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Clarice Lispector

No dia 10 de dezembro de 2020, celebrou-se o centenário de Clarice Lispector, essa misteriosa e incomparável escritora que hoje é lida e estudada no mundo inteiro.  Ucraniana e judia, aportou no nordeste do Brasil e aqui ficou.  Graças a Deus e felizes de nós que hoje contamos com sua obra como uma das maiores riquezas nacionais. Mulher bela e refinada, Clarice começou a escrever por pura inspiração, sem querer nem planejar, e hoje é referência para toda e qualquer escrita que se queira humana.

Muito foi escrito sobre essa grande escritora e artista da palavra.  A linguística e a literatura estudaram-na em todas as línguas e todos os ângulos.  A filosofia debruçou-se sobre a sua obra.  Ultimamente a teologia também se tem ocupado da obra de Clarice.  Porquê?  Porque Clarice é apaixonada pelo mistério de Deus.  E porque revela nas suas obras uma intimidade com esse Mistério Santo, que deixa perplexos o teólogo e o crente, que por sua mão são levados a caminhos ainda não trilhados.

Como disseram recentemente as suas amigas mais íntimas em declarações e entrevistas a propósito do seu centenário, Clarice é uma mística.  Talvez ela mesma não aceitasse ou concordasse com essa qualificação.  Porém, é inevitável fazê-la ao ler sua escrita e constatar que ela é, sim, alguém que conhece a Deus por experiência.  “Cognitio Dei experimentalis” (conhecimento de Deus por experiência) é a definição que dá sobre a mística Tomás de Aquino.  Secundado por seu discípulo Jacques Maritain, que define a mística como “experiência fruitiva do Absoluto”.

É impossível escrever o que Clarice escreveu sem “saber”, numa sublime “docta ignorantia”, até onde a levaria esse Mistério sem fundo, no qual se lançava com as suas palavras numa atitude vertiginosa que provoca vertigem em todo aquele que a lê. Não seria possível ler a Paixão segundo G. H. sem ali ver o itinerário de despojamento que desemboca na comunhão, digno de uma Teresa de Ávila e um João da Cruz.

O itinerário da personagem GH é místico, porque mística é a autora que a cria, essa mulher burguesa e alienada, que começa um processo de descida ao quarto da empregada, onde, na verdade, encontra um minarete que a leva a olhar para o infinito. Ali se inicia um processo ascético e purificador, que prepara o alargamento do eu que se segue à morte do mesmo eu pelo mergulho na alteridade da matéria, do mundo, do outro.  A personagem de Clarice toca os extremos da condição humana, ou seja, a vida e a morte.

Nesse processo que se assemelha a um parto, onde a mulher é literalmente expelida do seu pequeno e reduzido mundo para o mundo tal como ele é, existe permanentemente a “mão que me sustenta”. Ali GH, aliás Clarice, não depende mais de si mesma, mas de outro, daquela mão que a sustenta e toca a sua, daquela mão na qual confia e com a qual dialoga e à qual suplica: “Ah, não retires de mim a tua mão”. No entanto, a um certo ponto, a mulher larga a mão que a sustenta para continuar sozinha o percurso em direção ao Deus que a chama e que dela deseja algo que ela sente não poder dar.

Assim diz a personagem: “Eu estava em pleno seio de uma indiferença que é quieta e alerta…De um Deus que, se eu amava, não compreendia o que Ele queria de mim.”  Mas no meio da provação, da busca e do pranto, sente que Deus vem a ela. “E no soluço veio a mim o Deus que me ocupava toda agora.” Nesta descida purificadora, nesta entrada no coração do nada, a personagem não estava diante do mal, mas de Deus.

O diálogo entre Deus e aquela que o busca, aquela que é iniciada no conhecimento é feito de perguntas sobre o Ser: “O que És?”  E a resposta é: És. O que existes? E a resposta é: “o que existes.”

No olhar da teóloga que sou é impossível não ver aí a judeidade de Clarice emergindo com força, é inimaginável não sentir uma proximidade perigosa e estonteante entre o que diz a personagem e o diálogo primordial de Moisés diante da sarça ardente, no capítulo 3 do livro do Êxodo.

Com os avanços da exegese, as traduções e interpretações dessa afirmação d´Aquele que falava de dentro da sarça e que se identificara como o “Deus de teus pais, o Deus de Abraão, Isaac e Jacó” variam. “Eu sou aquele que sou”; “Eu sou aquele que serei” etc.

Clarice encontrou, através da palavra escrita, o rosto desse Totalmente Outro que buscou ao longo da vida. E que a ela se revelou no seu mistério jamais totalmente desvelado. Com Clarice Lispector, no seu centenário, somos convidados a aprender a fugir de qualquer tentação banalizante do divino e a inclinar-nos respeitosa e silenciosamente diante do seu Mistério Santo.

Maria Clara Bingemer é teóloga e professora associada de dedicação exclusiva do departamento de teologia e decana do centro de teologia e ciências humanas da PUC – Rio de Janeiro.

Ser cristão!

