A Ti, Esperança

Reflexão para o mês de junho de 2023

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Confia no Senhor, põe nele a tua esperança” (Salmo 37)

Para o padre Avelino, para a Rute e para a Sofia. Abraço-vos com este texto.

A semana passada foi dura, terrena, perturbadora. Um meu amado irmão de coração recebeu a dolorosa notícia da partida do Pai para a Eternidade. Uma estimada irmã na nossa comunidade soube que o Pai está a viver os seus últimos dias terrenos. Uma outra querida amiga está a viver uma situação difícil causada pela descoberta recente da doença da Mãe. Eu, que me julgava já doutorada em sofrimento e morte, senti-me abalada por estes acontecimentos. Há uma identificação e empatia imediatas. Encontro nas palavras destes meus amigos tantas das minhas próprias palavras. Vejo nos seus gestos de dor aqueles que foram os meus próprios gestos. Nas suas lágrimas o meu choro. Nas suas incompreensões as minhas questões. Nas suas dúvidas as minhas incertezas.

O sofrimento daqueles que amamos é, sem dúvida, a maior das nossas provações. A nossa resiliência, a nossa esperança, as nossas crenças são colocadas à prova. Vivemos a impotência, a incompreensão, a injustiça. Não é fácil passarmos a habitar em circunstâncias cruas e dolorosas e a ter de reconstruir projetos que até então julgávamos inabaláveis. Não se fica a mesma pessoa depois de experimentarmos a doença e a morte de quem amamos. Deixamos de saber como se contam os dias, os meses e os anos a partir de então, durante algum tempo passa-se a viver numa dimensão paralela, passamos a conviver com medicamentos e receitas, as tarefas práticas do dia-a-dia não se importam com a nossa vontade de quietude e passa-se a olhar para o mundo com um sentimento de desapego e de efemeridade. Mas é precisamente neste buraco negro de dor que Deus aparece para nos levantar. Parece contraditório, mas se nesses momentos de maior dor procurarmos este Deus que nos ama, acabamos por sentir uma força que é claramente inexplicável aos olhos humanos. No meio da morte, a vida é sempre mais. Sempre! Mais forte, mais soberana, mais dominante.  A vida continua a fluir e é possível viver esta força de Deus mesmo quando tudo à nossa volta parece ruir. Parece ser algo paradoxal, mas esses tempos duros que atravessamos vão permitir a reconstrução de quem seremos. O cuidado, a atenção, as preocupações reescrevem a nossa história de Amor.

Por isso, ter fé num Deus não nos liberta de preocupações, não nos poupa a situações difíceis, não nos aplana o caminho. Acreditar num Deus não nos resolve todas as questões, não nos livra das incertezas, não nos torna imunes ao sofrimento. Para quê então acreditar? Eu acredito porque seria inconcebível uma vida que fosse por si só limitada a um tempo e a um espaço. Eu acredito porque o Amor que sinto por aqueles que são meus é demasiado grande para não poder ser eterno e perdurar para além da morte. Eu acredito porque Deus continua a revelar-se de cada vez que eu o procuro nas palavras, na criação, na música, no encontro, na empatia, no espanto, na descoberta. Eu acredito porque, pela ressurreição de um Deus vivo, eu sei que Ele me espera numa Eternidade feliz. Eu acredito porque todo o sofrimento, dor e incompreensão que todos nós vivemos não têm a última palavra. Eu acredito porque só é possível viver assim.

O confronto com a finitude (nossa e dos outros) também nos impele a viver mais, a agradecer mais, a ser mais. A viver o presente que é o presente de cada dia. A bendizer o passado e a projetar o futuro. A não lamentar o que aconteceu e a não criar expetativas futuras ilusórias. Viver o presente do presente. Não podemos evitar a dor da morte e o sofrimento naturalmente inerente a estas tragédias. Mas podemos confiar. Acreditar. O Amor não morre. Vive em cada um de nós que o aceitamos. Vive quando escolhemos ser Luz!

Quem ama, sente. Chora. Entristece-se. Vive a dor dura e crua. Questiona-se. Mas quem ama, também acredita. Mesmo quando nada se vê. Quem se deixa levar pelo Amor, vê tudo. Porque o Amor vence tudo o que é limitado, confuso, incongruente. Porque o Amor é sempre mais forte do que todas as nossas incompreensões, interrogações, frustrações. Por isso, não nos deixemos ficar no desespero, na tristeza, na apatia. “O desânimo, o cansaço, a fatalidade, a desesperança, a desistência, isso não pode triunfar no teu coração” (Cardeal José Tolentino Mendonça in Homilia na Vigília Pascal). Ser cristão é confiar que, mesmo nas situações mais dramáticas da nossa existência, nós nunca estamos sozinhos. E confiar implica sempre querer ver o que não se vê para então se poder ver.

