com o tsunami das informações, incluindo as fakenews, fica-se sujeito ao engano, à confusão, e corre-se o risco de se estar a criar personalidades fragmentadas, alienadas, interiormente desestruturadas. E, ao contrário do que se pensa, dentro da conexão universal através das redes sociais, sofrendo uma imensa solidão.

A nossa sociedade é também avassalada pelo ruído e pela pressa. Toda a gente corre, sempre com a vertigem da pressa – para onde?, poder-se-ia perguntar. Para longe de si. Quando é que alguém está autenticamente consigo, sem narcisismo, evidentemente? E o ruído atordoador? Quem é que ainda consegue ouvir o silêncio e aquilo que só no silêncio se pode ouvir? A voz da consciência, a orientação para o sentido da vida, Deus? Quem se lembra do dito famoso de Calderón de la Barca, que escreveu que “o idioma de Deus é o silêncio”?

Parece que esta situação vem de longe. O dramaturgo Eugène Ionesco, já em 1961, se lhe referiu numa conferência, com estas palavras: “Vejam como as pessoas correm atarefadas pelas ruas. Não olham para a direita nem para a esquerda, preocupadas, de olhos fixos no chão, como cães. Caminham a direito, mas sempre sem olhar em frente, pois seguem maquinalmente um percurso já bem conhecido. Em todas as grandes cidades do mundo, é assim que acontece. O homem moderno, universal, é o homem atarefado, que não tem tempo, que é escravo da necessidade, que não compreende que uma coisa possa não ser útil; que não compreende sequer que, na realidade, o útil pode ser um peso inútil, opressivo. Se não se compreende a utilidade do inútil e a inutilidade do útil, não se compreende a arte; e um país onde não se compreende a arte é um país de escravos ou de autómatos, um país de pessoas infelizes, de pessoas que não riem nem sorriem, um país sem espírito; onde não há humor, não há riso, há raiva e ódio.” No mesmo sentido, chamando a atenção para “as ameaças que pesam sobre uma humanidade que não tem tempo para reflectir”, Ítalo Calvino escreveu: “Essas pessoas atarefadas, ansiosas, que perseguem um objectivo que não é um objectivo humano ou que é apenas uma miragem, podem de repente, ao ouvir o som de uma qualquer trombeta ou o chamamento de algum louco ou demónio, deixar-se arrastar por um fanatismo populista.”

2. Chegámos, deste modo, cavando mais fundo, à raiz da desorientação deste nosso tempo. Ela encontra-se na mercantilização de tudo, em função do lucro, na subordinação à lógica dos mercados. Afinal, como observou agudamente o filósofo Giorgio Agamben, “Deus não morreu. Tornou-se Dinheiro”. E Jesus já tinha prevenido: “Não podeis servir a Deus e a Dinheiro” (com maiúscula, como se fosse um nome próprio, um deus, Mammôn, em aramaico, a língua materna de Jesus). Como escreveu Nuccio Ordine, com a lógica do lucro, grande parte da Humanidade perdeu o direito de ter direitos, multidões morrem de fome; “transformando os homens em mercadoria e em dinheiro, este perverso mecanismo económico gerou um monstro, sem pátria e sem piedade, que acabará por negar também às gerações futuras qualquer forma de esperança”.

A citação recebo-a emprestada de Nuccio Ordine no seu livro A Utilidade do Inútil, um manifesto a favor do “inútil”. De facto, com a mercantilização de tudo e quando só vale o útil, o que serve na lógica do lucro, o que é eficaz e produtivo, a razão técnica e calculadora, tem sentido perguntar: o que vale a poesia, a grande literatura, a música, o saber pelo saber, as humanidades? É claro que neste universo utilitarista, “um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais do que um poema, uma chave inglesa mais do que um quadro, porque é fácil perceber a eficácia de um utensílio e cada vez mais difícil compreender para que servem a música, a literatura, a arte”.

