Reflexão para o mês de outubro
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
“Tocámos flauta para vós e não dançastes, entoamos lamentações e não chorastes.” (do Evangelho segundo São Mateus 11, 17)
Na última edição dos Globos de Ouro, a cantautora Ana Lua Caiano, ao ser galardoada com o dito prémio para melhor música do ano, agradeceu a atribuição que lhe foi dada com um discurso simultaneamente simples e factual. Lembrou ela, no tal discurso, a importância que a música assume na vida de todos os dias, em todos os momentos e circunstâncias, ao ponto de ter tido e continuar a ter o poder de destruir ditaduras e provocar revoluções. Uma das frases por ela dita tocou-me particularmente: “A música acompanha-nos quando estamos de luto ou quando nasce alguém.” É das tais verdades mais que evidentes que todos sabemos que existem, mas que precisam de ser ditas por alguém e por nós ouvidas para termos a possibilidade de nelas nos demorarmos a pensar. De facto, a música tem este poder, tem este acompanhamento, tem esta relação connosco, esta ausência de indiferença.
A música serve aqui como um exemplo da necessidade que temos de estarmos disponíveis para o que a vida nos quer oferecer. Na estrada que é a nossa vida, vamos acumulando vivências e experiências que nos vão edificando. A grandiosidade da vida reside precisamente na nossa abertura à realidade e, também ao que vai para além dessa mesma realidade e que só é visível com um olhar amplo, atento, amoroso. O tal olhar de Jesus. A tal forma de perspetivar as circunstâncias vividas. A tal postura perante o que vai acontecendo e que faz toda a diferença.
As palavras que Jesus usa, retiradas do Evangelho segundo são Mateus e que servem de mote a esta reflexão, são dirigidas à sociedade do seu tempo, uma sociedade fechada no seu casulo, importada tão somente com o seu ego, defendendo acerrimamente os seus individualismos. Uma sociedade onde as pessoas só pensavam nos seus interesses e onde não sobrava espaço para o ideal comunitário. Uma sociedade onde o bem, a confiança, a justiça, a fraternidade, a comunhão e o respeito não faziam parte dos gestos diários. Uma sociedade não muito diferente da atual…
Na busca desenfreada pela perfeição, pela excelência individualista, pelo ganhar, o egocentrismo domina e impede-nos de olharmos os outros com compaixão, com atenção, com amor. Tornamo-nos insensíveis, frios, distantes, incapazes de dançar com quem está alegre ou até acompanhar a tristeza de quem precisa de ser cuidado. O coração torna-se impermeável a tudo o que implique relação e ação que nos impele de ir ao encontro da irmandade a que se pertence. Tornamo-nos como máquinas que reproduzem horários, rotinas, compromissos, fugimos dos desafios, dos imprevistos, das relações. Profissionalizamo-nos em regras e desconhecemos a sensação de falar em silêncio com quem está perto de nós. Evitamos o abstrato, ignoramos a poesia salvadora, fechamo-nos à simplicidade. Esquecemo-nos de rir até nos doer a barriga porque isso não é sinal de adultez e não temos tempo para abraçar um amigo que precisa porque há um relatório urgente para entregar. E assim vamos vivendo, despojando-nos da essencialidade que o amor nos traz e enchendo-nos do que menos importa. E assim a vida dá-nos aquilo que nela investimos que ou é muito ou muito pouco.
Como é que eu vivo a minha humanidade com quem me rodeia? Como é que eu me vejo atento aos que se cruzam comigo? De que forma me faço próximo quando a vida me chama para perto de quem precisa? Onde me posiciono perante as circunstâncias do meu próximo? Tenho espaço na minha vida para praticar a alegria comunitária? Estou disponível para consolar quem de mim precisa? Estas são apenas algumas das questões que me inquietam e, ao mesmo tempo, me fazem crescer em caminho, sempre simultaneamente pessoal e comunitário.
Quando olhamos para os nossos dias e para o que nos acontece, admiramo-nos muito com acontecimentos de bondade, pois estes aparecem marcados pela raridade. A maldade está de tal forma banalizada que a bondade surge como a exceção que confirma a regra. Nas conversas que ouvimos por aí, escritas ou faladas, o assunto tende sempre mais para o negativo, para o mal, para o negro. Fala-se muito de empatia, mas somos capazes de a praticar? Com origem no termo em grego empatheia, que significava “paixão”, a empatia pressupõe uma comunicação afetiva com outra pessoa e é um dos fundamentos da identificação e compreensão psicológica dos outros indivíduos. A empatia é a capacidade de sentir o que sentiria outra pessoa, caso estivesse na mesma situação vivenciada por ela. É tentar compreender sentimentos e emoções, procurando experimentar o que é vivido pelo outro.
A vida é esta dança entre risos e lágrimas, encontros e separações. É um fluir entre avanços e recuos, entre coragem e medo. Por isso é tão importante um sentido de flexibilidade quotidiano que nos permita viver estas emoções de forma equilibrada. Sermos capazes de ouvir a flauta que é tocada para nós e entrar na dança. Escutarmos o choro de quem sofre e, sem hesitações, sermos colo e abrigo.
O que nos salva é simplesmente este saber viver, este saber estar atento ao que nos rodeia, ter a capacidade de sermos gratos e de procurarmos o que nos preenche e é a nossa verdade. E só acedemos a este estado de verdade e coerência quando nos deixamos guiar por um coração cheio, empático, presente, próximo. Um coração como o de Jesus. Um saber amar como o de tantos homens e mulheres que o seguiram. Aquilo que nós vemos no mundo é resultado daquilo que trazemos dentro de nós. Por isso, é tão importante cuidarmos no nosso interior, preservarmos a alegria de viver e atentar nos momentos de tristeza que nos acompanham. Viver é saber escutar aquela música que chama por nós. Que nos chama a ser mais pessoas, mais cristãos, mais completos nas nossas fragilidades vividas em confiança. Escutemos esta música. Dancemos juntos ao som dos instrumentos. Abracemo-nos em consolo de fortaleza. E assim a vida será uma só. Eterna!