Maria Clara Bingemer, Viver como crentes no mundo de mudança, Paulinas Editora

A fé cristã, hoje, já não acontece em contexto  homogeneamente cristão. Assim, supõe um novo sujeito dotado de uma nova consciência religiosa, que é importante assimilar e integrar ao conjunto do tecido eclesial. Já não seria mais nem a tradição, nem a herança, nem a continuidade de uma cultura banhada de cristianismo que determinaria o que é ser cristão. Trata-se mais de uma opção livre e que deve configurar-se na contramão de uma cultura que nem sempre entenderá os seus gestos e símbolos. No fundo, tratar-se-ia de dar de novo ao amor a primordialidade da cidadania dentro da comunidade que pretende e se dispõe a viver o facto cristão.

A fé cristã foi, desde os seus começos, uma fé no testemunho de outros. Os discípulos acreditaram em Jesus, no qual reconheceram e ao qual proclamaram Testemunha Fiel. As mulheres acreditaram que o túmulo não era o lugar daquele que estava vivo. Os Apóstolos, depois de certa relutância, acreditaram nas mulheres. E assim começou o caminho dessa proposta de vida que foi conquistando o mundo conhecido de então, assente apenas na palavra de alguns frágeis seres humanos que diziam: “Isto é verdade porque eu vi, eu experimentei. Dou testemunho e sou capaz de morrer por isso.”

A fé cristã, desde o início, é, portanto, uma fé de testemunhas, e não tanto de textos. Torna-se cada vez mais verdadeira e verificável a afirmação de que há que fazer uma teologia não de textos, mas de testemunhas. Fazendo apelo aos testemunhos de homens e mulheres que foram alcançados por Deus ao longo da história, torna-se mais evidente a diferença entre fé e religião, fé e instituição. Mais claro ainda, o que constitui a identidade mais profunda dos homens e mulheres de fé que somos chamados a ser e a ajudar outros a serem nesta difusa contemporaneidade em que vivemos. São esses e essas que nos mostram que a fé cristã ainda tem um papel a desempenhar hoje, desde que não perca a sua identidade no meio dos tempos nebulosos que vivemos.

Ser cristão hoje implica ter uma esperança estranha que se revela justamente quando parece que não há futuro e uma liberdade que culmina na doação da vida. O cristão ama tanto a vida – porque se encontrou em profundidade com Aquele que diz que é o caminho, a verdade e a vida – que está disposto a morrer por aquilo em que acredita. E é esta confiança corajosa e alegre que dá sentido ao seu testemunho.

O incrível do Cristianismo encontra-se na proximidade inédita entre Deus e o homem. Portanto, leva a humanidade a uma nova relação consigo mesma, que tem como imagem a comunidade ecuménica de Jesus Cristo.

Ser cristão hoje é viver e proclamar os valores constitutivos da proposta de Jesus, que são:

  • numa sociedade e cultura onde se espera que se odeiem os inimigos, o Cristianismo propõe o amor incondicional, mesmo aos inimigos. Ser cristão é experimentar que se é amado incondicionalmente, independentemente de méritos ou vitórias;
  • numa sociedade onde se responde ao mal com o mal e se busca a vingança, o Cristianismo propõe o perdão, a persistência no mesmo dom, quando não há razões para tal;
  • numa sociedade desigual e injusta, opressora, o Cristianismo propõe uma igualdade radical entre todos. Todos têm a mesma dignidade e merecem o mesmo respeito;
  • numa sociedade que glorifica o poder, o sucesso, o êxito, o Cristianismo propõe a humildade e o serviço como atitudes primordiais e necessárias;
  • numa sociedade onde as leis são simétricas e, portanto, muitas vezes desumanas, o Cristianismo propõe uma justiça que se transcende a si mesma e se torna caridade. Uma justiça não retributiva, mas restaurativa, que não dá ao outro o que merece, mas o que necessita;
  • numa sociedade onde todos buscam o melhor para si, ainda que devendo passar sobre os demais, o Cristianismo propõe a generosidade da partilha e da solidariedade sem limites, que está disposta mesmo a sofrer e a morrer pelos outros.

Tudo isto supõe uma fé em Deus que é mistério, que não é um Ser Supremo ou Substância Suprema, mas sim Espírito de criatividade neste universo. Um Deus em quem, por isso, a fé nunca é permanente e definitiva, mas continuamente procurada. Ser cristão é ser um buscador. Um cristão é um sujeito. Enquanto tal, está em constante crescimento e transformação, em processo permanente de chegar a ser. Portanto, como diz Felix Wilfred, “o “cristão” é um projeto e, obviamente, um projeto inacabado”. Ou ainda Karl Rahner: “Creio que ser cristão é a tarefa mais singela, mais simples e, ao mesmo tempo, aquele pesado jugo leve de que fala o Evangelho. Quando se carrega esse jugo, ele carrega-nos a nós mesmos e, quanto mais tempo vivamos, tanto mais pesado e mais leve chegará a ser. No final, só fica o mistério. Mas é o mistério de Jesus”.

Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio