Quarenta dias. De oportunidades, de recomeços, de mudanças. De decisões a serem tomadas a cada dia que nos é dado com a certeza única de que fazemos e somos sempre caminho.
Quarenta dias. Para me deixar cair no colo de Deus e para me permitir que o seu Amor me erga bem alto, bem naquele lugar onde os sonhos se cruzam com a realidade, onde a vida é sempre maior, onde o coração voa até ao infinito.
Quarenta dias. Para acolher medos e inseguranças e para transformá-los em força e ação, instrumentos de peregrinação para a Terra nossa Prometida.
Quarenta dias. Para perceber que o sofrimento e a dor caminham de mãos dadas com um Deus que só me quer bem e nunca me deixa sozinha.
Quarenta dias. Para preparar, com serenidade e alegria, aquela manhã gloriosa em que a Vida vence todas as minhas mortes e as feridas são saradas com compaixão e amor.
Quarenta dias. De silêncios e de ruídos que falam e silenciam tudo que se vê e só se compreende com um coração que escolheu amar à medida de Deus.
Quarenta dias. De luzes e de sombras, nessa mistura que a vida faz todos os dias e que me pede que seja um peregrino que observa, que contempla, que avança mas também recua.
Quarentas dias. De espera e de expectativa. De acolhimento a este Jesus que me transforma, me inquieta, me mostra que na loucura de uma entrega na cruz está toda a minha salvação.
Quarenta dias. De solidão e de deserto, esse espaço onde me recolho para escutar quem sou e onde preparo a minha escolha de viver mais o dom de cada dia.
Quarenta dias. Não para viver em penitência, mas para acolher o que também me faz sofrer. Não para viver o desespero, mas para seguir a via da esperança que também existe numa cruz. Não para me culpabilizar, mas para descobrir um novo entendimento do que significa falhar.
Quarentas dias que nos levam ao Dia Maior dos nossos dias, ao Dia da Vida prometida, luminosa e erguida. Quarenta dias que nada valem se não forem vividos com a certeza que há aquele Dia de Páscoa Eterna que espera por mim, por ti, por cada um de nós.
Percorram connosco a nossa Estrada Quaresmal deste ano, um tempo de oportunidade, de recomeços e de vida interior. A oração não mede a minha relação com Deus, mas é a minha relação com Deus. Que este tempo quaresmal seja propício para fazermos a descoberta desta relação única que cada um de nós tem com Deus através da meditação, da música e do silêncio.
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“Entra no teu quarto. Entra dentro de ti, no teu coração. Entra no teu quarto.
Toma consciência da tua vida, da qualidade da tua vida. Da qualidade espiritual, da qualidade de amor, da qualidade de generosidade, da qualidade ou não de misericórdia que tu vives.
Entra no teu quarto. Escuta o teu coração e entra. Entra com esperança para olhares o Pai, para descobrires o Pai que te ama e que te estende a mão.
Entra no teu quarto e descobre, redescobre que Deus é teu Pai e que Deus é uma presença de amor. Ele assiste ao nosso parto, Ele assiste à reinvenção de nós mesmos, Ele assiste à transformação da nossa vida.
Celebrar o tempo da Quaresma é esperar a primavera que não está longe. Há a primavera que as árvores vão mostrando, mas há sobretudo uma primavera interior, um rejuvenescimento da alma, uma juventude de coração que cada um de nós pode ganhar.”
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
Dentro de mim, há espaço para luzes e sombras, para o bem e para o mal. Quando o mundo exterior se acalma, presto atenção aos meus ruídos interiores, frutos de emoções desaproveitadas, de desenganos, de incómodos.
Nesta Quaresma, vou acolher estes meus ruídos. Vou olhá-los e aprender a lavrá-los para que se tornem fertilizante para uma terra fecunda, a dar Vida.
Os meus ruídos são silêncios. De indiferença e de omissão. De egoísmo e de preconceito. De exigências desumanas e de desamor.
Os meus ruídos evocam-me memórias. Do que não sonhei. Do que não cuidei. Do que não defendi. Do que disse. Do que senti. Do que não ofereci.
Os meus ruídos provocam-me. Com perguntas para as quais não tenho resposta, com dúvidas para as quais não encontro certezas.
Os meus ruídos existem. E lembram-me que a vida só pode ser caminho, construção, colocar e retirar, andar e recuar.
Os meus ruídos falam-me. E dizem-me que não tenho em mim todas as respostas, que não domino todos os acontecimentos.
Os meus ruídos ensinam-me. Que o caminho que vou percorrendo resulta das escolhas que vou fazendo com aquilo que me é dado saber, abrindo espaço para acontecer.
Os meus ruídos mostram-me. Que posso cair, mas que o Amor de Deus ergue-me sempre de novo. Que posso ter medo, mas que não o atravesso sozinha. Que posso sofrer, mas estou sempre bem acompanhada.
Por isso, os meus ruídos também me salvam. Porque me fazem acreditar que há um Deus que só sabe ser Amor, um Deus que sabe dançar comigo, um Pastor que me conduz àqueles belos prados verdejantes.
Os meus ruídos também me permitem aceitar em mim a fragilidade da vida, a imprevisibilidade dos acontecimentos. E assim caminho entre pedras e planícies, entre voos e mergulhos, entre abraços e separações.
Os meus ruídos trabalhados em mim são boia de salvação. Fazem-me acreditar que, no meio da tempestade, há um Deus que fica sempre comigo.
Os meus ruídos pedem-me que confie no que ainda não vejo. Naquele amanhã novo da decisão de viver mais. Na loucura de uma cruz que é sempre salvação para o mundo. No desconhecido que anuncia aquela manhã gloriosa de Primavera em flor.
Os meus ruídos são a ponte que me leva à outra margem. A um lugar onde o silêncio é apaziguador, onde a Vida é sempre vida em tom maior, onde Ele me espera de braços abertos.
Os meus ruídos levam-me a um Deus que me conhece antes de eu mesma me conhecer, um Deus sempre novo que quer fazer da minha vida, em cada dia, uma Páscoa sem fim.
Quaresma. Escutar o que me fala em mim. Quarenta dias de procura, de trabalho, de conhecimento interior. Não para penitenciar. Não para desesperar. Quarenta dias de oportunidade. Para escutar estes ruídos. Para os transformar. Para fazer da minha vida um dia de Páscoa eterna.
Texto de Frederico Lourenço, publicado a 15 de abril de 2022 no seu Facebook
Sexta-feira Santa 2022
Já passei fases mais crentes e fases menos crentes: mas, mesmo no período da minha vida em que em afastei mais do cristianismo, a Sexta-feira Santa nunca foi um dia como outro qualquer. É um dia sagrado para mim: um dia diferente de todos os dias do ano. Os meus pensamentos, claro está, estão colados ao homem que pregaram na cruz há quase 2000 anos; homem que, independentemente de tudo e de todos e para lá de religiões e de igrejas, rege e orienta a minha vida interior.
Hoje penso nas razões que o levaram àquele lugar de execução. Penso no bem que ele fez na curta vida que teve. Penso no bem que continua a fazer a todos nós que nos interessamos por saber quem ele foi. E penso, como sempre, que o mundo seria tão diferente se todos puséssemos, de facto, em prática a sua mensagem de amor e de paz.
Mas o amor não é fácil; e a paz, muito menos. Tanto o amor como a paz exigem confrontos intransigentes connosco mesmos; exigem confrontos incómodos com os outros. Não é por acaso que o homem que trouxe a lei do amor também disse que viera para trazer a espada: a espada que corta a direito em tudo o que é hipocrisia e mentira. É cortante exigirmos a verdade a nós mesmos; já para não falar de a exigirmos aos outros.
Jesus foi crucificado na década de 30 do século I. No início da década de 30 do século I a.C., um poeta que escreveu sobre uma nova era de paz que estaria para vir (e sobre um jovem que morreu e subiu ao céu) interrogou-se sobre o amor. No latim de Vergílio, a frase diz-nos «quis enim modus adsit amori?» (Bucólica 2.68), o que pode significar «que medida haveria para o amor?» ou «que limite haveria para o amor?»
Pergunta a que o homem pregado na cruz teria dado resposta segura: não existe medida nem limite para o amor.
No entanto, essa é a resposta de alguém que é tido como Deus encarnado. A pergunta, vista da perspectiva humana, é mais difícil: para nós, humanos, a palavra latina «modus» aponta para a dificuldade humana em amar. «Que jeito haveria para o amor?» Ou então: «Será que o amor tem jeito?»
Como amar o próximo como a mim mesmo? Como praticar o amor para com pessoas que me desagradam, que me suscitam censura, tédio e repúdio? E, mais difícil ainda: como praticar, em toda a verdade, o amor para com as pessoas que eu amo de verdade?
O homem que foi pregado na cruz, numa sexta-feira que nunca iremos esquecer, disse: «Nisto se reconhecerão todos que sois meus discípulos, se amor tiverdes entre vós» (João 13:35).
Amor que é a sua própria finalidade, como se vê na mais extraordinária duplicação de uma frase final em toda a literatura grega: «dou-vos um novo mandamento, PARA QUE vos ameis uns aos outros, tal como eu vos amei, PARA QUE também vós vos ameis uns aos outros» (João 13:34).
Amar com a finalidade única de amar. Só e mais nada.
Homilia do Cardeal José Tolentino de Mendonça na Celebração de Quarta-feira de Cinzas
Queridos irmãs e irmãos,
O imperativo que hoje escutamos na voz do Senhor é o convite que este tempo da Quaresma nos faz: “Entra no teu quarto e ora a teu Pai que está no segredo.”
“Entra no teu quarto.” Isto é, entra dentro de ti, entra no teu coração. Muitas vezes vivemos só à superfície, vivemos no rame-rame da vida, vivemos à pele os acontecimentos. Mesmo a espiritualidade é alguma coisa sobretudo de fora, uma expressão de gestos, de atos, de coisas que fazemos. A verdade é que a nossa vida interior vai definhando, vai perdendo a capacidade de inspirar a vida, vai ficando para quando tivermos tempo que nunca temos. Vamos perdendo a coragem de entrar dentro de nós, vamos desacreditando de nós, desacreditando de que é possível, de que vale a pena, de que Deus nos ama realmente e nos transforma, e acabamos por viver uma vida apenas superficial.
“Entra no teu quarto.” O tempo da Quaresma é um desafio a vivermos com interioridade o próprio tempo entrando dentro de nós. Não é entrar no quarto ao lado, no quarto do outro, na vida do outro. É entrar na nossa própria vida, olharmos para nós próprios, para aquilo que somos, para aquilo que vivemos. É que acontece muitas vezes que temos olhos para tudo menos para a nossa própria vida, porque exatamente a nossa própria vida é aquilo que nos custa mais ver. Temos consciência dos pecados, das fragilidades, das dificuldades de toda a gente (“Já viste este. Já viste aquela. E mais isto e mais aquele outro”) e da nossa própria vida nós não tomamos consciência.
“Entra no teu quarto.” Quer dizer: “Toma consciência da tua vida, da qualidade da tua vida.” Da qualidade espiritual, da qualidade de amor, da qualidade de generosidade, da qualidade ou não de misericórdia que tu vives. “Entra no teu quarto.” Isto é, escuta o teu coração, entra. E entra com esperança, porque não é apenas para ficarmos perdidos no nosso caos interior, mas é para olharmos o Pai, descobrirmos o Pai, dentro da nossa vida descobrirmos que Deus é Pai, que Deus nos ama. E se Deus nos ama, Deus estende-nos a mão. Quando Pedro se estava a afundar nas águas e pediu: “Senhor, salva-me.” O Senhor estende-lhe a mão e é esse gesto que Deus faz a cada um de nós.
“Entra no teu quarto e descobre, redescobre que Deus é teu Pai e que Deus é uma presença de amor.” E porque Deus é Pai Ele assiste ao nosso parto, Ele assiste à reinvenção de nós mesmos, Ele assiste à transformação interior da nossa vida.
Nós estamos aqui porque precisamos de conversão, eu antes de todos, mas cada um de nós está aqui porque precisa de conversão. Não é por outra coisa, é por isso, porque precisamos de conversão. Eu preciso de conversão, eu preciso de transformação, eu preciso que a Palavra de Deus se torne mais autêntica em mim, preciso de maior verdade, de maior generosidade, de maior misericórdia, preciso de transformação. No tempo da Quaresma os cristãos entram para obras, isto é, para reparações, como uma casa de vez em quando precisa de um teto novo, precisa de um soalho, de uma porta, de uma reparação qualquer. Nós também precisamos de reparação, nas nossas costas devia haver uma tabuleta a dizer: “Para obras. Este/Esta está em obras.” É isso que nós estamos, estamos em obras e para isso cada um de nós tem de ter consciência do seu pecado e da sua limitação.
Queridos irmãos, o pior que nos pode acontecer é ignorarmos o nosso pecado, ignorarmos a nossa fragilidade. Por isso este tempo também é um tempo para tomarmos consciência do egoísmo, do desamor, do peso com que sobrecarregamos os nossos irmãos, das nossas omissões que muitas vezes são o nosso maior pecado. Tomarmos consciência disso, mas tomarmos com esperança de quem sabe que Aquele que nos vê, Aquele que nos olha não é um impiedoso juiz mas é um pai misericordioso que nos estende a mão e diz: “Confia, acredita, o Meu amor é possível.” E então, este amor que nós recebemos de Deus é uma força que transforma a nossa vida, que nos coloca de pé.
Como é que vai ser este trabalho de reparação interior em que todos entramos? Vai ser um trabalho pensado, um trabalho consciente. Isto é, não pode ser: “Comecei a Quaresma, pronto. O que acontecer aconteceu.” Não, eu tenho de programar, eu tenho de entrar dentro de mim. Se calhar já entrámos, e temos de entrar porque neste tempo nós temos de ter os olhos bem abertos para nós mesmos. Sem ficar colados aos sapatos, mas olhando para longe. Mas temos de estar atentos a nós mesmos, mas temos de ter um programa. Isto é, eu que me conheço, que olho para mim, o que é que eu posso fazer com a ajuda de Deus para transformar a minha vida?
Aqui de facto os três “P” ajudam muito: o que eu tenho de fazer é uma coisa pequena, não é uma coisa grande; o que eu tenho de fazer é uma coisa pessoal, não é uma coisa para os outros; e o que eu tenho de fazer é uma coisa possível, Deus não me pede o impossível, Deus pede-me coisas possíveis. Então, neste tempo de Quaresma era muito importante que cada um de nós tivesse dois, no máximo três propósitos. Dois ou três, não é preciso mais. Que fossem pequenos, pequenas coisas que estão na nossa vida, que estão ao nosso alcance combater, lutar, transformar. Que sejam coisas nossas, não vou combinar com o outro, não, sou eu que tenho de mudar, sou eu. E uma coisa que seja possível, uma coisa que realmente eu veja que com a ajuda de Deus eu consigo mudar. Então, cada um de nós tenha estes dois ou três propósitos e vá caminhado.
Nós celebramos o tempo da Quaresma quando esperamos a primavera. Sabemos que a primavera não está longe. E há a primavera que as árvores vão mostrando, mas há sobretudo uma primavera interior, um rejuvenescimento da alma, uma juventude de coração que cada um de nós pode ganhar. “Pode um homem sendo velho nascer de novo?” Sim, pode nascer de novo pelo espírito, por esta transformação interior.
Queridos irmãos, que nenhum de nós fique parado, que nenhum de nós fique desmobilizado. Este tempo é um tempo para estar mobilizado e contar com a ajuda de Deus. É o amor incondicional que Ele nos dá que é a nossa alavanca, que é o nosso trampolim. É claro, os mais pequenos podem fazer umas coisas, os grandes podem fazer outras. A nossa penitência é uma coisa pessoal, muitas vezes é uma coisa entre nós e Deus, mas que seja verdadeiramente e cada um à sua medida faça alguma coisa. Este não é um tempo de boas intenções, a Quaresma é um tempo prático. É pouco, é poucochinho, pronto, mas faz alguma coisa, faz. Porque a fé é também um fazer, um praticar.
Vamos hoje benzer estas cinzas, que são um sinal austero, é dizer ao Homem: “Olha, lembra-te que um dia vais ser cinza, e que tudo aquilo que tu achaste que era o maior, tudo isso tudo vai passar. Então, lembra-te disso não para entristeceres, mas lembra-te disso para fazeres as escolhas certas, aquelas que não passam.” Vamos ouvir, quando recebermos a cinza na nossa cabeça: ”Converte-te e acredita no Evangelho.” Que essa palavra seja guardada no nosso coração e demos hoje o primeiro passo.