Arquivo mensal: Dezembro 2020

A Ti, Esperança

A ti, que nos dás a força.

A ti, que nos impões

simplicidade.

A ti, que nos acordas

e com o rosto sereno

nos ergues de manhã.

A ti, que nada pedes

a não ser um pouco de música

e nada exiges

e nos dás a tua própria ternura.

A ti, que diariamente nos acolhes

e nos trazes riso fresco

e nos dás uvas

e nos fazes cantar

nas horas difíceis.

A ti, que ofereces água

a todos que passam

e mostras um caminho

aos loucos iluminados.

A ti, que com a tua dança,

o teu ritmo, o teu fogo

transformas as paisagens

e deixas ruas cor de ouro

e deixas árvores cor de linho.

A ti, que estás suspensa na noite

como uma lua branca,

e nos enches com a tua claridade

e nos dás o mel e a confiança,

o sol desta alegria de crianças.

A ti, esperança, dedico

agora e sempre

este poema.

João Rui de Sousa

Stille Nacht

Em 1816, nasceu a canção de Natal “Silent Night”. Contam as histórias que na vila de Oberndorf na Áustria, o padre Joseph Mohr, preocupado com a possibilidade de uma noite de Natal sem música, porque os ratos tinham roído os foles do órgão da igreja, procurou um instrumento que pudesse substituir o antigo. Nas suas pesquisas, começou a imaginar como teria sido a noite em Belém. Fez anotações e pediu ao músico Franz Gruber que lhes desse uma melodia. A nova canção foi assim composta originalmente para guitarra. Esta é a mais famosa canção de Natal em todo o mundo. É cantada em todos os lugares onde se celebra o Natal. Os seus autores não imaginavam que a sua canção composta numa aldeia perdida da Áustria daria a volta ao mundo em menos de 200 anos e ficasse para sempre como um símbolo musical do Natal. Musicalmente até tem uma estrutura pobre, anda à volta da tónica e dominante, I, IV e V grau. Por ser assim, ao longo dos anos, enriqueceram-na com vozes e orquestrações, como o provam as diversas versões para coro desta canção. É cantada tanto pelas crianças das escolas como pelos poderosos cantores líricos. Está traduzida em todas as línguas que celebram o Natal. Em francês, tomou o doce nome “Douce Nuit”, em inglês o calmo “Silent Night”, em espanhol a divertida e querida “Noche de Paz”, em português “Noite Feliz” que quer dizer noite feliz, em latim “Sancta Nox” e, já agora, em checo “Tichá Noc”. E em zulu, pronto, “Busuk obuhl”. No original chama-se “Stille Nacht”. “Nacht” é noite e “Stille” quer dizer quieto, calmo, tranquilo, silencioso, calado. O verbo alemão “Stillen” quer dizer sossegar, saciar, amamentar. Não pensou mal o padre Joseph ao tentar imaginar o que se teria passado naquela noite em que Jesus nasceu. Foi, com toda a certeza, uma noite serena, uma noite de paz. Um início revelador.

Um dos significados que encontro no Natal é este: o do silêncio. O silêncio onde o Homem se encontra com Deus e descobre o sentido da sua vida. O silêncio onde cada um de nós se torna mais elevado. Como a sociedade dá pouco valor ao silêncio e fala demais, acaba por perder a sua orientação. É curioso que as curas modernas para os stresses diários, umas mais eficazes do que outras, sejam todas operadas em silêncio. Ele é o yoga, o tai-chi, o pilates, a aromoterapia, a musicoterapia, os exercícios de respiração e relaxamento, as massagens, as aulas de flexibilidade, de corpo e mente e outras modalidades. Não percebe o executante que uma grande parte do sucesso destas terapias vem do tempo que, por vias delas, acaba por dedicar ao silêncio e ao encontro consigo mesmo. E sente-se melhor no fim daquela hora.

Tudo o que é belo vem do silêncio. Não se constrói nada de valor e duradouro no meio do barulho e da inquietação. É necessário sensibilizar o nosso corpo para além daquilo que os nossos sentidos nos mostram. É necessário a todos ver a beleza, a proporção, o limite e o abstrato. Procurar o que existe no silêncio. Nós também somos feitos do ar que respiramos, do silêncio das flores a crescerem, do silêncio de uma obra de arte, do silêncio de uma oração, do silêncio do sol e da lua, do eterno. A felicidade, a satisfação e a alegria que todos procuram não estão no mesmo plano do dinheiro, do poder, das vaidades, dos carros, das casas e da doutorice. Estão no plano do silêncio, da quietude, da serenidade. É necessário perceber que as vidas que crescem em silêncio são diferentes das outras. Os que entendem isto são felizes mais cedo.

