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50 dias

50 dias pascais iniciados naquele momento da mais bela noite anunciada no Precónio Pascal, pela primeira vez cantado, na nossa paróquia, por uma mulher, num gesto de memória pelas mulheres, primeiras testemunhas da Ressurreição a anunciar que Ele estava vivo!

50 dias pascais que terminam hoje, dia de Pentecostes, dia este em que os nossos mais pequenos paroquianos receberam Jesus, pela primeira vez, nos seus corações.

Pelo meio, cantamos a Eucaristia do Domingo de Páscoa, anunciando com os nossos cânticos, as nossas vozes e os nossos instrumentos, a alegria que nunca tem fim, aquela que nos é dada como garantia de uma eternidade feliz.

Tivemos também a graça de, neste tempo pascal, termos tido connosco um grupo de seis jovens peregrinos vindos do Reino Unido que, numa paragem do seu caminho até Compostela, abrilhantaram uma das nossas eucaristias paroquiais com as suas vozes luminosas.

Continuamos com os nossos Encontros de Formação Cristã e aproximamo-nos desse grande dia em que este grupo fará o seu grande compromisso de uma fé adulta, vivida e comunitária.

No nosso encontro mensal “Falar para CRER”, feito, desta vez, num molde mais intimista, refletimos, com muito humor (sempre!) e amor, acerca do mistério da pedra do sepulcro, aquela pedra que mudou toda a nossa história…

Neste tempo pascal, fomos também testemunhas da entrada de dez crianças na nossa família cristã. Poder testemunhar este momento feliz é viver a gratidão através da nossa vida em comunidade.

As nossas Estradas Partilhadas continuam a ser percorridas. Neste período pascal, partimos das músicas para descobrir acontecimentos e perceber como é que os instrumentos que escutamos falam da vida toda em nós.

Não existe Páscoa sem Maria. E no seu mês, numa iniciativa inédita da nossa paróquia, meditamos o terço numa das capelas marianas da nossa cidade.

E quase a terminar este tempo de festa, vivemos o nosso Lausperene Comunitário. Adoramos um Deus que se fez e faz sempre próximo, que quer fazer parte das nossas vidas e que é sempre sinal de eternidade.

50 dias vividos em comunidade e para a comunidade onde vivemos e onde nos tornamos, em cada dia, pessoas de Ressurreição!

Dia do Pai 2024

António. António Manuel. Arnaldo. Augusto. Carlos. Domingos. Isidro. Joaquim. Luís. Porfírio.

Os nomes dos nossos pais. Nomes carregados de histórias, de vidas, de risos e de lágrimas, de férias e de trabalho, de certezas e de perguntas, de abraços e partidas, de tempo e de espaço. Somos o que somos porque estes são os nossos pais. No dia do nosso nascimento não fomos só nós que nascemos. Nesse dia, os nossos pais nasceram connosco, com cada filho. Por isso, a nossa base está nestes homens. Fizeram por nós o melhor que sabiam num tempo em que muito pouco sabiam. O resto será sempre da nossa responsabilidade, daquilo que escolhemos fazer com o que nos foi dado. A vida vai se encarregando de nos dar a possibilidade de amarmos cada vez mais os nossos pais, de os olharmos com carinho e compreensão, de lhes sermos gratos, de perspetivarmos memórias guardadas.

Por isso, hoje é dia de celebrar e de agradecer. Aqueles que nos amaram primeiro mesmo antes de nos conhecerem. Aqueles que nos sonharam e que nos deram o primeiro colo. Aqueles que hoje podemos abraçar ou lembrar. Aqueles que são imortais nos nossos corações. Aqueles que nos deram o seu coração. Os nossos pais.

A Igreja lembra hoje também a figura paternal de São José, muitas vezes relegado para um plano mais secundário. José foi educador, sonhador, acolhedor. Numa sociedade patriarcal, foi chamado a amar a escolha de Maria, prova de amor irrefutável para com a sua mulher amada e o seu filho. José foi um desafiador de normas para que o bem se instalasse entre nós. Mesmo não compreendendo tudo, ele tudo fez para que os planos de Deus se concretizassem. Que possamos nós também olhar para este Pai e desejar atravessar com serenidade os desafios que a vida nos propõe.

Feliz Dia do Pai a todos os que são filhos e pais, porque este dia só pode existir porque existe a maior de todas as relações – a do Amor!

Ana

Semana da Vida Consagrada 2024

De 26 de janeiro a 2 de fevereiro, a Igreja celebra a Semana da Vida Consagrada com o lema “Rezar a Esperança.” Esta semana culmina com a Solenidade da Apresentação do Senhor, no dia 2 de fevereiro. Este é também o dia dos Consagrados, data esta escolhida pelo Santo Padre João Paulo II.

Esta é uma semana de grande alegria e de gratidão para nós, Comunidade Estrada Clara, pois celebramos todos os consagrados que vivem a sua escolha na nossa paróquia e aqueles que com os seus carismas e percursos anunciam esta entrega a um Deus que nos faz ser sempre maiores que nós próprios. Nesta semana, agradecemos, de uma forma particular, as vidas do Jorge, da Ana e da Beatriz, que escolheram fazer das suas vidas vidas de vida para o(s) Outro(s).

Juntem-se a nós nestes dois momentos que nos são propostos na nossa paróquia, momentos de oração, de festa e de gratidão por podermos caminhar juntos com quem escolheu ser caminho no Caminho até à Terra Prometida.

A vida toda para toda a Vida

Dia da Vida Consagrada.

Quando se pensa em “vida consagrada”, associa-se esta expressão ao estado mais comum, a vida sacerdotal ou religiosa. No entanto, a vida consagrada tem uma dimensão muito mais ampla. Ser consagrado/a significa dedicar a vida a uma Vida Maior, a um projeto de construção com os Outros por causa desse Outro que é o nosso Deus. Consagrar é tornar sagrado, assumir como relevante, rotular como importante. E esta noção de consagração envolve qualquer escolha de vida e significa sempre uma disponibilidade de coração, de pensamento, de confiança.  Há vinte anos, eu, o Jorge e a Beatriz fomos escolhendo (e digo escolhendo porque este é sempre um caminho que se vai fazendo) esta vida consagrada, dedicada à nossa Comunidade, ao nosso projeto de vida que é a nossa vida toda. Nunca nos guiamos pela ideia limitada que há, segundo a qual a vida em Igreja é só para os tempos livres, para quando é possível, para quando não há mais nada para fazer, para quando se é novo ou velho. Connosco acontecia o contrário, ou seja, tudo o que não acontecesse na Igreja (catequese, grupos de jovens, eucaristias, encontros, passeios, retiros, jornadas) não nos despertava muito interesse. Foi e continua a ser esta a nossa escolha, a de construirmos um projeto de vida cristã que tem como princípios a oração, a espiritualidade, a música, a cultura, o silêncio, o pensamento, o acolhimento, a partilha de ideias e o compromisso diário com uma Vida Maior. Os elementos que connosco partilham esta Estrada – e que são pais e mães, adultos e jovens – são testemunho desta proposta de vida cristã. Costumamos dizer que somos muito felizes com as escolhas que fazemos porque são as nossas escolhas. Nestes últimos dezassete anos, nós os três partilhamos uma vida em comum no espaço onde vivemos, rezamos, conversamos, choramos, sonhamos, sofremos e acreditamos. Por tudo isso, acreditamos que esta nossa vida comunitária poderá ser um incentivo para outras pequenas comunidades de vida em comum que existam em Igreja. “A vida toda para toda a vida”, foi o que prometemos os três num dia bonito de verão diante de um projeto de Vida. E assim continuamos. Feliz dia dos Consagrados!

Ana

Na Igreja há lugar para todos

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO NA SOLENIDADE DOS APÓSTOLOS PEDRO E PAULO

Basílica de São Pedro, quarta-feira, 29 de junho de 2022

Revive, hoje, na Liturgia da Igreja o testemunho dos dois grandes Apóstolos Pedro e Paulo. O primeiro, que o rei Herodes metera na prisão, ouve o anjo do Senhor dizer-lhe: «Ergue-te depressa» (At 12, 7); o segundo, resumindo toda a sua vida e apostolado, diz: «combati a boa batalha» (2 Tm 4, 7). Tendo diante dos olhos estes dois aspetos – erguer-se depressa e combater a boa batalha –, perguntemo-nos que podem eles sugerir à Comunidade Cristã de hoje, empenhada no processo sinodal em curso.