Com a financeirização especulativa da economia, só ficam as leis cínicas do mercado e a aparente omnipotência do dinheiro. E a própria política fica reduzida a negócio(s). Já Rousseau tinha observado no seu tempo: “Os antigos políticos falavam sem descanso de costumes e de virtudes; os nossos não falam senão de comércio e de dinheiro”, como se tudo o que não dá lucro fosse supérfluo ou até perigoso. Mas, então, no quadro da lógica economicista do lucro, tem sentido perguntar: porque é que nos queixamos da teia infindável da corrupção?

Martin Heidegger chamou vigorosamente a atenção para os perigos do monopólio da razão técnica, instrumental. Porque a técnica não pensa, apenas calcula. E aí temos nós a razão que apenas se interessa pelo que se mede e calcula, pela quantidade, ignorando a qualidade. Mas, então, quem somos e o que é que somos, na abertura constitutiva à Transcendência? Pensando apenas nas “finalidades técnicas” e no “para que serve?”, pergunta-se: onde está a beleza de um pôr do Sol, para que serve a ternura de um beijo, o florir de um sorriso de criança, a honra, a dignidade, o pensamento crítico, a gratuidade, a filosofia, o estudo das Humanidades, o mistério do Ser e de se ser? Tudo isso é inútil? No entanto, como disse o biofísico e filósofo Pierre Lecomte du Noüy, “na escala dos seres, só o Homem executa actos inúteis”, acrescentando dois psicoterapeutas, Miguel Benasayag e Gérard Schmidt, que “a utilidade do inútil é a utilidade da vida, da criação, do amor”. No seu livro A Cerimónia do Chá (1906), o japonês Kakuzo Okakura intuiu que a passagem do bruto ao humano se deu com a descoberta do inútil: “O homem primitivo superou a sua condição de bruto ao oferecer a primeira grinalda à sua namorada. Elevando-se acima das necessidades naturais primitivas, tornou-se humano. Quando percebeu o uso que se podia fazer do inútil, o homem fez a sua entrada no reino da arte.” Kant apresentou o belo como o que agrada desinteressadamente; o belo tem a sua finalidade em si mesmo, não é para outra coisa, é “uma finalidade sem fim”.

Frente à desertificação galopante do espírito, impõe-se voltar à aparente inutilidade do “inútil”, ao “fascinante esplendor do inútil”, na expressão de George Steiner, que tem a ver com os valores irrenunciáveis da cultura e da educação livre, da grande música, da arte, do estudo dos clássicos e da filosofia, da dignidade livre e da liberdade na dignidade, do pensar crítico. Concluo, com Nuccio Ordine: “Se deixarmos morrer o gratuito, se renunciarmos à força geradora do inútil, se ouvirmos unicamente este canto das sereias que nos impele a procurar o lucro, só seremos capazes de produzir uma colectividade enferma e desmemoriada que, confusa, acabará por perder o sentido de si mesma e da vida.” E uma previsão que dá que pensar: cerca de um terço dos portugueses pode vir a ter perturbações de ansiedade. Um facto: está a aumentar o consumo de ansiolíticos, antidepressivos… Sem pôr em questão a imensa dívida para com a razão tecnocientífica, impõe

O Homem: trabalhador e festivo

Anselmo Borges, Diário de Noticias 4.agosto.2019

1. Andam enganados aqueles e aquelas que, no decurso do tempo, fizeram uma leitura literal do Génesis, o primeiro livro da Bíblia. Porque, concretamente nos primeiros três capítulos, não se trata de uma narrativa histórica, mas de um mito, uma estória. O filósofo Hegel, um dos cumes do pensamento, embora não fosse exegeta, viu mais, mais fundo e de modo mais penetrante do que muitos exegetas, quando leu essas primeiras páginas sobre a criação, Adão e Eva e o chamado “pecado original”.

No princípio, Deus fez a Terra e os céus. E criou Adão e Eva, que viviam no Éden, o paraíso terreal. Não podiam comer da árvore que estava no meio do jardim, a árvore da ciência do bem e do mal. Comeram e foram expulsos do paraíso. O que aqui está, diz Hegel, é a passagem da animalidade à humanidade e à grandeza de se ser humano, mas também ao seu carácter dramático e mesmo trágico. Souberam que estavam nus. Comeram da árvore da ciência do bem e do mal e ficaram a saber que são seres humanos, portanto, conscientes de si mesmos, conscientes de que são conscientes, com consciência reflexiva, que os outros animais não têm. Essa é a nudez humana, na solidão metafísica: cada um está só, é si mesmo de modo único e intransferível.

