José Tolentino Mendonça, E, Expresso 15.fevereiro.2020
A selfie
tornou-se um sintoma do tempo em que vivemos. Se pensarmos na fotografia
tradicional era claro o seu papel em relação à temporalidade da vida: a
fotografia, fixando o tempo, como que o prolongava, assumindo-se, no confronto
com a nossa existência, como uma arte da memória. Não é por acaso que
imprimíamos as fotografias e as recolhíamos num álbum, e deixámos de o fazer
com o material fotográfico que simplesmente acumulamos nos telemóveis. Quer
dizer que a função da imagem mudou. A fotografia tradicional pretendia ser
ainda um registo ao serviço da interpretação da vida. O seu processamento
chamava-se justamente “revelação”, pois era disso que se tratava, e não só a um
nível imediato, mas numa profusão de detalhes significativos que a simples
visão normalmente não deteta. Na sua “Pequena História da Fotografia”, Walter
Benjamin afirma, por exemplo, que na fotografia fazemos a experiência do
“inconsciente ótico”, do mesmo modo que as psicoterapias nos permitem aceder ao
“inconsciente pulsional”. A fotografia testemunhava assim, de um modo amplo e
singular, o domínio visível do sujeito, mas também nos avizinhava do seu campo
invisível.
A selfie,
pelo contrário, transaciona sobre o imediato, como se o sujeito histórico se
tivesse tornado evanescente e a sua duração (histórica, psicológica…) se
dissolvesse para permitir que a aparição instantânea se torne um fim. A
proposição que move a selfie é agora este videor ergo sum (sou visto logo
existo), propagado por toda a parte. Mas fazer depender a existência deste tipo
de visibilidade dá razão àquilo que o psiquiatra italiano Giovanni Stanghellini
escreve num ensaio recente (“Selfie. Sentirsi nello sguardo dell’altro”,
Feltrinelli, 2020): “a instantaneidade da selfie é semelhante à temporalidade
esfomeada e sem fôlego de um ataque bulímico”. De facto, para compreendermos a
contemporânea bulimia que nos torna a todos produtores ininterruptos de imagens
temos de procurar a razão de fundo que permanece escondida, e que é uma
dramática anorexia em relação ao ser.
É verdade que enquanto a fotografia tradicional nos permitia dizer “eu sou esta pessoa”, a selfie nos parece fazer dizer “eu estou aqui”. Mas este “aqui” é um espaço atópico, errante, que nunca chega a ser habitado. Por isso se caracteriza justamente o selfista como um turista e não já como um viajante. Enganamo-nos, portanto, se pensamos que a selfie serve para assinalar a nossa passagem por um determinado lugar: ela é sim o resultado de uma radical desterritorialização da vida, capturada pela ânsia da comunicação virtual, mais do que pelo desejo de documentar o real.
O que procuramos então nas selfies? Stanghellini explica que buscamos uma “prótese” existencial, uma “técnica de si” ativada para dar uma resposta ficcional à necessidade de fundar a própria identidade. Perante a exigência de nos definirmos a nós próprios, em tempos de “aporia identitária”, a selfie é “o dispositivo que responde (que tenta responder) à pergunta ‘quem sou?’”. Mas este psiquiatra que dirige uma escola de psicoterapia em Florença é dirimente: “O mito da instantaneidade como satisfação alucinatória da necessidade de vizinhança ou de ultrapassagem da distância transforma a experiência do sujeito apenas numa sequência sincopada de acontecimentos isolados e encerrados neles mesmos. E quando pedimos aos outros para assistir — se bem que ao longe — a estes acontecimentos, é porque só nos sentimos presentes quando fazemos de nós próprios um espetáculo.” Não admira que a era da selfie seja também a do crepúsculo do rosto.
Catarina Pires, Diário de Noticias 3.fevereiro.2020
“Compreenda
o seu cérebro, gira as suas emoções, melhore a sua vida.” À primeira
vista, o subtítulo do livro Como Fazer para Acontecerem Coisas Boas (Ed.
Planeta), da psiquiatra espanhola Marian Rojas Estapé, pode parecer apenas mais
um chavão de livro de autoajuda. Mas não é. É mesmo isso que este livro ajuda a
fazer, se o lermos com atenção. Psicoterapia para ter à mesa de cabeceira.
Entrevistámos a autora, que estará na próxima semana em Portugal a promover o
seu livro, para perceber como as emoções e os pensamentos influenciam a saúde
física e mental – e descobrir o que fazer para acontecerem coisas boas.
Hoje vivemos uma espécie de ditadura da felicidade. Temos pouca paciência para pessoas tristes, como se dependesse apenas de cada um estar bem. O sofrimento não faz parte da vida? Não conheço ninguém que não sofra algum tipo de dor. Em maior ou menor grau, todos travam uma batalha na vida. A dor é uma escola de força. Quando a aceitamos de maneira “saudável”, ganhamos um domínio interior importante e fundamental para a vida. Isso tem valor humano e espiritual, enriquece a inteligência, leva-nos a perceber o significado da nossa vida, das nossas convicções mais profundas e ajuda-nos a aceitar as nossas limitações. Após um período de sofrimento, uma pessoa aproxima-se da alma dos outros e aprende a ser feliz.
E a felicidade é o quê, afinal? A felicidade não se define, experimenta-se. Trata-se de encontrar um equilíbrio entre o que se deseja alcançar e o que se vai alcançando. Uma ideia importante é que a felicidade não é o que lhe acontece, mas a forma como interpreta o que lhe acontece. Depende do seu olhar perante a realidade. Consiste em relacionar-se de maneira saudável e equilibrada com o presente, superando as feridas do passado e olhando para o futuro com esperança. Não pode ter demasiadas expectativas se quiser ser feliz porque, na realidade, a vida tem uma componente de dor e sofrimento inegável, e é a nossa atitude que faz a diferença e determina se somos pessoas felizes ou infelizes.
Apresenta o
amor como o antídoto do sofrimento. É o que basta?
O que marca a vida é o amor pelos outros, não apenas o amor romântico, de
casal. É a coisa mais importante na vida e o único antídoto para o sofrimento.
É a resposta para tudo. Não há nada na história que cure e proteja tanto quanto
o amor. Existe um estudo muito importante de Harvard que mostra que o parâmetro
que mais condiciona as pessoas a envelhecer saudáveis e felizes é o amor. A
solidão (involuntária) mata, sentir-se sozinho mata, a solidão tem um efeito na
saúde equivalente ao do tabaco. É uma pena que tenhamos de dar uma base
científica às coisas mais óbvias para que as pessoas acreditem nelas. Mas, sim,
é preciso voltar ao amor. E isto é medicina, não é pseudociência. O que
acontece é que vivemos numa sociedade em que deitamos fora o que está
estragado, em vez de o consertar. Também o amor. A esse respeito, teríamos
muito a aprender com os nossos pais e avós.
No seu livro
explica como o stress – o cortisol – e as emoções afetam a saúde.
Podemos considerar a depressão uma doença inflamatória do cérebro? Como é que a
má gestão das emoções pode afetar a saúde física e ser mesmo um fator de risco
para o desenvolvimento de cancro?
Muitos dos distúrbios que afetam a sociedade do século XXI estão relacionados
com a forma como encaramos o ambiente e as pessoas que nos rodeiam e as
dificuldades que nos surgem. Os estados de alerta e o stress permanentes
fazem-nos produzir e libertar cortisol, a “hormona do stress”, que de
forma crónica induz alterações no corpo: a nível gastrointestinal e
neurológico, distúrbios da tiroide, enfraquecimento do sistema imunológico,
morte de neurónios no hipocampo (área do cérebro responsável pela memória e
pela aprendizagem), cansaço, tristeza, apatia e um grande etcétera. Segundo a
Universidade de Harvard, 60% a 80% das doenças que sofremos têm uma relação
direta com emoções tóxicas.
Então, como
gerir melhor as emoções para prevenir esses problemas?