Antes de mais nada, os Atos dos Apóstolos falam-nos da noite em que Pedro foi libertado das correntes da prisão; um anjo do Senhor tocou-lhe o lado enquanto dormia, despertou-o e disse: «Ergue-te depressa!» (12, 7). Desperta-o e pede-lhe para se erguer. Esta cena evoca a Páscoa, porque aqui encontramos dois verbos usados nas narrações da ressurreição: despertar e erguer-se. Significa que o anjo despertou Pedro do sono da morte e o impeliu a erguer-se, isto é, a ressurgir, a sair para a luz, a deixar-se conduzir pelo Senhor para superar o limiar de todas as portas fechadas (cf. At 12, 10). É uma imagem significativa para a Igreja. Também nós, como discípulos do Senhor e como Comunidade Cristã, somos chamados a erguer-nos depressa para entrar no dinamismo da ressurreição e deixar-nos conduzir pelo Senhor ao longo dos caminhos que Ele nos quiser indicar.

Sentimos ainda tantas resistências interiores que não nos deixam pôr em marcha. Tantas resistências! Às vezes, como Igreja, somos dominados pela preguiça e preferimos ficar sentados a contemplar as poucas coisas seguras que possuímos, em vez de nos erguermos a fim de lançar o olhar para horizontes novos, para o mar alto. Muitas vezes estamos acorrentados como Pedro no cárcere do ramerrão, assustados pelas mudanças e presos à corrente das nossas habitudes. Mas, assim, cai-se na mediocridade espiritual, corre-se o risco de «ir sobrevivendo» mesmo na vida pastoral, esmorece o entusiasmo da missão e, em vez de ser sinal de vitalidade e criatividade, a impressão que se dá é de tibieza e inércia. Então, como escrevia Padre Henri de Lubac, a grande corrente de novidade e de vida, que é o Evangelho nas nossas mãos, torna-se uma fé que «cai no formalismo e na habitude, (…) religião de cerimónias e devoções, de ornamentos e vulgares consolações (…). Cristianismo clerical, cristianismo formalista, cristianismo mortiço e endurecido» (O drama do humanismo ateu. O homem diante de Deus, Milão 2017, 103-104).

O Sínodo, que estamos a celebrar, chama-nos a ser uma Igreja que se ergue em pé, não dobrada sobre si mesma, capaz de olhar mais além, de sair das suas prisões para ir ao encontro do mundo, com a coragem de abrir portas. Naquela mesma noite, insidiava outra tentação (cf. At 12, 12-17): aquela jovem assustada, em vez de abrir a porta, volta para trás contando algo que, para os presentes, só podia ser obra da sua fantasia. Abramos as portas. É o Senhor que chama. Não sejamos como Rode que voltara para trás…

Uma Igreja sem correntes nem muros, onde cada qual se possa sentir acolhido e acompanhado, onde se cultive a arte da escuta, do diálogo, da participação, sob a única autoridade do Espírito Santo. Uma Igreja livre e humilde, que «se ergue depressa», que não adia, não acumula atrasos face aos desafios de hoje, não se demora nos recintos sagrados, mas deixa-se animar pela paixão do anúncio do Evangelho e pelo desejo de chegar a todos, e a todos acolher. Não esqueçamos esta palavra: todos. Todos! Ide pelas encruzilhadas e trazei todos, cegos, surdos, coxos, doentes, justos, pecadores: todos, todos! Esta palavra do Senhor deve ressoar… ressoar na mente e no coração: todos! Na Igreja, há lugar para todos. E muitas vezes tornamo-nos uma Igreja de portas abertas, mas para despedir as pessoas, para condenar as pessoas. Ontem dizia-me um de vós: «Para a Igreja, este não é o tempo dos despedimentos, mas o tempo do acolhimento». «Não vieram ao banquete…» – Ide pelas encruzilhadas. Todos, todos! «Mas são pecadores!» – Todos.

Depois, a segunda Leitura propôs-nos as palavras de Paulo que, repassando toda a sua vida, afirma: «combati a boa batalha» (2 Tm 4, 7). O Apóstolo refere-se às inúmeras situações, às vezes marcadas pela perseguição e a tribulação, em que não se poupou a anunciar o Evangelho de Jesus. Agora, no final da vida, vê que, na história, está ainda em curso uma grande «batalha», porque muitos não estão dispostos a acolher Jesus, preferindo correr atrás dos seus próprios interesses e doutros mestres mais condescendentes, mais facilitadores, mais conformes à nossa vontade. Paulo enfrentou o seu combate e, agora que terminou a corrida, pede a Timóteo e aos irmãos da comunidade para continuarem esta obra com a vigilância, o anúncio, o ensino; enfim, cada um cumpra a missão que lhe foi confiada e faça a própria parte.

