Arquivo mensal: Dezembro 2019

Os refugiados estão nos textos do Natal

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Paulo Rangel, PÚBLICO 24.dezembro.2019

A condição de refugiado está radicada e gravada no código genético do cristianismo, na “história de vida” de Jesus.

1. O tempo de Natal é (ou era) por excelência o tempo das narrações dos chamados evangelhos da infância (Mateus e Lucas). Aquelas histórias, já de si não históricas, eram largamente recriadas e acrescentadas no imaginário popular e no encantamento infantil. Hoje, véspera de Natal, em plena crise global de refugiados, vale a pena voltar a esses textos fundacionais e tentar perscrutar quão além vão da tradição e da imaginação e quão fundo interpelam crentes e não crentes.

2. Evoquemos a propósito o Evangelho de Mateus (Mateus 2:13-23), quando relata a ida de Jesus, Maria e José para o Egipto, fugindo à perseguição do rei Herodes. Não há como esconder ou desvalorizar: Jesus e a sua família foram verdadeiros refugiados; não migrantes, mas sim refugiados. Jesus, seu pai e sua mãe tiveram de se refugiar no Egipto por serem o alvo de uma perseguição e estarem em risco de morte. Parece certo, nas esparsas linhas do texto, que a notícia de que tinha nascido o Messias foi vista por Herodes como uma ameaça política, uma ameaça à sua legitimidade enquanto rei dos Judeus. Daí que tenha mandado matar todos os primogénitos até à idade de dois anos. Convergem, pois, aqui as dimensões política e religiosa: Jesus foi o alvo – o alvo directo – de uma perseguição político-religiosa, que obrigou a sua família a refugiar-se. Nesta narração, encontramos ainda uma última menção, assaz relevante para o tema. Efectivamente, quando José decidiu voltar a Israel, pretendia ir para a Judeia, mas, porque aí reinava Arquelau, filho de Herodes, resolveu afinal instalar-se em Nazaré, na Galileia. Pois bem, mais uma vez, a sua escolha não foi livre; foi politicamente motivada. A condição de refugiado está, portanto, radicada e gravada no código genético do cristianismo, na “história de vida” de Jesus.

3. Sabemos bem que os Evangelhos da infância, seja em Mateus, seja em Lucas, se inscrevem na tradição literária do “Midrash”, bastante comum na escrita hebraica. Não se cura, ao invés do que o público crente e não crente geralmente supõe, de um relato histórico, susceptível de suporte factual e documental. Não há nele qualquer preocupação de “fazer história”. Existe isso sim o desígnio de “fazer pedagogia”, de fazer uma narração exemplar, de contar “uma” história – de contar uma história, com todo o potencial heurístico inerente.

O episódio da fuga de Jesus para o Egipto apresenta Jesus como o novo Moisés, Aquele que refaz o caminho antes feito pelo povo de Israel. Há até um paralelo expresso com Moisés na saga da “morte dos inocentes”. Recordando episódios que hoje são menos retidos: o Faraó tinha ordenado a morte de todas as crianças judias, exigindo às parteiras que as matassem. Como estas acabaram por não o fazer, ordenou então que as crianças fossem lançadas ao rio. Com o intuito de o salvar, a mãe de Moisés põe-no no rio Nilo, mas dentro de um cesto. A irmã de Moisés vai alertar a irmã do Faraó para a necessidade de encontrar alguém disponível para amamentar a criança, indicando como ama a própria mãe de Moisés. É bom de ver que, na passagem de Mateus, Herodes assume a figura do Faraó e Jesus surge como o novo Moisés. O desígnio da narrativa é evidente: Jesus é o novo Moisés, o novo libertador do povo de Israel.

4. Não é, portanto, apenas o Novo Testamento que nos oferece uma história de migração e de refúgio; é outrossim o Antigo Testamento, que, de resto, nos apresenta múltiplas situações de perseguição, degredo e servidão do povo hebreu. A história deste povo – todos o sabemos – é uma história constante de fuga e migração. Neste contexto, vale a pena chamar a atenção para o versículo 22 do capítulo 2 do Livro do Êxodo, em que se diz, a respeito da mulher de Moisés: “Ela deu à luz um menino, a quem Moisés pôs o nome de Gerson dizendo ‘Sou emigrante em terra estrangeira’.” Ora, o nome Gerson significa peregrino, “de passagem”, alguém que é hóspede, que não está na sua terra. Tudo isto demonstra que há na cultura judaico-cristã um estatuto próprio para o migrante, para o estranho, o estrangeiro. Se Jesus foi um autêntico refugiado, Moisés será talvez um migrante de segunda geração (já nasceu no Egipto).