Gosto de dar algumas ideias práticas que penso que são muito úteis:
1.ª –
Conhecer-se. Concentrar-se nas suas virtudes, quem não se conhece não se
compreende nem se aceita, por isso não pode superar-se e melhorar;
2.ª – Evitar
o excesso de autocrítica e exigência. Fugir do perfeccionismo excessivo, pois o
perfeccionista é o eterno insatisfeito. Cuidado com o autoboicote. Para o
controlar é essencial aprender a dominar a voz interior. Grandes treinadores de
ténis estudaram estas questões: num jogo, se os adversários tiverem o mesmo
nível, ganha quem tiver um maior autodomínio. Isto é bem explicado por Timothy
Gallwey no seu livro The Inner Game.
3.ª –
Estabelecer metas e objetivos. Gosto de dizer “sonhe grande, aja
pequeno”. Não tenha medo de deixar o seu coração voar, mas faça um plano
de ação e delineie uma estratégia. Não fique apenas pelo sonho. Aja em
conformidade. É fundamental ser realista nos objetivos que se estabelece. Dizia
Séneca: “Não há vento favorável para quem não sabe para onde vai.” Se
perdermos de vista os nossos sonhos e objetivos, tornamo-nos escravos do imediato.
No ano passado, foi publicado um artigo interessante a este respeito. Pessoas
com um objetivo ou propósito na vida têm menor risco de sofrerem de doenças
cardiovasculares e de morrerem destas;
4.ª –
Trabalhar a vontade. A vontade é a capacidade de adiar a recompensa. Isto
adquire-se com treino, tratando de fortalecer um sistema de controlo
inteligente. É a força superior da mente que nos permite alcançar um objetivo,
não de maneira impulsiva mas cerebral;
5.ª –
Melhorar a assertividade. Trata-se de encontrar um meio-termo entre aceitar que
os outros decidam tudo por nós e não sermos capazes de ter um pensamento
objetivo e respeitar as ideias dos outros. “Eu digo sim quando quero dizer
não; quando digo não, sinto-me culpado.”;
6.ª –
Treinar a inteligência emocional. Isto significa entender e expressar as minhas
emoções, entender e empatizar com as emoções dos outros e controlar as emoções
e a impulsividade.
7.ª – Educar
o otimismo. É possível. Qualquer situação pode ser vista em modo problema ou em
modo solução. Há que mudar a linguagem e começar a usar palavras que evoquem
entusiasmo, alegria, esperança. Rejeitar as palavras tóxicas que nos anulam e
alteram a irrigação sanguínea. O otimismo apela à esperança e à paixão e isso tem
um efeito direto no cérebro e na neuroplasticidade. Observou-se que em pessoas
que praticam otimismo produz-se uma neurogénese: células-tronco convertem-se em
neurónios em três semanas e migram para o hipocampo.
A ansiedade
e a depressão são as doenças do século. A primeira tem que ver com o medo do
futuro, a segunda com a não superação dos problemas e das culpas do passado.
Como ultrapassar uma e outra?
Transformamo-nos no que pensamos. A mente tem um impacto muito importante no
nosso organismo. O medo é inevitável, mas o sofrimento que este produz é
opcional. Os medos curam-se aprendendo a aproveitar a vida, olhando para o
futuro com esperança e vivendo o presente de maneira equilibrada e compassiva.
Porque é que
é importante aprender a perdoar (os outros e a nós)? Libertar a raiva e não
aceitar tudo não é também importante?
Saber perdoar-nos é importante para seguir em frente. O neurocientista Richard
Davidson, fundador e presidente do Centro para Mentes Saudáveis, encontrou-se
uma vez com o Dalai Lama, que lhe perguntou por que é que todos os
investigadores da psique se dedicavam a estudar o stress, a ansiedade e
a depressão e ninguém prestava atenção à bondade, à compaixão, à empatia, ao
perdão… Desde então, Davidson centrou-se na bondade como base de um cérebro
saudável. O meu pai [o psiquiatra Enrique Rojas] tem uma frase que uso muito em
terapia: “Saber olhar – como vejo, como observo, como julgo – é saber
amar”. Trabalhar a forma como olhamos os outros influencia positivamente a
saúde. Para o perdão é a chave: um coração ressentido não pode ser feliz.