É uma Palavra de vida, também para nós, despertando a consciência de que, na Igreja, cada um é chamado a ser discípulo-missionário e a prestar a sua contribuição. Aqui vêm-me ao pensamento duas perguntas. A primeira: Que posso fazer eu pela Igreja? Não lamentar-me da Igreja, mas empenhar-me em prol da Igreja. Participar com paixão e humildade: com paixão, porque não devemos ficar espectadores passivos; com humildade, porque envolver-se na comunidade nunca deve significar ocupar o centro do palco, nem sentir-se o melhor impedindo aos outros de se aproximarem. Igreja em processo sinodal significa isto: todos participam, mas ninguém no lugar dos outros ou acima dos outros. Não há cristãos de primeira e segunda classe; mas todos, todos são chamados.

Entretanto participar significa também continuar aquela «boa batalha» de que fala Paulo. Trata-se realmente duma «batalha», porque o anúncio do Evangelho não é neutral – por favor! Que o Senhor nos livre de destilar o Evangelho para o tornar neutral: o Evangelho não é água destilada –, não deixa as coisas como estão, não aceita a cedência às lógicas do mundo, mas acende o fogo do Reino de Deus lá onde, ao contrário, reinam os mecanismos humanos do poder, do mal, da violência, da corrupção, da injustiça, da marginalização. Desde que Jesus Cristo ressuscitou, agindo como linha divisória da história, «começou uma grande batalha entre a vida e a morte, entre esperança e desespero, entre resignação ao pior e luta pelo melhor, uma batalha que não conhecerá tréguas até à derrota definitiva de todas as forças do ódio e da destruição» (C. M. Martini, Homilia na Páscoa da Ressurreição, 04/IV/1999).

Vimos a primeira pergunta; agora a segunda: Que podemos fazer juntos, como Igreja, para tornar o mundo em que vivemos mais humano, mais justo, mais solidário, mais aberto a Deus e à fraternidade entre os homens? Certamente não devemos fechar-nos nos nossos círculos eclesiais nem perder-nos em certas discussões estéreis. Cuidado para não cairdes no clericalismo; o clericalismo é uma perversão. O ministro que se faz clerical adotando atitudes clericais, embocou um caminho errado; pior ainda são os leigos clericalizados. Estejamos atentos a esta perversão que é o clericalismo. Ajudemo-nos a ser fermento na massa do mundo. Juntos, podemos e devemos fazer gestos cuidadores a bem da vida humana, da tutela da criação, da dignidade do trabalho, dos problemas das famílias, da condição dos idosos e de quantos se veem abandonados, rejeitados e desprezados. Enfim, ser uma Igreja que promove a cultura do cuidado, da ternura, a compaixão pelos frágeis e a luta contra toda a forma de degradação, incluindo a das nossas cidades e dos lugares que frequentamos, para resplandecer na vida de cada um a alegria do Evangelho: esta é a nossa «batalha», este é o nosso desafio. As tentações para ficar no passado são muitas; a tentação da nostalgia que nos faz olhar para outros tempos como sendo melhores. Por favor, não caiamos no saudosismo, neste saudosismo de Igreja que está na moda hoje.

Irmãos e irmãs, hoje, segundo uma bela tradição, benzi os Pálios para os Arcebispos Metropolitas recém-nomeados, muitos dos quais participam na nossa celebração. Em comunhão com Pedro, são chamados a «erguer-se depressa», não dormir, para ser sentinelas vigilantes do rebanho. Levanta-te para «combater a boa batalha», nunca sozinhos, mas com todo o santo Povo fiel de Deus. E como bons pastores devem estar à frente do povo, no meio do povo e atrás do povo, mas sempre com o santo povo fiel de Deus, porque fazem parte do santo povo fiel de Deus. De coração, saúdo a Delegação do Patriarcado Ecuménico, enviada pelo querido irmão Bartolomeu. Obrigado! Obrigado pela vossa presença e pela mensagem de Bartolomeu! Obrigado! Obrigado por caminhar juntos, porque, só juntos, podemos ser semente de Evangelho e testemunhas de fraternidade.

Pedro e Paulo intercedam por nós, intercedam pela cidade de Roma, intercedam pela Igreja e pelo mundo inteiro. Amén.

