António Damásio, O Livro da Consciência
Se a necessidade de gerir a vida foi uma das razões para o aparecimento da música, da dança, da pintura e da escultura, a capacidade de melhorar a comunicação e a capacidade de organizar a vida social foram outros dois motivos fortes e conferiram às artes u m poder adicional de permanência. Feche o leitor os olhos por um instante e imagine os seres humanos de tempos remotos, talvez antes mesmo do aparecimento da linguagem, mas atentos e conscientes, já dotados de emoções e sentimentos, já com a noção do que é estar triste ou alegre, de estar em perigo ou de ter segurança e conforto, de desfrutar ganhos ou sofrer perdas; de sentir prazer ou dor. Agora imagine como teriam expressado esses estados dos quais já tinham noção. Talvez eles emitissem sons vocais significativos de perigo ou de saudação, de reunião, de alegria, de luto. Talvez emitissem sons melódicos ou até cantassem, dado que o sistema vocal humano constitui um instrumento musical. Ou, já agora, imagine-os a bater no peito, já que a cavidade torácica é um tambor natural. Imagine a percussão de um tambor como um dispositivo de concentração mental ou de organização social – uma batida para que se faça ordem; uma batida para pegar em armas – ou imagine soprar uma flauta primitiva feita de um osso como forma de encantamento mágico, de sedução, de consolo, de brincadeira. Ainda não é Mozart, e não é Tristão e Isolda, mas tinha-se encontrado uma nova forma de expressão. Sonhe um pouco mais.
Quando do nascimento de artes como a música, a dança e a pintura, terá havido provavelmente a intenção de comunicar aos outros informação sobre ameaças e oportunidades, sobre tristeza ou alegria, e sobre o modelar do comportamento social. No entanto, em paralelo com a comunicação, a arte teria também produzido uma compensação homeostática. Se assim não fosse, como teria prevalecido? E tudo isto antes mesmo da maravilhosa descoberta de que quando os seres humanos foram finalmente capazes de produzir palavras e de as unir em frases, nem todos os sons eram iguais. Os sons tinham acentos naturais e esses acentos podiam estabelecer relações temporais. Os acentos podiam criar ritmos, e certos ritmos davam origem a prazer. A poesia poderia assim começar e a técnica poética pôde eventualmente regressar às origens a acabar por contribuir para a prática da música e da dança. A arte apenas poderia surgir depois de os cérebros terem adquirido determinadas características mentais que muito provavelmente se estabeleceram no decurso de um longo período evolutivo, mais uma vez o Pleistoceno. Há muitos exemplos dessas características. Nelas se incluem a reação emotiva de prazer a certas formas e a certos pigmentos, presentes nos objetos naturais, mas também aplicáveis a objetos produzidos pelos seres humanos, bem como à decoração corporal; a reação de prazer a determinadas características dos sons e a certos tipos de organização sonora em relação ao timbre, ao tom e suas relações, bem como aos ritmos. O mesmo sucede quanto à reação emotiva a certos tipos de organização espacial e a paisagens que incluem panoramas vastos e a proximidade de água e de vegetação.
A arte pode ter tido o seu início como dispositivo homeostático para o artista e o destinatário, e como meio de comunicação. Mas posteriormente os usos tornaram-se muito variados, tanto do lado do artista como do lado da audiência. A arte tornou-se um meio privilegiado para a troca de informações factuais e emocionais que pareciam importantes para os indivíduos e para a sociedade, como o demonstram os primeiros poemas épicos, peças teatrais e esculturas. A arte também se tornou um meio de induzir emoções e sentimentos reconfortantes, algo em que a música se tem revelado inultrapassável ao longo dos tempos. Não menos importante, a arte tornou-se uma forma de explorar a nossa mente e a mente dos outros, uma forma de ensaiar aspetos específicos da vida, e um modo de exercitar juízos morais e ações morais. Em última análise, como a arte está profundamente enraizada na biologia e no corpo humano, mas pode elevar os seres humanos às mais altas cumeadas do pensamento e do sentimento, as artes tornaram-se numa via para o refinamento homeostático que os seres humanos acabaram por idealizar e ansiaram por alcançar, o equivalente biológico de uma dimensão espiritual nas questões humanas. Em resumo, a arte prevaleceu na evolução porque teve valor para a sobrevivência e porque contribuiu para o desenvolvimento do conceito de bem-estar. Ajudou a consolidar os grupos sociais e a promover a organização social; apoiou a comunicação; compensou os desequilíbrios emocionais causados pelo medo, pela raiva, pelo desejo e pela mágoa; e provavelmente abriu as portas ao longo processo de estabelecimento de memórias externas da vida cultural, tal como o indicam Chauvet e Lascaux. Já foi sugerido que a arte sobreviveu porque tornou os artistas mais atraentes e bem-sucedidos na atração de parceiros; basta-nos pensar em Picasso para sorrir e concordar. No entanto, a arte provavelmente teria prevalecido apenas com base no seu valor terapêutico.
É fácil de dizer que a arte é uma compensação inadequada para o sofrimento humano, para a felicidade não alcançada e para a inocência perdida. Mas é, apesar de tudo, uma compensação parcial para toda a espécie de calamidades com que nos defrontamos. É uma das mais espantosas oferendas da consciência aos seres humanos.
E qual será a derradeira oferenda da consciência à Humanidade? Talvez a capacidade de orientar o futuro nos mares da nossa imaginação, de levar a nau do eu a um porto seguro e produtivo. Esta suprema dádiva depende, mais uma vez, da intersecção do eu e da memória. A memória, temperada com o sentimento pessoal, é o que permite aos seres humanos imaginar tanto o bem-estar individual como o bem-estar de toda uma sociedade, e inventar formas e meios de alcançar e ampliar esse bem-estar. A memória é responsável pela colocação incessante do eu num aqui e agora evanescente, entre um passado plenamente vivido e um futuro antecipado, em movimento perpétuo entre o ontem que passou e o amanhã que é apenas uma possibilidade. O futuro puxa-nos para a frente, a partir de um ponto longínquo e quase invisível e, garante-nos a vontade de prosseguir a viagem, no presente. Talvez fosse isto que T. S. Eliot quis dizer quando escreveu:
“Tempo passado e tempo futuro
O que pode ter sido e o que foi
Apontam para um fim, que é sempre presente.”
António DAMÁSIO, 2010
O Livro da Consciência,
Temas e Debates – Circulo de leitores