A culpa é o
sentimento mais improdutivo? Que papel desempenha e como apaziguá-la?
O sentimento de culpa não ajuda, não a faz crescer, não tira a dor nem a
angústia, é uma emoção tóxica que impede de seguir em frente. Pode vir de si
(dos seus medos, bloqueios ou limitações) e de fora (como os outros a fazem
sentir-se).
“A
realidade muda quando altera a maneira de pensar”, diz no seu livro. De
que forma o que pensamos influencia o que vivemos?
A felicidade depende da atitude que temos em relação à vida. Essa atitude tem
muito que ver – como já referi – com a voz interior. Por um lado, parece-me
fundamental ter sentido de humor, às vezes levamo-nos demasiado a sério! E,
acima de tudo, uma ideia-chave: 90% das coisas que nos preocupam nunca
acontecem. Todas as emoções são precedidas pelo pensamento, às vezes exagerado
ou distorcido, portanto, os pensamentos devem ser educados. Outra ideia que
considero essencial para melhorar a nossa vida no século XXI é aprender a
descansar. O ser humano não está desenhado para viver sempre em modo de alerta
ou sobrevivência, há que aprender a desligar.
Pessoas
tóxicas. Eis uma espécie que cada vez está mais presente nas nossas vidas. Como
detetá-las? E como neutralizá-las?
Existem de todos os tipos: de instáveis e ciumentos a paranoicos, imaturos ou
neuróticos. Têm a capacidade de nos desestabilizar, às vezes em segundos.
Muitas vezes somos nós quem permite que pessoas tóxicas, egoístas, imaturas,
insensíveis ou orgulhosas entrem no nosso círculo mais próximo. Eles
instalam-se nas nossas vidas, opinando e avaliando constantemente as nossas
ações e palavras. A chave para não ficarmos intoxicados está na atitude e na
maneira de os combater. Há que conseguir que não invadam nosso mundo interior e
não anulem nossa capacidade de tomar decisões. É preciso um exercício intenso
para evitar que sejamos dominados pelo seu veneno. São os chamados
“vampiros emocionais”, pela sua capacidade de absorção psicológica,
invadindo tempo, pensamentos e emoções. Aqueles que se deixam invadir por
personalidades tóxicas podem acabar com sintomatologia ansiosa-depressiva,
sentimentos de culpa, de dependência e uma consequente repercussão na
autoestima.
A
necessidade de se sentir em controlo é uma das principais causas de ansiedade
(e produção de cortisol). É possível uma personalidade ansiosa libertar-se
desse medo? Como?
Essa busca constante pelo controlo leva-nos a não apreciar as coisas boas que
estão a acontecer connosco, a esquecer o momento presente, obcecados que
estamos com o futuro. A ansiedade é a febre da mente e da alma, avisa-nos de
que o ambiente é hostil, que há algo que não estamos a gerir bem e que temos de
mudar alguma coisa. Se a pessoa souber o que se passa consigo, se entende como o
cérebro funciona, compreenderá mais facilmente porque é que o seu organismo
está cada vez mais doente. A mente e o corpo não distinguem o real do
imaginário, e se alguém vive constantemente em alerta, fica doente.
Se
conseguirmos ser a “Melhor Versão de Nós Próprios” conseguimos que
aconteçam coisas boas, diz no seu livro. O que é preciso fazer para isso?
Nesta vida, existem três tipos de pessoas: os que fazem as coisas acontecer, os
que olham para as coisas que acontecem e os que se perguntam o que aconteceu.
As chaves para ser a melhor versão de si mesmo estão no conhecimento, é preciso
saber, estudar, para… internalizá-lo. Luís Pasteur disse que “a sorte
favorece a mente preparada”. Portanto, treinar, conhecer-se, saber aquilo
que se quer e de que se gosta é muito importante. O talento, a vontade, a
ordem, a perseverança também contam… Ou seja, é essencial ter isso exercitado
no nosso comportamento. Depois vem o projeto de vida. Quem não sabe o que quer
não pode ser feliz. E tudo isso multiplicado por paixão, que melhora tudo. A
paixão é o que nos ilumina.