Deus também tinha dito que, se comessem, morreriam. Comeram e souberam que o ser humano é mortal, o que o animal não sabe. Quando dizemos cada um e cada uma – “eu”, cada uma e cada um di-lo de modo exclusivo e único e sabe que há-de morrer e angustia-se face à morte: “Ai, que me roubam o meu eu”, gritava Unamuno. Esta é a constituição do ser humano. E não é possível voltar atrás, porque a entrada do jardim do Éden, símbolo da inconsciência animal, é guardada por querubins com a espada flamejante.

E o Homem também tem de trabalhar, disse Deus. O trabalho é constitutivo do ser humano. É transformando o mundo, mundanizando-se, que o Homem vem a si como sujeito e se humaniza. No mundo, está de algum modo fora do mundo; na natureza, está fora e acima da natureza. Pelo trabalho realiza-se e projecta-se e toma consciência de que é social, pois é em comum que nos realizamos, contribuindo para a obra comum que é o bem comum, na síntese de presente, passado e futuro.

Uma das minhas reflexões diárias, quando tomo o pequeno-almoço: estou ali, só, e com tantos! Quem semeou o trigo ou o centeio e cozeu o pão que estou a comer? Quem colheu o café, quem o transportou de partes longínquas, quem o preparou? E assim sucessivamente. Por exemplo, ensinaram-me a ler e pude ler obras da grande filosofia e da grande literatura, que outros, autores de há pouco tempo ou de há séculos, ergueram!!! E quem produziu os livros e quem traduziu essas obras? E assim sucessivamente…, desde o carro que me transporta da casa onde vivo e que eu não construí à cidade onde se encontra a minha universidade, que eu também não construí, passando pela auto-estrada que existe pelo trabalhos de tantos que eu não sei quem são… Estamos sempre unidos com tantos, com todos, pelo trabalho comum!

Mas o Homem não se define apenas pelo trabalho. Porque é igualmente um ser festivo. Até Deus se lembrou disso, também na Bíblia: que haveria um dia consagrado ao descanso e à festa: o Sábado, depois, o Domingo (o dia do Senhor e do encontro da família e da alegria).

O que fez Jesus durante a maior parte da sua vida? Trabalhou, e trabalhou no duro. Infelizmente, quase nunca se ouve falar disso nas homilias dos padres. Dizemos normalmente que Jesus foi, como o seu pai, José, carpinteiro: “Não é este o filho do carpinteiro?”, perguntaram os seus vizinhos de Nazaré, quando voltou à sua aldeia para anunciar a Boa Nova do Reino de Deus. Segundo os Evangelhos, escritos em grego, diz-se mais, pois escrevem que era tektôn, isto é, era o que se dizia antigamente: um “faz tudo”, que tanto era capaz de levantar uma casa como de preparar alfaias agrícolas. E pode ter trabalhado também na Decápole, sabendo, por isso, algo de grego e de latim, para lá da língua materna, o aramaico e o hebraico. Porque trabalhou, para ganhar a vida, ele sabia o valor e a importância do dinheiro, mas também o seu perigo, quando se faz dele o objectivo da vida e se explora: Jesus percebeu perfeitamente a relação que tão frequentemente se estabelece entre quem tem muito dinheiro e quer enriquecer a todo o preço, e os trabalhadores que são explorados. Por isso, pregou constantemente: “Não podeis servir a Deus, que é Pai e Mãe e cujo único interesse é o bem de todos os seus filhos e filhas, e a Dinheiro – não ao dinheiro, mas a Dinheiro, como se fosse um nome próprio, Dinheiro enquanto um deus ao qual se entrega vida e a quem se confia a existência e o seu sentido.