                                                                          Jorge, Natal de 2008

Na vila de Oberndorf há atualmente uma capela “Capela Noite Feliz”, em cujos vitrais há a imagem dos criadores da canção. Esta capela tem lugar para 20 pessoas, porém, atualmente, a Missa do Galo é celebrada ao ar livre para 7 mil fiéis, além da visita de 1600 turistas no mês de dezembro.

As festas

Valter Hugo Mãe, 21.dezembro.2020,
Jornal de Notícias

Sei bem que não estarei com as minhas pessoas nas festas, mas quero acima de tudo que tenhamos uma infinidade de anos para nos voltarmos a juntar. Resisto bem à distância imposta agora porque sinto que a companhia incide na convicção da pertença. Pertencermos genuinamente a alguém e alguém nos pertencer é não sermos sozinhos. Ao contrário, por mais rodeados de gente que estejamos, sem essa ideia de sermos inelutavelmente uma dimensão intrínseca do outro seguimos sós. Farei das festas a celebração desta companhia, a de saber que as minhas pessoas me justificam sempre a vida, quer nos vejamos mais ou menos, quer nos falemos mais ou menos. Cada coisa que faço ou conquisto é uma alegria que me cobre e as cobre. Quer nos vejamos, falemos ou não.

Amenizo a ansiedade pela lúcida alegria de saber que estamos de saúde e nos continuamos a amar. E vamos dispor a refeição na mesa como se nos imitássemos uns aos outros. Sabemos os nossos costumes, manias e melindres, sabemos das ínfimas especificidades, e será fácil pressentirmos a algazarra. Temos a voz de cada um como património íntimo, ouviremos o que nos parecer urgente e responderemos com gratidão. Por todo o tempo que a vida me der no Mundo onde estão também aqueles que amo, eu praticarei a gratidão.

Por mais que nos devamos defender da pena da pandemia e da derrocada económica, o começo de toda a ajuda estará em mantermos pontos de luz como ofício de esperança. Não há sentido naqueles que não esperam nada, os que desistiram de qualquer hipótese para futuro. Quando me sentar à mesa, mais sozinho do que em outras festas, colocarei diante de mim esse desafio sincero, do amor à esperança, minha forma de lutar vai ser a de homenagear cada ausente com a ideia de que quero resistir e quero obrigar a resistir. Haverá futuro. Tenhamos sempre um compromisso com ir lá ver como estaremos ainda juntos por essa alegria de nos continuarmos a pertencer.

Este ano, a minha mãe dispôs lembranças e algumas peças que decoram os cantos das estantes em jeito de presépio de pessoas e viagens. Não é imperioso que decalque o nascimento de Cristo. De algum modo, tudo se celebra agora, como se tudo fosse de nascer agora. Gosto que esteja a pequena estatueta de Jorge Amado, ou a ovelha que a minha amiga Lourdes Pereira me trouxe de Mallorca. Gosto que esteja o São Bento e a pequena romã que comprei na Grécia. Pelas pessoas e pelos lugares, a minha mãe inventou um presépio onde se amam todas as pessoas e todos os lugares. Se isso não for o melhor que alguma fé poderia fazer por nós, então já não entendo nada. Por todo o tempo das festas, o presépio perfeito da minha mãe é uma lição. Honra quem somos e promete não esquecer.

Quando servirmos o bacalhau, lembraremos. Faremos votos para que todos encontrem a mesma paz, apontem à mesma esperança, mantenham-se saudáveis por modo de amar.

Clarice Lispector

No dia 10 de dezembro de 2020, celebrou-se o centenário de Clarice Lispector, essa misteriosa e incomparável escritora que hoje é lida e estudada no mundo inteiro.  Ucraniana e judia, aportou no nordeste do Brasil e aqui ficou.  Graças a Deus e felizes de nós que hoje contamos com sua obra como uma das maiores riquezas nacionais. Mulher bela e refinada, Clarice começou a escrever por pura inspiração, sem querer nem planejar, e hoje é referência para toda e qualquer escrita que se queira humana.

