Arquivo mensal: Fevereiro 2023

Estrada Quaresmal 2023

Os meus ruídos salvam-me

Mensagem para a Quaresma

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Dentro de mim, há espaço para luzes e sombras, para o bem e para o mal. Quando o mundo exterior se acalma, presto atenção aos meus ruídos interiores, frutos de emoções desaproveitadas, de desenganos, de incómodos.

Nesta Quaresma, vou acolher estes meus ruídos. Vou olhá-los e aprender a lavrá-los para que se tornem fertilizante para uma terra fecunda, a dar Vida.

Os meus ruídos são silêncios. De indiferença e de omissão. De egoísmo e de preconceito. De exigências desumanas e de desamor.

Os meus ruídos evocam-me memórias. Do que não sonhei. Do que não cuidei. Do que não defendi. Do que disse. Do que senti. Do que não ofereci.

Os meus ruídos provocam-me. Com perguntas para as quais não tenho resposta, com dúvidas para as quais não encontro certezas.

Os meus ruídos existem. E lembram-me que a vida só pode ser caminho, construção, colocar e retirar, andar e recuar.

Os meus ruídos falam-me. E dizem-me que não tenho em mim todas as respostas, que não domino todos os acontecimentos.

Os meus ruídos ensinam-me. Que o caminho que vou percorrendo resulta das escolhas que vou fazendo com aquilo que me é dado saber, abrindo espaço para acontecer.

Os meus ruídos mostram-me. Que posso cair, mas que o Amor de Deus ergue-me sempre de novo. Que posso ter medo, mas que não o atravesso sozinha. Que posso sofrer, mas estou sempre bem acompanhada.

Por isso, os meus ruídos também me salvam. Porque me fazem acreditar que há um Deus que só sabe ser Amor, um Deus que sabe dançar comigo, um Pastor que me conduz àqueles belos prados verdejantes.

Os meus ruídos também me permitem aceitar em mim a fragilidade da vida, a imprevisibilidade dos acontecimentos. E assim caminho entre pedras e planícies, entre voos e mergulhos, entre abraços e separações.

Os meus ruídos trabalhados em mim são boia de salvação. Fazem-me acreditar que, no meio da tempestade, há um Deus que fica sempre comigo.

Os meus ruídos pedem-me que confie no que ainda não vejo. Naquele amanhã novo da decisão de viver mais. Na loucura de uma cruz que é sempre salvação para o mundo. No desconhecido que anuncia aquela manhã gloriosa de Primavera em flor.

Os meus ruídos são a ponte que me leva à outra margem. A um lugar onde o silêncio é apaziguador, onde a Vida é sempre vida em tom maior, onde Ele me espera de braços abertos.

Os meus ruídos levam-me a um Deus que me conhece antes de eu mesma me conhecer, um Deus sempre novo que quer fazer da minha vida, em cada dia, uma Páscoa sem fim.

Quaresma. Escutar o que me fala em mim. Quarenta dias de procura, de trabalho, de conhecimento interior. Não para penitenciar. Não para desesperar. Quarenta dias de oportunidade. Para escutar estes ruídos. Para os transformar. Para fazer da minha vida um dia de Páscoa eterna.

Falar para CRER

A paróquia da Matriz vai promover, em parceria com a Comunidade Estrada Clara, os encontros “Falar para CRER”. Numa época em que é cada vez mais imperioso e urgente que os cristãos saibam “dar razões da sua esperança” (1 Pe 3, 15), estes encontros surgem com o objetivo de fomentar o conhecimento da vida cristã, de refletir acerca do que é acreditar e de permitir a partilha de experiências comunitárias. Atualmente, é visível e inegável o poder da palavra, a força da comunicação. É importante falar, mas mais importante é saber falar e saber do que se fala quando se está a falar. É em partilha, em conversa, em relação que vamos aprendendo, descobrindo, assimilando ideias, conhecimentos e conceitos e construindo, assim, a nossa identidade. Tudo isto é igualmente válido para a vida em Igreja. Há muita desinformação a circular, ideias pré-concebidas, preconceitos enraizados que precisam de ser desconstruídos e isto só é possível através da formação. O poder da comunicação é universal e, em contexto religioso, leva-nos a consolidar as nossas crenças, a perceber aquilo em que acreditamos, a viver o que cremos.