Mas Jesus também descansou, porque se deve ter sentido muitas vezes esgotado. Já durante a chamada “vida pública”, dizem também os Evangelhos, era tanto o trabalho e o cansaço, pois as multidões não o largavam, que convocava por vezes os Apóstolos para um lugar ermo, tranquilo, onde pudessem descansar e conversar sobre o essencial. E deslumbrou-se com a alegria da beleza: “Contemplai o esplendor dos lírios do campo e das searas!”. Alegrou-se em festas de casamento e dançou. E passava noites na montanha a rezar, na maior intimidade com Deus, a quem chamava querido Papá, querida Mamã. Exaltou-se com o milagre da vida.

Agora, estão aí as férias. E é preciso gozá-las com gáudio, de tal maneira que delas não se venha mais cansado do que quando se partiu para elas, que é o que tantas vezes acontece. É importante sublinhar, até do ponto de vista etimológico, o carácter festivo associado às férias e aos dias feriados. A palavra latina feria, no plural feriae, tem o sentido de “descanso, repouso, paz, dias de festa.” O mesmo se observa noutras línguas: vacances, vacaciones, em francês e espanhol, respectivamente, têm o seu étimo também no latim: vacatio, com o significado de isenção, dispensa de serviço. Os ingleses em férias dizem que estão on holidays, isto é, em dias santos. Os alemães têm duas palavras: Ferien e Urlaub, sendo o étimo da primeira feriae e a raiz da segunda, Urlaub, Erlaubnis, com o sentido de dias livres de serviço e trabalho.

Portanto, as férias não podem ser de modo nenhum um mero interregno no trabalho para, depois, repondo as forças, se poder trabalhar ainda mais. As férias têm o seu fim em si mesmas: retomar as alegrias simples e a experiência funda de que o ser humano é um ser festivo e fim em si mesmo. Então? Apanhar Sol na praia, no campo, na montanha, ler e escrever poesia, aventurar-se num grande romance da literatura, dançar, ouvir o silêncio e ouvir música, a grande música que nos remete para origens imemoriais, lá onde nunca estivemos, e para a transcendência toda, o lá onde verdadeiramente queremos estar, o indizível, lá onde verdadeiramente seremos nós. Reaprender a ver o Sol a nascer no oriente e a pôr-se no ocidente. E se for no oceano!… Contemplar e acolher o perfume de uma rosa, “que é sem porquê”, como observou o místico Angelus Silesius. Ter a alegria de estar com os amigos e a família, com o tempo todo, à volta de uma mesa. Dar-se conta do milagre do Ser e de se ser. Há maravilha que nos abale mais na raiz de nós do que esta? Antes de ser isto ou aquilo, professor ou médico ou operário, muito ou menos culto, mais baixo ou mais alto, com mais dinheiro ou menos dinheiro, eu sou. Eu.

O mapa do tesouro

José Tolentino Mendonça, E, Expresso 3.agosto.2019

No verão apetece-nos trocar os mapas. E há um sentido que se cumpre em fazer-se à estrada, em mudar de língua, de respiração e de paisagem, em deslocar-se na procura de outros lugares. O mundo é também a nossa experiência do mundo. E precisámos disso que se avista longe, disso que se toca nos cimos intangíveis, disso que nos é dito em linguagens que porventura nem percebemos a fundo, mas que na sua recôndita estranheza reconhecemos como próxima e íntima. A verdade é que nós não somos sedentários que se tornam viajantes. Somos desde sempre viajantes que provisoriamente se demoram antes de prosseguir, de novo, o curso da viagem. Mas tal como o caminho, também a nossa demora (por provisória que, perante o nosso destino último, ela possa ser) tem um significado, oferece-nos uma razão, abre-nos uma oportunidade.