5. Em suma, há na Bíblia um fundamento próprio, uma fonte directa, para o acolhimento dos refugiados e dos migrantes. O acolhimento do estrangeiro, do que teve de deixar a sua terra é, pois, um carisma judaico-cristão. Não se compreende, por isso, a estranheza e desconforto com que tantos vêem o apoio incondicional que o Papa Francisco dá aos refugiados. E muito menos se compreende o ataque que, na política italiana, Salvini e os seus seguidores – que invocam fervorosamente os valores do cristianismo – fazem ao Papa Francisco. É uma ferida aberta por causa da questão migratória e pela posição firme da Igreja que, incondicionalmente, está ao lado e do lado dos migrantes e dos refugiados.

Quando pensamos no estatuto do migrante ou refugiado, não estamos a falar numa decorrência pura e simples do mandamento do amor ao próximo – embora essa simples inferência fosse mais do que suficiente. A verdade é que há fundamento específico e literal para fazer do acolhimento dos migrantes e refugiados uma causa primeira daqueles que se revêem na matriz cristã. Este fundamento não é apenas cristão, mas judaico-cristão. Não é, aliás, por simples casualidade, que, a propósito da saga do povo hebreu, falamos na diáspora. Os judeus, por natureza, estavam fora da sua terra. Há, assim, um mandato a partir dos textos sagrados para cuidar dos refugiados, dos deslocados, dos migrantes, dos que estão em fragilidade porque estão fora do seu ambiente natural. Neste sentido, a ideia de acolhimento, de hospitalidade, de asilo, de auxílio e de integração pertencem ao núcleo mais genuíno dos valores cristãos. A liturgia do Natal também serve para o recordar, para o trazer de novo ao coração.

Chuva

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Valter Hugo Mãe, Jornal de Notícias 22.dezembro.2019

Íamos de galochas para a escola e lamentávamos os guarda-chuvas que perigavam no vento. Raros de nós tinham impermeáveis, chegávamos a deitar mão de sacos de plástico mas, à entrada da escola primária, ensopados, éramos um só lamento e a normalidade absoluta.

A sala aquecia com um mísero fogão a lenha, perto do qual deixávamos casacos e camisolas, às vezes os cadernos. Secávamos a roupa interior no corpo, brancos pijamas, enquanto tremíamos e medíamos a fúria do tempo pelas vidraças, ouvindo sobre matemática e palavras com mais de três sílabas. O temporal era o inverno inteiro.

Nunca me passaria pela cabeça, então, que alguém quisesse dar nome à chuva. Sabíamos bem do que se fazia dezembro ou janeiro. O fim de janeiro era o pior do ano, o monstruoso frio, a humidade, o vento que deitava sempre abaixo as árvores mais sozinhas. Àquilo tudo, tudo junto, chamávamos apenas inverno. Demorava meses e podia aparecer na televisão por haver acidentes de carros e voarem telhas das casas mais velhas. A televisão lamentava muito o azar e a pobreza, que pareciam inevitáveis. Falhava muito a luz elétrica. Algumas cidades adormeciam às velas, era frequente. Toda a gente guardava velas e fósforos. Nós tínhamo-las em cada canto para o susto de ficarmos às escuras constantemente. Refilávamos abreviados porque íamos dormir sem sono, muito mal conformados.

Os estrangeiros puseram-nos agora a dar nomes à chuva. Vem a Elsa ou o Fabien, como se alguém chegasse com o imenso tamanho do céu, se abatesse por toda a parte e tivesse culpa. A contemporaneidade é tão feita de um espírito ofendido que nem o inverno passa como antes. Passa acusado.

Prometeram, contudo, que vamos ter um Natal em sossego. Acalmará a intempérie e usaremos os nomes do costume, como se chovesse ou ventasse sem necessidade de acusações. Talvez aí nos deva arrepiar o peito, onde verdadeiramente importa medir a invernia. É o que me impressiona no Natal: essa oportunidade de nos avaliarmos e, em consciência, decidir melhor para depois. Isso mesmo vos desejo. Uma chuva sem nome, sem culpados, apenas a bravura de resistirmos no bom senso e na poderosa cordialidade. Não esqueçamos nunca que a mais preciosa conquista do Mundo é a paz. Boas-festas. Um muito bom Natal a todos.