Cada dia da nossa vida é um dia de Pentecostes

Homilia do Cardeal José Tolentino Mendonça na Solenidade do Dia de Pentecostes (15.maio.2016)

Nesta festa do Pentecostes nós percebemos melhor como cada um de nós, e todos nós em conjunto, somos uma consequência do Espírito Santo. Cada dia da nossa vida é um dia de Pentecostes.

O dia de Pentecostes não foi apenas aquele dia, concreto, em que o Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos reunidos no cenáculo. O Pentecostes passou a ser o tempo da Igreja, passou a ser o tempo do mundo, o tempo de cada crente. Porque, em cada dia, o Espírito Santo vem em nosso auxílio, o Espírito Santo desce sobre nós, o Espírito Santo está connosco, testemunha o amor de Deus no nosso coração. Diz ao nosso coração: “Podes acreditar em Deus, confia Nele, Deus é credível, podes amá-lo, podes confiar no Seu amor e na Sua Palavra.” O Espírito Santo vem até nós como defensor, não deixa que a voz da noite fale ao nosso coração, não deixa que a voz da sombra ou da violência ou do temor se sobreponham à voz, tantas vezes frágil, da própria esperança, da própria confiança.

O Espírito Santo vem até nós como laboratório da criatividade, da invenção de Deus no nosso coração. Porque o alfabeto com que Deus Se escreve é sempre novo, em cada pessoa, em cada crente, em cada tempo, em cada dia, em cada instante. O Espírito Santo é essa criatividade em ato que nos estimula a sermos diferentes, a sermos originais. E conspira para, na nossa diferença, na nossa singularidade irredutível nós nos conseguirmos entender, conseguirmos criar laços de fraternidade, conseguirmos ser um único pão partido e distribuído para a fome do mundo. Por isso, nós somos consequência do Espírito Santo, e precisamos rezar mais ao Espírito Santo na nossa vida, porque Deus é Pai. E nós sabemos como o Pai é essa arquitetura fundante daquilo que somos, o Pai está na origem da nossa própria vida. Este Pai foi-nos revelado pelo Filho e a experiência da filiação, a certeza de que somos filhos, a descoberta, como diz S. Paulo, de que: “Não somos escravos, mas somos filhos”, é uma descoberta que nos instaura como sujeitos crentes. De facto, nós não somos servos, somos filhos, não somos escravos somos herdeiros. Foi Jesus quem nos revelou isso e esta filiação vivida em cada um de nós.

E o que é a filiação? A filiação é a certeza de que a nossa vida está fundada num amor incondicional. A nossa vida é amada de uma forma ilimitada. Não é hipotético, não é se, se, se… A nossa relação com Deus não é se nos portamos bem, Deus gosta de nós. Ou, se nos comportarmos bem, vamos para o céu. Não, a nossa relação com Deus é a relação de um amor incondicional, a descoberta de que nada nem ninguém nos pode separar desse amor. E mesmo em relação aos pecados, na noite da Páscoa, nós cantamos: “Feliz pecado que te deu a conhecer tal Redentor.” Então, de facto, a experiência de filiação que Jesus nos vem revelar é a experiência de uma filiação infalível, indestrutível que nós descobrimos como código da esperança, tatuado no nosso coração e que já não se pode apagar mais.

Mas Jesus partiu. Ficou-nos a Sua palavra, a Sua presença eucarística. Como é que nós hoje descobrimos Deus vivo na história? Descobrimos através do Espírito Santo que é este Deus, é esta presença de Deus que o Pai e o Filho enviam a assistir aos crentes ao longo da história. E como é que o Espírito Santo se traduz na nossa vida? Traduz-se através da multiplicidade dos dons, desta confiança esparsa, espalhada, infundida, radicada em cada um de nós mas também através daquilo que nós descobrimos que é possível. Porque, se calhar, nós temos mais competências, mais capacidades, há mais potencialidades em nós do que nós pensamos. E, se calhar, ficamos a vida toda a achar que não somos capazes disto e daquilo, que os milagres não são para nós. E, se calhar, os milagres estão na ponta das nossas mãos, estão no interior das nossas palavras, estão nessa capacidade de revitalizar, de acordar a vida, de afirmar que a vida é maior do que a morte, de cuidar, de curar, de transformar a história. Isso é o Espírito em ação, o Espírito em atividade.