A dor não se ultrapassa porque não se trata de nenhum campeonato. A dor não se vence porque não se trata de nenhuma luta. Não há aqui um processo de vencedores nem vencido. A dor atravessa-se porque faz caminho connosco. A dor enfrenta-se porque a colocamos à nossa frente para poder transformá-la. Guardar rancores, lutos, sofrimentos durante muito tempo só tem como resultado um coração pesado, amargurado, duro. A dor acontece para ser reconstruída em algo maior, sereno, apaziguador. E embora seja um processo difícil, é um acontecimento possível e necessário para nos salvar. Só assim a dor nos salva, se lhe atribuirmos um significado que nos projete no futuro, que nos faça viver.

Como cristãos que somos temos de assumir o que somos, a nossa essência, a nossa identidade, o entendimento da vida enquanto passagem para uma vida maior. Como cristãos que somos, procuremos em nós essa esperança que nos faz seguir viagem por mais conturbadas que as circunstâncias possam ser. Como cristãos que somos, entreguemo-nos nas mãos e no coração de um Deus que só nos quer bem. Como cristãos que somos, sejamos ousados em testemunhar que só podemos viver a e na esperança! A esperança cristã não é um sentimento infantil, momentâneo, automático naquele sentido em que se diz, em qualquer circunstância e tantas vezes de forma leviana, “vai correr tudo bem”. A esperança não ignora o enigma e o absurdo da existência, mas antes integra em si a própria desesperança. A esperança cristã é a certeza de que, aconteça o que acontecer, há um Deus que nos acompanha e que, por isso, a vida que nos é dada viver é sempre maior! A esperança cristã entra, muitas vezes, em contradição com a realidade que nos rodeia porque a própria mensagem de Jesus Cristo é fonte de contradição para um mundo que se apresenta como terreno, limitado, egoísta, calculista e esquemático. A esperança cristã é um encorajamento dirigido a cada um de nós no meio das adversidades. É um desafio a transcendermos a nossa própria existência e a abrirmo-nos ao cuidado de Deus. Somos peregrinos de mãos vazias, mas de olhos erguidos para o Alto, vivendo esta esperança que nos libertará das nossas dúvidas, medos, ansiedades. A esperança cristã não se baseia em garantias, mas exige dos cristãos uma verdadeira radicalidade.

Ser cristão é exigente porque sou chamado a trabalhar-me, a ir por caminhos por onde a maioria não vai, a ver com outros olhos uma realidade tantas vezes árdua e incompreensível. Mas ser cristão também é termos consciência do privilégio que é vivermos uma dor acompanhada por um Deus que nos abraça. Não somos fruto do acaso. Não somos acidentes de percurso. Não somos percalços da natureza. Somos, desde toda a eternidade, seres únicos na sua individualidade e amados por Deus. Tudo o que somos, o que escolhemos, o que nos acontece, o que experimentamos, o que rejeitamos, o que aceitamos faz parte da nossa identidade, da nossa história. O modo como eu lido com o que me acontece é o que me constrói. Por isso, como cristão, quero escolher ver e viver com esperança. Como cristão quero encontrar Deus nos momentos bons e menos bons da minha existência. Deus precisa do nosso testemunho de cristãos nas nossas circunstâncias mais desafiadoras, mais rigorosas, mais exigentes. É nesses momentos que Ele está mais presente e é, muitas vezes, aí que o podemos anunciar ao mundo com mais verdade, com mais plenitude, com mais concretude. Nos meses seguintes à morte do Jorge, enquanto eu e a minha comunidade nos íamos reconstruindo numa existência nova, numa das minhas meditações, surgiu-me a seguinte frase, que, hoje, muito a uso como oração diária: “Senhor, não sei o que me espera, mas sei que Tu me esperas sempre naquilo que eu não esperava.” Entreguemos a Deus tudo o que somos. Viver a esperança cristã não é não ter medo ou não o sentir. É antes aceitar essas dores e colocá-las nas mãos de Deus. E esperar contra toda a esperança, como nos diz São Paulo numa das suas Cartas. O Filho de Deus fez-se Homem para nos acompanhar em tudo, até mesmo nas nossas sombras e medos. Na sua morte na cruz está toda a dor que cada um de nós experimenta. Não estamos sozinhos. Mesmo na mais profunda das tristezas, há sempre aquela Luz que não se apaga. Essa Luz tem um nome – Jesus. Essa Luz tem um rosto – os nossos próximos (família, amigos, comunidade). Essa Luz tem uma força intensa – a do Amor. Essa Luz tem uma duração plena – a da Eternidade. “Confia no Senhor, põe nele a tua esperança”.