Arquivo mensal: Fevereiro 2021

Dar espaço à alegria

Vivemos tempos difíceis, cinzentos, com o medo sempre à espreita. Ao mesmo tempo somos permanentemente bombardeados com conselhos para “Pensar positivo”, “Não atrair más energias” e “Ver o lado bom do que de mal nos acontece”. Não é fácil e muitas vezes não é sequer possível ou aconselhável. As situações difíceis obrigam a que nos adaptemos e o “pessimismo adaptativo” de que alguns psicólogos falam e que nos leva a imaginar os piores cenários, delinear planos B e C pode ser útil para acomodarmos as mudanças e perdas necessárias. Pode, também, fortalecer-nos porque já nos adiantámos às dificuldades da situação e já demos os passos necessários, as ações que dependem de nós para lidar com ela.

Especificamente em relação à pandemia, a mensagem que alguns life coaches ou gurus da autoajuda divulgam com o objetivo de ajudar pessoas em dificuldades é: “Ver esta situação como uma oportunidade”, ou até mesmo como uma “Mensagem do Universo para que alteremos os nossos comportamentos”. Esta mensagem, por mais bem-intencionada que seja, é culpabilizadora, seja pela intenção do Universo ou pela invalidação da pessoa em sofrimento. A imposição do pensamento positivo muitas vezes chega ao ponto de corresponsabilizar a pessoa pela situação que está a viver porque ela “atraiu energia negativa” ou está “num pensamento de escassez em vez de abundância”. Nada nesta mensagem é empático ou apoiante porque começa por negar a perspetiva do outro e as emoções que ele está a sentir.  Pelo contrário, culpabiliza e deixa a pessoa menos apta até a fazer mudanças que lhe permitiriam melhorar a sua realidade.

Sem dúvida que muitas pessoas estão a fazer ajustes decorrentes desta situação que vão no sentido de uma melhoria da sua qualidade de vida e de um melhor equilíbrio entre as várias áreas da sua vida e os seus vários papéis, mas quem estiver a viver estas situações como uma oportunidade não precisa de apoio ou nem estará em dificuldades. Por outro lado, quem está em sofrimento precisa de um apoio empático que começa por dar a devida dimensão aos medos, perdas e ameaças que a pessoa possa estar a viver. Perante ameaças reais, não precisamos só de pensamentos positivos, precisamos de uma visão global e realista da nossa realidade.

O medo, a raiva e a tristeza, emoções menos populares do que a alegria, também são adaptativas. O medo mobiliza-nos para a nossa proteção, a raiva dá-nos energia para enfrentar o desconhecido e esforçarmo-nos pelo que queremos e a tristeza ajuda-nos a aceitar o que não podemos mudar, reorganizando a nossa perspetiva sobre eventos de vida e permitindo deixar ir, avançar e voltar a estar no presente. Todos estes movimentos impulsionados por estas emoções, ainda que cruciais, desgastam-nos, consomem energia e, por isso, é preciso dar espaço a uma outra emoção que nos retempera, que nos energiza e que nos sabe bem, a alegria. E quanto mais difíceis são os desafios mais precisamos de nos apoiar e de nos compensar. Ou seja, em alturas de maior dureza, também os momentos de prazer e conforto precisam de aumentar. Por isso, em psicoterapia, insistimos em estimular estes momentos. E fazemos perguntas neste sentido, perguntas que sugiro que faça agora também a si próprio:

  • O que é que o faz sentir-se alegre?
  • Quando é que perde a noção do tempo?
  • Quando é que está tão embrenhado ou divertido que se esquece temporariamente do que o preocupa?
  • Quando é que se diverte?
  • O que é que o faz rir?

Quase toda a gente consegue identificar momentos destes, que podem ser a fazer um desporto, jardinagem, ouvir um podcast, ler um livro, ver um programa de televisão que considere interessante ou jantar com amigos.

A seguir, perguntamos há quanto tempo não faz o que acabou de descrever. Muitas vezes, a pessoa já nem sabe se o programa ainda existe ou qual a última vez que tal aconteceu. E aqui é que nos podemos ajudar. Deixámos de poder fazer muitas coisas de que gostávamos. Mas não deixámos de poder fazer tudo e sobretudo não deixámos de poder procurar a alegria e o prazer em novas atividades. Todos sabemos que quando a realidade aperta, as prioridades vão para as obrigações, deixando a diversão de ter espaço na nossa rotina. Só que todos nós temos limites e uma reserva finita de força anímica.

Quanto mais se gasta, mais temos de repor. Por isso, é importante dar espaço à alegria na nossa vida, numa procura ativa para a encontrar. Não na ilusão de que uma vida boa se consegue negando e ignorando os desafios e dificuldades que se nos apresentam, mas mobilizando o nosso esforço também para o que nos nutre e para o que nos faz sentir bem.

Ana Moniz (Aveiro 1976). Licenciou-se em Psicologia, ramo de Psicoterapia e Aconselhamento pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Especializou-se em psicoterapia cognitivo-comportamental e coaching executivo. Tem trabalhado como psicoterapeuta de adolescentes e adultos em contexto privado e é formadora de áreas comportamentais e coach de executivos em contexto empresarial. Autora do livro: “Este livro não é para fracos: como agir com coragem está ao alcance de todos.”

Entra no teu quarto

Homilia do Cardeal José Tolentino de Mendonça na Celebração de Quarta-feira de Cinzas

Queridos irmãs e irmãos,

O imperativo que hoje escutamos na voz do Senhor é o convite que este tempo da Quaresma nos faz: “Entra no teu quarto e ora a teu Pai que está no segredo.”

“Entra no teu quarto.” Isto é, entra dentro de ti, entra no teu coração. Muitas vezes vivemos só à superfície, vivemos no rame-rame da vida, vivemos à pele os acontecimentos. Mesmo a espiritualidade é alguma coisa sobretudo de fora, uma expressão de gestos, de atos, de coisas que fazemos. A verdade é que a nossa vida interior vai definhando, vai perdendo a capacidade de inspirar a vida, vai ficando para quando tivermos tempo que nunca temos. Vamos perdendo a coragem de entrar dentro de nós, vamos desacreditando de nós, desacreditando de que é possível, de que vale a pena, de que Deus nos ama realmente e nos transforma, e acabamos por viver uma vida apenas superficial.

“Entra no teu quarto.” O tempo da Quaresma é um desafio a vivermos com interioridade o próprio tempo entrando dentro de nós. Não é entrar no quarto ao lado, no quarto do outro, na vida do outro. É entrar na nossa própria vida, olharmos para nós próprios, para aquilo que somos, para aquilo que vivemos. É que acontece muitas vezes que temos olhos para tudo menos para a nossa própria vida, porque exatamente a nossa própria vida é aquilo que nos custa mais ver. Temos consciência dos pecados, das fragilidades, das dificuldades de toda a gente (“Já viste este. Já viste aquela. E mais isto e mais aquele outro”) e da nossa própria vida nós não tomamos consciência.

“Entra no teu quarto.” Quer dizer: “Toma consciência da tua vida, da qualidade da tua vida.” Da qualidade espiritual, da qualidade de amor, da qualidade de generosidade, da qualidade ou não de misericórdia que tu vives. “Entra no teu quarto.” Isto é, escuta o teu coração, entra. E entra com esperança, porque não é apenas para ficarmos perdidos no nosso caos interior, mas é para olharmos o Pai, descobrirmos o Pai, dentro da nossa vida descobrirmos que Deus é Pai, que Deus nos ama. E se Deus nos ama, Deus estende-nos a mão. Quando Pedro se estava a afundar nas águas e pediu: “Senhor, salva-me.” O Senhor estende-lhe a mão e é esse gesto que Deus faz a cada um de nós.

“Entra no teu quarto e descobre, redescobre que Deus é teu Pai e que Deus é uma presença de amor.” E porque Deus é Pai Ele assiste ao nosso parto, Ele assiste à reinvenção de nós mesmos, Ele assiste à transformação interior da nossa vida.

Nós estamos aqui porque precisamos de conversão, eu antes de todos, mas cada um de nós está aqui porque precisa de conversão. Não é por outra coisa, é por isso, porque precisamos de conversão. Eu preciso de conversão, eu preciso de transformação, eu preciso que a Palavra de Deus se torne mais autêntica em mim, preciso de maior verdade, de maior generosidade, de maior misericórdia, preciso de transformação. No tempo da Quaresma os cristãos entram para obras, isto é, para reparações, como uma casa de vez em quando precisa de um teto novo, precisa de um soalho, de uma porta, de uma reparação qualquer. Nós também precisamos de reparação, nas nossas costas devia haver uma tabuleta a dizer: “Para obras. Este/Esta está em obras.” É isso que nós estamos, estamos em obras e para isso cada um de nós tem de ter consciência do seu pecado e da sua limitação.