O Espírito Santo é dado a mulheres e homens que não têm uma vida isenta, não têm uma vida neutra. É muito duro e muito belo aquilo que nos é descrito por S. João, nesta cena que nós lemos para este dia de Pentecostes.

Os Apóstolos estão reunidos, com as portas fechadas, com medo dos judeus. Quer dizer, eles não estão numa atitude de confiança, leve de coração. Não, estão afundados no seu medo, na intranquilidade, no “ Ai, ai! O que é que vai ser agora?”, no “Não sabemos“, no “Não estamos a ver como é que vamos prosseguir o caminho.” Estava tudo fechado no medo. E Jesus vem, atravessa o medo deles, perfura o medo deles e diz: “ A paz esteja convosco.” E mostra-lhes as feridas, as próprias feridas e o lado. Quer dizer, nós não vamos receber o Espírito Santo para lá das nossas feridas. Se não tivermos feridas recebemos o Espírito Santo, não é isso.

É a mulheres e homens feridos, feridos pela vida, pelos lutos múltiplos, pelos sofrimentos, pela fragilidade, até pela própria imperfeição, pelo inacabamento que Jesus vem. É a mulheres e homens feridos que Jesus vem dizer: “A paz esteja contigo.” E é a estas vidas que se calhar não vêem bem como é que podem prosseguir: “E agora? Como é que vai ser? Não vemos claro como é que possa ser o passo seguinte, o dia seguinte, a estação seguinte da nossa vida.” É a esses, que somos nós, que Jesus vem e sopra, sopra. E esse sopro, faz uma citação do primeiro momento da criação em que Deus amassa o Homem da fadiga do barro, da fragilidade da terra, e sopra nas narinas e o Homem vive. E agora Jesus também na fadiga da nossa existência, na sua interminável fragilidade.

Jesus vem e não diz: “Acabou a fragilidade, acabaram as lágrimas, acabou o medo.” Não diz nada, mas sopra sobre nós. E este sopro que cada um de nós recebe é que nos dá a capacidade de entender, de compreender de uma outra forma. Se calhar a grande mudança, a grande transformação é também um exercício de compreensão, uma abertura do nosso olhar, uma capacidade de entender. É interessante que os Atos dos Apóstolos contam o Pentecostes como uma capacidade de tradução. O Espírito Santo é o grande tradutor dos acontecimentos, cada um fala numa língua diferente mas eu sou capaz de entender a diversidade das línguas com que a vida me fala e essa capacidade hermenêutica é um dom que o Espírito Santo nos dá, é o Espírito Santo em ato, em nós.

Queridos irmãs e irmãos, recebamos o Espírito Santo. Este Espírito que é múltiplo, múltiplo. Um cristão tem de ser singular. Cada um de nós tem de viver a fé na sua criatividade, a fé também é fantasia de acreditar. A fé também é um exercício de imaginação. Nós temos de ser diferentes. Temos de receber o Espírito Santo e fazer com Ele a nossa viagem, o nosso caminho.

O Espírito Santo é o contrário do cinzentismo, é o contrário da formatação, é o contrário do tudo igual, da diluição no mesmo que tantas vezes é uma tentação. Não, o Espírito Santo é esta unicidade, é esta diversidade, é esta polifonia. E, ao mesmo tempo, é percebermos que a diferença não é um obstáculo ao encontro. Mas é nas nossas diferenças, na nossa diversidade que podemos criar um corpo, que podemos criar uma orquestra. Que é uma imagem que S. Paulo também usa, no capítulo 14 da carta aos Coríntios: podemos ser uma flauta, um címbalo, uma harpa e todos juntos nos encontrarmos para tocarmos a seu tempo, com as linguagens aproprias de cada um, tocarmos a mesma peça. E assim, enchermos o mundo de esperança, mostrando que é possível.

A fé tem de dar que fazer

Homilia do Domingo XXXIV do Tempo Comum – Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo

Queridos irmãos, queridas irmãs

Neste último domingo do ano litúrgico, Jesus deixa-nos com uma imagem. Uma imagem é um presente fantástico, porque uma imagem vale mil vezes mais do que um argumento ou uma elucubração. Uma imagem agarra-se ao coração e desprende-se aos poucos, não vem toda de uma vez. A imagem habita-nos, deixamo-nos habitar por ela. A imagem torna-se uma espécie de modelo, de tipologia interna, de paradigma de ação. Percebemos que aquela imagem é uma espécie de caminho que se vai abrindo para nós. No final deste ano litúrgico ficamos com uma imagem, uma imagem exigente e maravilhosa. Uma imagem que tem a ver com isto: com o falhar a vida ou o viver a vida plenamente.