Muito foi escrito sobre essa grande escritora e artista da palavra.  A linguística e a literatura estudaram-na em todas as línguas e todos os ângulos.  A filosofia debruçou-se sobre a sua obra.  Ultimamente a teologia também se tem ocupado da obra de Clarice.  Porquê?  Porque Clarice é apaixonada pelo mistério de Deus.  E porque revela nas suas obras uma intimidade com esse Mistério Santo, que deixa perplexos o teólogo e o crente, que por sua mão são levados a caminhos ainda não trilhados.

Como disseram recentemente as suas amigas mais íntimas em declarações e entrevistas a propósito do seu centenário, Clarice é uma mística.  Talvez ela mesma não aceitasse ou concordasse com essa qualificação.  Porém, é inevitável fazê-la ao ler sua escrita e constatar que ela é, sim, alguém que conhece a Deus por experiência.  “Cognitio Dei experimentalis” (conhecimento de Deus por experiência) é a definição que dá sobre a mística Tomás de Aquino.  Secundado por seu discípulo Jacques Maritain, que define a mística como “experiência fruitiva do Absoluto”.

É impossível escrever o que Clarice escreveu sem “saber”, numa sublime “docta ignorantia”, até onde a levaria esse Mistério sem fundo, no qual se lançava com as suas palavras numa atitude vertiginosa que provoca vertigem em todo aquele que a lê. Não seria possível ler a Paixão segundo G. H. sem ali ver o itinerário de despojamento que desemboca na comunhão, digno de uma Teresa de Ávila e um João da Cruz.

O itinerário da personagem GH é místico, porque mística é a autora que a cria, essa mulher burguesa e alienada, que começa um processo de descida ao quarto da empregada, onde, na verdade, encontra um minarete que a leva a olhar para o infinito. Ali se inicia um processo ascético e purificador, que prepara o alargamento do eu que se segue à morte do mesmo eu pelo mergulho na alteridade da matéria, do mundo, do outro.  A personagem de Clarice toca os extremos da condição humana, ou seja, a vida e a morte.

Nesse processo que se assemelha a um parto, onde a mulher é literalmente expelida do seu pequeno e reduzido mundo para o mundo tal como ele é, existe permanentemente a “mão que me sustenta”. Ali GH, aliás Clarice, não depende mais de si mesma, mas de outro, daquela mão que a sustenta e toca a sua, daquela mão na qual confia e com a qual dialoga e à qual suplica: “Ah, não retires de mim a tua mão”. No entanto, a um certo ponto, a mulher larga a mão que a sustenta para continuar sozinha o percurso em direção ao Deus que a chama e que dela deseja algo que ela sente não poder dar.

Assim diz a personagem: “Eu estava em pleno seio de uma indiferença que é quieta e alerta…De um Deus que, se eu amava, não compreendia o que Ele queria de mim.”  Mas no meio da provação, da busca e do pranto, sente que Deus vem a ela. “E no soluço veio a mim o Deus que me ocupava toda agora.” Nesta descida purificadora, nesta entrada no coração do nada, a personagem não estava diante do mal, mas de Deus.

O diálogo entre Deus e aquela que o busca, aquela que é iniciada no conhecimento é feito de perguntas sobre o Ser: “O que És?”  E a resposta é: És. O que existes? E a resposta é: “o que existes.”

No olhar da teóloga que sou é impossível não ver aí a judeidade de Clarice emergindo com força, é inimaginável não sentir uma proximidade perigosa e estonteante entre o que diz a personagem e o diálogo primordial de Moisés diante da sarça ardente, no capítulo 3 do livro do Êxodo.

Com os avanços da exegese, as traduções e interpretações dessa afirmação d´Aquele que falava de dentro da sarça e que se identificara como o “Deus de teus pais, o Deus de Abraão, Isaac e Jacó” variam. “Eu sou aquele que sou”; “Eu sou aquele que serei” etc.

Clarice encontrou, através da palavra escrita, o rosto desse Totalmente Outro que buscou ao longo da vida. E que a ela se revelou no seu mistério jamais totalmente desvelado. Com Clarice Lispector, no seu centenário, somos convidados a aprender a fugir de qualquer tentação banalizante do divino e a inclinar-nos respeitosa e silenciosamente diante do seu Mistério Santo.

Maria Clara Bingemer é teóloga e professora associada de dedicação exclusiva do departamento de teologia e decana do centro de teologia e ciências humanas da PUC – Rio de Janeiro.