Queridos irmãos, o pior que nos pode acontecer é ignorarmos o nosso pecado, ignorarmos a nossa fragilidade. Por isso este tempo também é um tempo para tomarmos consciência do egoísmo, do desamor, do peso com que sobrecarregamos os nossos irmãos, das nossas omissões que muitas vezes são o nosso maior pecado. Tomarmos consciência disso, mas tomarmos com esperança de quem sabe que Aquele que nos vê, Aquele que nos olha não é um impiedoso juiz mas é um pai misericordioso que nos estende a mão e diz: “Confia, acredita, o Meu amor é possível.” E então, este amor que nós recebemos de Deus é uma força que transforma a nossa vida, que nos coloca de pé.

Como é que vai ser este trabalho de reparação interior em que todos entramos? Vai ser um trabalho pensado, um trabalho consciente. Isto é, não pode ser: “Comecei a Quaresma, pronto. O que acontecer aconteceu.” Não, eu tenho de programar, eu tenho de entrar dentro de mim. Se calhar já entrámos, e temos de entrar porque neste tempo nós temos de ter os olhos bem abertos para nós mesmos. Sem ficar colados aos sapatos, mas olhando para longe. Mas temos de estar atentos a nós mesmos, mas temos de ter um programa. Isto é, eu que me conheço, que olho para mim, o que é que eu posso fazer com a ajuda de Deus para transformar a minha vida?

Aqui de facto os três “P” ajudam muito: o que eu tenho de fazer é uma coisa pequena, não é uma coisa grande; o que eu tenho de fazer é uma coisa pessoal, não é uma coisa para os outros; e o que eu tenho de fazer é uma coisa possível, Deus não me pede o impossível, Deus pede-me coisas possíveis. Então, neste tempo de Quaresma era muito importante que cada um de nós tivesse dois, no máximo três propósitos. Dois ou três, não é preciso mais. Que fossem pequenos, pequenas coisas que estão na nossa vida, que estão ao nosso alcance combater, lutar, transformar. Que sejam coisas nossas, não vou combinar com o outro, não, sou eu que tenho de mudar, sou eu. E uma coisa que seja possível, uma coisa que realmente eu veja que com a ajuda de Deus eu consigo mudar. Então, cada um de nós tenha estes dois ou três propósitos e vá caminhado.

Nós celebramos o tempo da Quaresma quando esperamos a primavera. Sabemos que a primavera não está longe. E há a primavera que as árvores vão mostrando, mas há sobretudo uma primavera interior, um rejuvenescimento da alma, uma juventude de coração que cada um de nós pode ganhar. “Pode um homem sendo velho nascer de novo?” Sim, pode nascer de novo pelo espírito, por esta transformação interior.

Queridos irmãos, que nenhum de nós fique parado, que nenhum de nós fique desmobilizado. Este tempo é um tempo para estar mobilizado e contar com a ajuda de Deus. É o amor incondicional que Ele nos dá que é a nossa alavanca, que é o nosso trampolim. É claro, os mais pequenos podem fazer umas coisas, os grandes podem fazer outras. A nossa penitência é uma coisa pessoal, muitas vezes é uma coisa entre nós e Deus, mas que seja verdadeiramente e cada um à sua medida faça alguma coisa. Este não é um tempo de boas intenções, a Quaresma é um tempo prático. É pouco, é poucochinho, pronto, mas faz alguma coisa, faz. Porque a fé é também um fazer, um praticar.

Vamos hoje benzer estas cinzas, que são um sinal austero, é dizer ao Homem: “Olha, lembra-te que um dia vais ser cinza, e que tudo aquilo que tu achaste que era o maior, tudo isso tudo vai passar. Então, lembra-te disso não para entristeceres, mas lembra-te disso para fazeres as escolhas certas, aquelas que não passam.” Vamos ouvir, quando recebermos a cinza na nossa cabeça: ”Converte-te e acredita no Evangelho.” Que essa palavra seja guardada no nosso coração e demos hoje o primeiro passo.