O que é o suplício eterno? É o desgosto quando compreendermos que falhamos a vida, que a vida foi em vão, que a nossa construção, as nossas opções, aquilo que nos entusiasmou, nos apaixonou, nos cegou, nos ofuscou, afinal não era isso a vida. Afinal não era esse o modo verdadeiro de nos encontrarmos. Afinal, roubámos a vida e perdemos a grande oportunidade que é a vida. Uma oportunidade precária, frágil, que nós temos de agarrar. É um dom que nos é dado, que temos de agarrar e agarrá-lo no sentido da plenitude. E o que é a vida eterna? É ter vivido de tal maneira que se percebe que essa vida não acaba, é perceber que essa vida nos levou a uma plenitude, que essa vida se tornou fecunda, multiplicada, que essa vida não acabou quando nós acabamos, que essa vida continua, que essa vida é expressão da vida do próprio Deus. Por isso não é apenas uma existência, é uma vida eterna.

A imagem que hoje Jesus nos oferece, no Evangelho, é para dialogar com isto: o que é que estamos a fazer da vida? O que é que é importante para nós? De que maneira encontramos Jesus? Esta imagem é uma imagem de sobressalto porque quer os da direita, quer os da esquerda, chamam a Jesus por “Senhor”. Quer dizer: não é a fé que os distingue. A fé não basta. A fé não os distingue porque, para ambos, Jesus é o Senhor e ambos vivem na expectativa de Deus, ambos vivem a sua vida como lugar de espera de Deus. Mas há uma diferença: é que os da direita não ficaram apenas numa fé processada, numa fé que é confissão de uma verdade, de uma crença, de uma convicção, não ficaram apenas numa fé que é uma tradição recebida, que é um património inestimável. Mas, para usar a palavra de São João Paulo II, souberam mergulhar na fantasia da caridade. Souberam operar a misericórdia, traduzir a fé em misericórdia. De uma forma muito simples, a beleza desta imagem que Jesus nos confia, e a sua força, está também na sua simplicidade.

Nós não temos de quebrar a cabeça para encontrar Jesus. Não. É encontrá-lo pele com pele, é encontrá-lo corpo com corpo. Quando? Onde? Quando damos de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede, quando recolhemos os que não têm casa, os que são peregrinos, quando vestimos os que não têm roupa, quando visitamos os que estão doentes e quando temos compaixão dos prisioneiros ou quando depois sepultamos os mortos. Quer dizer, não é nada de extravagante ou de espetacular. É a expressão de uma humanidade. Estas regras que Jesus nos dá nem sequer são regras religiosas, são um código humano de conduta, o código humano de ser. Um ateu pode-se rever nestas obras de misericórdia. O que é que distingue então um crente, um cristão? É a surpresa de reconhecer que na pessoa do mais pequenino está o próprio Jesus.

Queridos irmãos, o final de um ano é o momento da síntese para perceber o que é que vale a pena e o que é que não vale a pena. Normalmente, fazemos esses balanços a 31 de dezembro. Mas, liturgicamente, fazemo-los nesta Festa de Cristo Rei. O critério para o balanço é este: é o critério do amor vivido, o critério do amor praticado, o critério deste contacto humano, desta relação humana que somos chamados a fazer com os mais pequeninos.

Isto quer dizer o quê? Que não é apenas com os nossos. Temos o dever de amar a família, os amigos, mas Jesus alarga e este indefinido Jesus não diz quem é. Não dizendo quem é está a dizer que são todos. Temos de ser capazes de chegar a Jesus através do agir e não ficarmos apenas a chamar Jesus “Senhor, Senhor”. Dominicalmente reunimo-nos aqui para dizer que Jesus é o Senhor das nossas vidas. E depois? E depois? Onde é que isso nos leva? O que é que fazemos com isso? O que é que isso nos torna?