“Se não temos paz interior dificilmente podemos contruir paz social”

Pablo D’Ors é padre, escritor e consultor do Conselho Pontifício da Cultura por nomeação do Papa Francisco. O espanhol esteve em Portugal para apresentar O Amigo do Deserto, publicado em 2005, mas que só agora chegou a Portugal, pela mão da Quetzal. Pelo caminho, deu a conhecer a associação que criou e onde o silêncio impera.

Bárbara Wong (texto) e Pedro Fazeres (fotografia) 8.dezembro.2019, PÚBLICO

Esteve em Lisboa para apresentar o romance O Amigo do Deserto, que escreveu há 14 anos, mas que só agora chega a Portugal, através da Quetzal. Por cá, A Biografia do Silêncio — ​que em Espanha foi um bestseller e vendeu mais de 150 mil exemplares — e Sendino Está a Morrer foram publicados pela Paulinas Editora. 

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Pablo D’​Ors estudou nos EUA e na Alemanha, onde foi discípulo do monge beneditino e teólogo alemão Elmar Salmann (1948-). Foi ordenado sacerdote em 1991 e esteve em missão nas Honduras, assim como na Europa de Leste. Apologista do silêncio e da meditação, tem como mestres o eremita francês Charles de Foucauld (1858-1916), que refere no seu livro, onde o protagonista sente uma atracção pelo deserto, viajando até ao Sara, reencontrando-se por lá; o escritor e monge trapista francês Thomas Merton (1915-1968) e o jesuíta húngaro Franz Jalics (1927-), autor de livros sobre contemplação e espiritualidade. 

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Anos depois de ter escrito O Amigo do Deserto, em 2014, criou a associação Amigos do Deserto, que tem como objectivo a meditação. Não é preciso ser consagrado ou católico para fazer parte desta rede — que em Espanha reúne cerca de meio milhar de pessoas —, mas sim estar interessado na experiência interior que é o silêncio. Embora não acredite que o Papa conheça a sua experiência, tem a convicção de que o silêncio pode mudar o mundo.

Sacerdote, escritor, fundador da associação Amigos do Deserto. Quem é Pablo D’​Ors?
Gostaria de ser um homem do deserto e um homem da amizade.

Porquê?
Quando falo de deserto, falo de interioridade. E quando refiro a amizade, falo de comunhão, capacidade de sentir os outros mais próximos. Houve um tempo que me identificava muito com o arquétipo do sacerdote e do escritor, que são muito distintos, mas que têm afinidades: a experiência estética e a estática; a poética e a mística; todas estão profundamente ligadas. Mas hoje poderia não ser escritor nem sacerdote e a minha essência permaneceria intacta. 

O que significa?
Quero dizer que escrever e ser pastor da Igreja não deixam de ser expressões, mas o essencial é a experiência vital. Por isso, eu quero ser um homem do deserto e um homem da amizade.

Porquê este livro com o mesmo nome que a associação?
Não escrevemos o que vivemos, mas o que vamos viver. Com isto quero dizer que a literatura não é tanto uma memória, mas uma profecia. Quando escrevi este livro, não sabia que ia fundar uma associação [em 2014], nem que me ia dedicar de maneira tão completa à meditação. De algum modo, este livro foi como um presságio do que viria a acontecer mais tarde. Por exemplo, no livro escrevo sobre a dificuldade em entrar para a associação e, na vida real, houve muitas pessoas que quiseram entrar [nos Amigos do Deserto] e não conseguiram porque houve uma explosão e não era possível dar resposta a toda a gente. Nessa altura, percebi que havia muita gente interessada no silêncio. Foi uma feliz casualidade, que é mais do que isso, é uma feliz causalidade. Quando os livros nascem de dentro, têm mesmo de nascer, porque há uma grande confluência entre a literatura e a vida.

É autobiográfico?
Digo sempre que é autofictício, quer dizer que há a novela épica do indivíduo, em que o protagonista não sou eu, mas ele e todas as personagens secundárias são o alter ego do escritor. Este trabalha com a memória, com a imaginação. Recordamos o que vivemos, vimos, pensámos, sentimos; e recriamos, enfabulamos… Há um lado autofictício, pois o protagonista chama-se Pavel e eu sou Pablo. Mas isso acontece com todos os meus livros, pondo-me na pele de uma mulher ou de uma pessoa muito diferente de mim. [O escritor] Milan Kundera, que admiro e leio sempre, diz que a novela é uma exploração da identidade com egos imaginários.