Penso muitas vezes naquela saborosa história hassídica que o filósofo Martin Buber conta num dos seus livros. É a história de Eisik de Yékel, um judeu de Cracóvia. Os muitos anos vividos na miséria não haviam abalado a sua confiança em Deus, e ele acabou recompensado com uma revelação. Recebeu em sonhos o mandato de deslocar-se até à cidade de Praga e de procurar aí um tesouro que estaria escondido debaixo da ponte que conduz ao palácio real. A primeira vez que sonhou com isso não ligou. À segunda ficou intrigado. Quando o sonho se repetiu pela terceira vez, Eisik levou-o a sério e fez-se a pé ao longo caminho. Chegou, por fim, a Praga e dirigiu-se imediatamente à ponte, mas esta — percebeu com desânimo — era controlada, noite e dia, por sentinelas, o que tornava impossível qualquer escavação no local. Contudo, não perdeu a esperança e girava para cá e para lá ao longo da ponte. Não decorreu muito tempo até que o capitão da guarda o interpelasse perguntando se esperava alguém ou procurava ali alguma coisa. A Eisik, porém, aquele soldado deve ter parecido amistoso, pois decidiu contar-lhe o sonho que o arrastara de sua casa até aquele ponto distante. O capitão não pôde conter uma gargalhada: “E por causa de um sonho, pobre homem, viajaste até aqui, desperdiçando as solas no caminho! Quem se pode fiar em sonhos! Imagina que, se assim fosse, também eu deveria já ter peregrinado até Cracóvia e escavar na casa de um certo judeu, chamado Eisik de Yékel, para tomar posse do tesouro que se encontra debaixo do forno! Estaria metido em belos trabalhos se confiasse em sonhos e me pusesse a escavar nas casas de uma cidade estranha onde uma metade dos habitantes judeus se chama Eisik e a outra metade Yékel!” Abanava a cabeça e não parava de rir. Eisik saudou-o, tomou o caminho de regresso a casa, e desenterrou o tesouro que há muito o esperava.

Trata-se de uma história antiquíssima e encontrámo-la contada com variantes em tantas literaturas populares. Ela relata um paradoxo que nos atravessa a todos. Esta perceção, primeiro, de que existe um tesouro extraordinário que nos está prometido; segundo, que não o podemos encontrar em parte nenhuma do mundo e, no entanto, sentimo-nos incessantemente chamados a buscá-lo; terceiro, que há apenas um lugar onde o podemos achar: no lugar familiar, comezinho e banal onde se inscreve o nosso rotineiro quotidiano. De facto, não devemos colocar de um lado o sonho de uma vida autêntica e de outro a vida ordinária que vivemos. É no encontro das duas que a nossa existência refulge. O maior tesouro é poder cumprir a existência que está, aqui e agora, ao meu dispor. Uma outra história da tradição hassídica diz o seguinte: Um dia, ao receber em sua casa alguns homens ilustres, o Rabi Mendel de Koretz surpreendeu-os com esta pergunta: “Onde mora Deus?” Perante a reação embaraçada dos seus hóspedes, o próprio Rabi acrescentou: “Deus mora onde o deixamos entrar.”

“muito poder e pouco amor”

https://images.impresa.pt/expresso/2017-04-13-Anselmo-Borges-1/original/mw-768

“A Cúria é um dos cancros da Igreja”

https://images.impresa.pt/expresso/2015-05-03-Christiana-Martins.jpg/1x1/mw-200

Christiana Martins, Expresso 3.agosto.2019

Polémico, desassombrado, Anselmo Borges não se cansa de defender a ideia de uma Igreja mais próxima das origens e aberta a todos. Confrontado com a partida dos monges da Cartuxa de Évora, lamenta o desaparecimento de um espaço de silêncio em Portugal.

Num texto, afirmou que a Igreja tem dupla identidade e foi capaz de gerar Francisco de Assis e Torquemada. Atualmente está mais próxima de Assis ou da Inquisição?

Essa pergunta nem deveria sequer poder ser feita. Se a Igreja quiser ser de Jesus, só pode ser de Assis. A Igreja deve ser o sentido último da existência: Deus enquanto amor. O evangelho é uma notícia boa e a inquisição não é uma boa notícia.

Esta semana foi divulgado que os monges Cartuxos vão sair de Portugal. Saem porque são poucos. É um reflexo da falta de vocações? Com eles parte um espaço de silêncio?

É uma das crises maiores do nosso tempo, marcado pelo ruído, a pressa e por uma razão instrumental. Temos uma profunda crise de valores porque no meio do tsunami de informações vivemos cada vez mais na exterioridade de nós. Corremos o risco da alienação. Já não vamos ao mais íntimo nem apreciamos o silêncio nem o encontro com o mistério a que chamamos Deus, e que está no mais profundo de nós, a voz da consciência. A Cartuxa era um apelo ao silêncio. Com a partida deles fica um vazio, próprio do nosso modo de estar no mundo.

Deixamos de perceber aquela missão de recolhimento?

Não compreendemos mais a utilidade do inútil. O ser humano ascendeu a ser homem, de forma distinta de todos os animais, quando pela primeira vez um rapaz foi à procura de uma flor — que dá perfume sem porquê — para oferecer a quem amava. Para que serve este gesto? Quanto custa? Mas isso é que é o melhor da humanidade: o gratuito. Hoje tudo se vende. É preciso voltar ao Evangelho: não podeis servir a Deus e ao dinheiro, compreendido como um ídolo. E a saída dos monges é sinal desta profunda crise de humanidade.

É também sinal da falta de vocações? Em outubro realiza-se o Sínodo da Amazónia, onde há quem espere uma autorização para a ordenação de homens casados nas regiões mais remotas do planeta. Qual a sua expectativa?

Desde o início do Pontificado de Francisco que tenho anunciado a minha convicção de que vamos assistir, ainda com este Papa, à ordenação de homens casados. E estou convicto de que acontecerá no Sínodo para a Amazónia.

Esta é uma questão que levanta muitas objeções na Igreja e o argumento invocado é que esta exceção poderia ser aceitável em regiões isoladas. O Alentejo, com a falta de vocações, não pode ser considerado uma região remota? Ou é a própria Igreja que se tornou remota dos seus fiéis?

A Igreja está afastada do evangelho. Quando digo Igreja, refiro-me à oficial. Não é preciso reformar a Igreja, mas sim recriá-la, voltar ao projeto inicial. No princípio acreditou-se em Jesus vivente. Foi crucificado porque enfrentou o templo e os sacerdotes da altura. Morreu como um blasfemo e subversivo social e político. Muitos acreditaram na sua mensagem e formaram comunidades de fé e de vida. “Vede como eles se amam”, diziam os pagãos quando olhavam para essas primeiras comunidades. Jesus não deixou sacerdotes; deixou comunidades. Daí a pergunta: porque é que uma mulher cristã não pode presidir à eucaristia, desde que escolhida pela comunidade? Um padre ser casado? E por tempo determinado? O problema da Igreja é esta gigantesca estrutura piramidal com muito poder e pouco amor.

O problema da Igreja é a Cúria?

É um dos cancros da Igreja. É responsável por mais ateus do que Karl Marx, Nietzsche e Freud juntos. A Inquisição, a condenação de Galileu, de Darwin, a misoginia…

Este ano, entre quatro padres ordenados, um era cego. Mas nenhuma mulher. Faz sentido?

Não. Que comunidades temos nós que não são capazes de organizar os seus próprios ministérios? Na Igreja primitiva, os coordenadores não eram impostos de fora, emergiam da própria comunidade. Jesus não queria sacrifícios, mas justiça e misericórdia. Foi sacerdote, mas não no sentido da vítima oferecida a Deus para que este aplaque a sua ira e se reconcilie com a humanidade. Foi sacerdote, como todos os cristãos, no sentido do oferecimento da vida a Deus e uns aos outros. Seja na política, na gestão… Esse é o verdadeiro sacerdócio do Novo Testamento. Deus não precisa de vítimas.

Não receia pelo Sínodo no Brasil atual?

Estou convicto de que vai haver conflitualidade. Há demasiados interesses económicos envolvidos. O Sínodo não vai tocar apenas nos problemas da Igreja, mas também terá uma dimensão ecológica e de preservação dos direitos dos indígenas, temas caros ao Papa Francisco. É mais um ato de coragem do Papa a favor da humanidade.

Portugal deveria ter um papel de destaque neste Sínodo?

Não só Portugal, como também os países de língua oficial portuguesa.