Esta imagem que Jesus nos dá é uma imagem para nos dar que fazer. Porque a fé tem de dar que fazer. A fé tem de nos levar a esta saída de nós próprios para irmos ao encontro dos outros, nesse encontro de caridade e de amor, nesse encontro com o pobre, com o doente, com o preso, com a vítima, com o sem-abrigo, com aquele que passa necessidades de vária ordem. Estas obras de misericórdia têm uma leitura literal e é preciso não fugir para o símbolo, que é uma zona de conforto. Não, isto é literal. Mas ao mesmo tempo tem tantas dimensões humanas. O que é vestir o nu? É tanta coisa. Antes de tudo, é vestir, mesmo. Mas, depois, é tanta coisa. É dar-lhe o que ele precisa para ser, é colaborar nisso. E, reparem, Jesus não diz para sermos heróis, diz-nos para fazer. Não nos diz: “Tens de fazer 200.” Não. Faz. Faz.

Não há dúvida que, queridos irmãs e irmãos, o amor é uma grande escola, o amor é uma grande escola de vida. É no encontro que temos com os outros que celebramos a esperança da vida, que celebramos a ressurreição, que celebramos a certeza de que Ele está vivo no meio de nós.

Leonor Xavier apresentou aqui, na Capela do Rato, o último livro que escreveu: O passageiro clandestino. É um livro sobre a sua experiência do cancro, de ser portadora da doença do cancro. No fundo, todos nós, numa hora de fragilidade e de doença, sentimos a grande ameaça, o peso dessa ameaça. Mas o que é extraordinário no testemunho da Leonor é que ela aproveita essa condição para celebrar o encontro. Então leva-nos para dentro dos hospitais, das salas de espera, ao encontro com esses anónimos e a perceber como a coisa mais bela é esse encontro com pessoas com outra cultura, com outras idades, que vêm com outras questões, mas que no fundo são “o mais pequenino” naquela circunstância, e ser capaz de estabelecer uma relação de vida. No livro, percebemos que é isso que a salva. Porque depois é um mistério, acreditamos que a medicina faça o seu caminho, acreditamos na força de recuperação da própria vida; mas, como ela diz: “A doença é também uma iniciação” e uma iniciação à vida, a arte do encontro.

Penso que uma vez mais o que nos é pedido é isso. Não é aterrarmos nas nossas certezas, não é engordarmos com os nossos saberes, com os nossos conhecimentos. Isso tudo é muito importante. Mas, depois, podemos ter isso tudo e nunca o ter visto. Jesus tem isto: só se deixa ver na partilha do pão, quando quebramos o pão, para dar o pão aos outros. Isto é: só na vida que se quebra, só na vida que se parte e reparte é que Jesus se dá a ver; o resto nós não o vemos, podemos até sentir o entusiasmo, a paixão do conhecimento, isso também é uma via, mas é uma via insuficiente. A única via completa é a via do amor, é a via da relação, é a via da dádiva, é a via do encontro.

Queridos irmãs e irmãos, celebrar a realeza de Jesus é celebrar a realidade de Jesus. Jesus é real. Não é apenas uma ideia, não é uma herança do passado, não é um fantasma. Jesus é real, é real. E a realidade de Cristo é impressa no mundo através de nós. Jesus não quis fazer um monumento a si próprio, Jesus não quis fundar uma escola, uma tribo, quis juntar homens e mulheres que tivessem esta capacidade de ouvir quem tem fome, quem é peregrino, quem está despido, quem está doente, quem está na prisão. Esta é a via silenciosa do amor, da partilha, da entrega, que nos revela Jesus e nos dá o sentido profundo da bem-aventurança: “Vinde benditos de meu Pai, recebei em herança o reino que vos está prometido desde o princípio do mundo.”

Queridos irmãos, estas palavras são para nós. Não as percamos, não as percamos de vista numa vida embrulhada em nós e nas nossas coisas e coisinhas, que nos afasta da promessa de viver uma vida inteira, uma vida que valha a pena. A maior parte do tempo, aquilo que nos falta é precisamente isto, é dar, é vestir, é ir visitar, é ir ver, é falar, é isso que verdadeiramente nos falta.

Vamos celebrar esta Festa de Cristo Rei sentindo que Ele é o pastor das nossas vidas. Com esta imagem do julgamento final, Ele dá-nos um caminho, acende uma luz no nosso coração. Se hoje, ao escutarmos esta Palavra, uma luz se acendeu, no sentido de nos impelir à caridade, nos empurrar para o amor, para o encontro, para a dinâmica dos gestos, se isto nos empurrar, então quer dizer que esta imagem acordou, despertou em nós o rosto do próprio Jesus.