O que é a associação Amigos do Deserto e como funciona?
É uma rede aberta de meditadores, isto é, de pessoas interessadas na experiência interior do silêncio, que é comummente conhecida como meditação. Para fazer parte da rede, é preciso fazer um retiro de iniciação: um fim-de-semana intensivo em que o método ou a maneira de meditar é ensinado. Essencialmente, consiste num trabalho corporal de relaxamento, um trabalho mental de concentração e espiritual de contemplação. Aqueles que desejam continuar são integrados nos nossos grupos de prática semanal, a que chamamos “seminários silenciosos”. Estamos convencidos de que, neste mundo barulhento, esse exercício de encontro consigo mesmo é enormemente transformador.

Depois de O Amigo do Deserto, escreveu A Biografia do Silêncio, que é um ensaio sobre meditação, a associação é uma consequência desses dois livros?
A associação foi criada porque muitos leitores de A Biografia do Silêncio queriam pôr em prática os ensinamentos desse pequeno livro. Nesse — que foi um verdadeiro milagre editorial, com mais de 150 mil leitores desde a sua publicação em 2012 —, conto a minha experiência, as dificuldades em ficar em silêncio e quietude, as minhas descobertas diárias, os benefícios que me trouxeram… Pouco a pouco, depois de uma década e meia de perseverança, cheguei à conclusão de que poucas coisas ajudam tanto a conhecermo-nos a nós mesmos como nos sentarmos em silêncio para ouvir e ver o que somos.

A meditação católica é diferente da budista?
As formas são diferentes em todas as tradições religiosas, mas o pano de fundo é o mesmo. Normalmente, ilustro essa pergunta com o que chamo “metáfora da montanha”. Cada religião sobe ao topo da montanha por uma encosta. E as encostas são diferentes umas das outras: uma tem neve, outra é árida, outra tem vegetação exuberante; mas, lá em cima, onde o ar é mais puro, todos conhecemos todos. E isso é evidente pela enorme afinidade que existe entre os diferentes textos místicos de todas as tradições da sabedoria. As palavras podem aspirar, no máximo, a gerar afinidade intelectual ou sentimental. O silêncio, por outro lado, dá-nos algo ainda mais bonito e profundo: a comunhão espiritual.

O silêncio alcança-se através da oração e da palavra?
Silêncio e palavra são os dois lados da mesma moeda, o que significa que não são realidades opostas, mas precisamente complementares. Há silêncio para ouvir a palavra, e a palavra verdadeira sempre se abre para um silêncio maior. Não podemos ir para o que somos sem o que somos: não é possível entrar no nosso silêncio interior sem palavras, pois somos palavra. Em muitas tradições meditativas, e, é claro, na cristã, a palavra usada na meditação é conhecida como jaculatório ou mantra, que ajuda ao recolhimento. Normalmente, no nosso interior, reina uma grande confusão, mas uma única palavra é suficiente para nos curar, para nos purificar de tanta conversa e barulho mental. A meditação de que falo é a que no cristianismo é conhecida como uma “oração do coração”.

Os Amigos do Deserto são sucessores dos grandes místicos espanhóis como Teresa de Ávila e João da Cruz?
Não propriamente. Sentimo-nos herdeiros, ainda que modestamente, das hesicastas. O hesicasmo era uma corrente espiritual da Igreja Ortodoxa que, entre os séculos V a IX, praticou a oração da quietude para alcançar a paz interior e a presença de Deus.

A meditação pode mudar o mundo?
Não vejo uma maneira melhor. Ninguém pode dar o que não tem. Se não temos paz interior, dificilmente podemos construir paz social ou externa. Mudar o mundo é um objectivo muito ambicioso. Se realmente nos mudássemos, perceberíamos o enorme poder que isso também significa socialmente. De que outra forma explicar que um homem envolto em panos, chamado Gandhi, foi capaz de expulsar o império britânico de seu país, sozinho?

Como pode um escritor, um homem da palavra, ser apologista do silêncio?
Porque a palavra não existiria sem o silêncio que a precede, a segue e a sustenta. Porque o silêncio não é simplesmente ausência de barulho, mas de ego. Porque se lê em silêncio e o silêncio é necessário para se poder falar e ser escutado. Nunca imaginei que me iria converter, através da palavra, num apologista do silêncio. É um destino infinitamente mais belo do que eu alguma vez poderia ter imaginado. Foi o próprio silêncio que me conduziu a esta missão. E dou graças por ter sabido recebê-la e por estar entregue a ela.