Neste sentido, os encontros “Falar para CRER” pretendem ser um espaço de partilha e de reflexão sobre o Outro, que é Deus, e com os outros, que somos todos nós. Os temas abordados terão por base a atualidade da mensagem da vida cristã e o modo como podemos (e devemos!) trazê-la para o nosso quotidiano, para as nossas escolhas e para os nossos contextos. Refletiremos sobre a possibilidade de viver nas nossas vidas a vida de Jesus Cristo e, de um modo muito particular, como podemos ser cristãos esclarecidos e comprometidos com a comunidade paroquial em que estamos inseridos. A metodologia utilizada será a do diálogo partindo sempre de um texto, sendo depois a partilha feita também em pequenos grupos comunitários. Estes encontros terão uma periocidade mensal e estão abertos a todos os elementos das comunidades paroquiais. Não é necessária inscrição. Contamos com todos os que se quiserem juntar a nós.

1.º Encontro “Falar para CRER” – 8 de fevereiro de 2023 (4.ª feira), das 21h às 22h30, no Salão Paroquial da Matriz

A vida toda para toda a Vida

Dia da Vida Consagrada.

Quando se pensa em “vida consagrada”, associa-se esta expressão ao estado mais comum, a vida sacerdotal ou religiosa. No entanto, a vida consagrada tem uma dimensão muito mais ampla. Ser consagrado/a significa dedicar a vida a uma Vida Maior, a um projeto de construção com os Outros por causa desse Outro que é o nosso Deus. Consagrar é tornar sagrado, assumir como relevante, rotular como importante. E esta noção de consagração envolve qualquer escolha de vida e significa sempre uma disponibilidade de coração, de pensamento, de confiança.  Há vinte anos, eu, o Jorge e a Beatriz fomos escolhendo (e digo escolhendo porque este é sempre um caminho que se vai fazendo) esta vida consagrada, dedicada à nossa Comunidade, ao nosso projeto de vida que é a nossa vida toda. Nunca nos guiamos pela ideia limitada que há, segundo a qual a vida em Igreja é só para os tempos livres, para quando é possível, para quando não há mais nada para fazer, para quando se é novo ou velho. Connosco acontecia o contrário, ou seja, tudo o que não acontecesse na Igreja (catequese, grupos de jovens, eucaristias, encontros, passeios, retiros, jornadas) não nos despertava muito interesse. Foi e continua a ser esta a nossa escolha, a de construirmos um projeto de vida cristã que tem como princípios a oração, a espiritualidade, a música, a cultura, o silêncio, o pensamento, o acolhimento, a partilha de ideias e o compromisso diário com uma Vida Maior. Os elementos que connosco partilham esta Estrada – e que são pais e mães, adultos e jovens – são testemunho desta proposta de vida cristã. Costumamos dizer que somos muito felizes com as escolhas que fazemos porque são as nossas escolhas. Nestes últimos dezassete anos, nós os três partilhamos uma vida em comum no espaço onde vivemos, rezamos, conversamos, choramos, sonhamos, sofremos e acreditamos. Por tudo isso, acreditamos que esta nossa vida comunitária poderá ser um incentivo para outras pequenas comunidades de vida em comum que existam em Igreja. “A vida toda para toda a vida”, foi o que prometemos os três num dia bonito de verão diante de um projeto de Vida. E assim continuamos. Feliz dia dos Consagrados!

Ana

No primeiro dia…

Reflexão para o mês de fevereiro de 2023

Uma Luz que não se apaga!

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

“Assim deve brilhar a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai que está nos Céus.” (Evangelho segundo São Mateus – Mt 5, 16)

“Estórias Abensonhadas” é o título de um livro do criador de palavras e escritor Mia Couto. Considero esta expressão muito feliz e muito verdadeira. Somos, de facto, este misto de bênçãos e de sonhos, somos “abensonhados”. E a nossa vida, com todas as suas alegrias e tristezas, avanços e recuos, risos e choros, é um conjunto de histórias que reflete esta inegável variedade. Em todos os tempos, Deus escolhe-nos, chama-nos pelo nosso nome e conhece quem somos.

Nesta passagem do Evangelho de São Mateus, Jesus reforça-nos esta bênção. Somos feitos de Luz. Jesus diz-nos que nós já somos esta Luz. E Ele confia em nós, nunca o deixando de o fazer em momento algum. Jesus encoraja-nos a tomar consciência disso mesmo, ao procurarmos ser e viver essa Luz. Ser esta luz através das nossas obras, dos nossos movimentos, das nossas idas e vindas. Todos nós cristãos somos chamados a agir de um modo comprometido. Jesus convida-nos a segui-lo e espera que este nosso seguimento se manifeste num estilo de vida. Anunciamos Jesus através daquilo que somos, de quem somos, daquilo que vivemos e escolhemos.

Por isso, não pode existir um cristianismo que não esteja envolvido nos desafios atuais que a nossa sociedade apresenta. O cristão deve estar onde a dignidade é ameaçada, onde a injustiça quer dominar, onde os irmãos são rejeitados. Ser cristão não é nunca viver à parte. Ser cristão é fazer parte da parte, de todas as partes. O cristianismo autêntico, real, concreto vive-se, mostra-se, apresenta-se. Por isso, a vida do cristão é sempre a sua primeira mensagem. O cristão humaniza os ambientes, os contextos em que habita. O cristão torna visível, com a sua vida, a profundidade das coisas, o mistério de Deus.

Todos nós temos essa luz que atrai quem nos rodeia. Felizmente, não faltam exemplos de pessoas que fazem da sua vida um hino à bondade, ao altruísmo, à relação. Mas aqueles que acreditam que esta nossa luz vem de Deus, sabem que esta luz é mais verdadeira, mais universal, mais comunitária. A luz do cristão nunca brilha sozinha. A luz do crente nunca existe no singular. Não é a minha luz, é a luz de Deus para o mundo. Através do meu caminho, das minhas escolhas, eu deixo que Deus venha ao mundo. Deus diz-se presente no mundo atual através daquilo que o cristão é. Por isso, a nossa tarefa enquanto discípulos de Jesus é deixar transparecer essa luz que em nós habita, é ser sinal da sua presença divina no meio dos homens.

A missão do cristão é manter esta luz acesa quando, tantas vezes, é mais fácil diminuí-la ou até mesmo apagá-la. E não precisamos de culpar os outros, as circunstâncias, o mundo. A responsabilidade é, muitas vezes, apenas nossa. Quando deixamos de falar em esperança, quando vivemos a indiferença, quando não sabemos ser gratos, quando silenciamos a vontade de pertencer, quando fazemos cálculos em vez de amar. De cada vez que esta luz se apaga, deixamos que a aridez da nossa alma cresça. Tornamo-nos profissionais da tristeza, da negatividade, do desespero. Tornamo-nos menos quando não nos permitimos ser mais. Assim, o maior projeto humano é não deixar que o mundo, tantas vezes agreste, nos seque, é não permitir que os incêndios quotidianos nos queimem a vontade de sonhar, é não possibilitar que o fim da linha faça parte do nosso desenho.

Nesta passagem do Evangelho, não é por acaso que Jesus refere, quase em simultâneo, luz e mundo. Isto acontece porque não se pode dissociar estas duas realidades. Um cristão precisa do mundo e Deus desafia-nos a abraçá-lo, a acolher as suas circunstâncias e a viver de um modo íntegro neste lugar de tanta contradição. O cristão não é uma realidade abstrata ou inconcreta. O cristão é chamado a exercer, com a sua luz, um poder modificador. Este é o maior tesouro que Deus nos dá. Podermos ser, com Ele e por Ele, Luz para um mundo novo. Por isso, devemos perguntar-nos: o que faço com esta luz que me é dada? Como pode a minha vida refletir esta luz que me foi oferecida?

A nossa luz brilha sempre que os nossos olhos não se fecham, sempre que continuamos a caminhar até à Terra Prometida, sempre que decidimos seguir viagem. Esta Luz é vida que vive em cada dia nosso. Vivermos em relação é condição fundamental para descobrirmos em nós luzes que levávamos e não víamos. Todos temos esta luz. E temos escolhas. Podemos esconder esta luz e fingir que não é nosso o papel de fazer do mundo um lugar de gratidão. Ou podemos revelar esta luz e iluminar os dias que nos são dados, mostrando ao mundo como é possível fazer caminho em paz, fraternidade, comunidade.

Deus chama-nos a todos a sermos esta luz, sem condições ou restrições. A todos nos é oferecida esta possibilidade, a de sermos luz. É desafiante? Muito. É exigente? Tantas vezes. É caminho de vida? Sempre. A essencialidade do nosso ser humano só se completa quando aceitamos dar a vida pela vida desta luz. É sempre dando que recebemos. É sempre iluminando que somos iluminados. Que possamos ser, em cada dia, a Luz que vem de Deus, esta luz que nunca se apaga em nós. Que a nossa Luz brilhe sempre entre nós.