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Saber amar

Reflexão para o mês de outubro de 2025

“Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.” (do Evangelho segundo São João)

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Há frases de Jesus que soam como uma chave de leitura para toda a vida cristã. Esta é uma delas. Este versículo surge num contexto muito particular do Evangelho de João. Jesus está reunido com os seus discípulos, a poucas horas da sua Paixão. O ambiente é denso, íntimo, carregado de despedida e, ao mesmo tempo, de revelação. É neste momento que Ele deixa aos seus discípulos o que chamamos de “testamento espiritual”: o mandamento novo do saber amar. Ser discípulo de Jesus é ser reconhecido pelo amor com que se vive. Jesus escolhe o amor como sinal de pertença, não o conhecimento, não o poder, não a prática exterior. O amor é a marca deixada em quem permanece n’Ele.

Ao declarar que a marca distintiva dos seus discípulos seria o amor, Jesus desloca a questão do ser para a questão do relacionar-se. Não sou discípulo por aquilo que possuo ou sei, mas pela qualidade das minhas relações. É no espaço entre mim e o outro que se joga a autenticidade da fé. Jesus não diz que o amor é apenas um caminho interior, fechado em cada um. Ele afirma que é algo visível, reconhecível: “todos conhecerão”. O amor é o critério público, aquilo que pode ser visto e tocado. Não há como esconder ou disfarçar. Amar é tornar-se testemunha. O amor é o sinal pelo qual nos damos a conhecer como cristãos. E é importante perceber que não se trata de um amor sentimental, reduzido a afeto ou simpatia. É antes um amor que compromete, que se faz serviço, que desce às feridas do outro. É um amor que lava os pés, que perdoa o parece ser imperdoável, que carrega a cruz que nos pesa. É um amor que é tantas vezes acontecido no silêncio e vivido na confiança. É um amor que implica aceitação e perdão do que se foi para se construir o novo que há-de vir.

O Evangelho ganha carne nos gestos simples e quotidianos, onde se faz a diferença. Às vezes, julgamos que amar como Jesus está reservado apenas aos santos, aos gestos grandiosos e heroicos, que não está ao nosso alcance. Mas a verdade é que esse amor se constrói no dia-a-dia. É amor quando, depois de um dia cansativo, resisto à tentação de me fechar em mim e vou ao encontro de quem está sozinho. É amor quando, no meio do trânsito, escolho a paciência em vez da buzina. É amor quando, no trabalho, evito a palavra que podia ferir e escolho a palavra que constrói. É amor quando acolho a diferença sem medo e abro espaço para a compreensão.

Amar assim é sempre exigente. É fácil falar de amor em abstrato, difícil é praticá-lo quando a vida se torna áspera: quando alguém nos fere, quando somos incompreendidos, quando o outro não corresponde. É precisamente aí que o Evangelho ganha força — porque não se trata de amar “quando dá jeito”, mas de amar “como Eu vos amei” (Jo 13,34). Um amor sem cálculo, sem condições, sem reservas.

Quando Jesus fala de “todos”, aponta para algo que vai além da comunidade cristã. Muitas vezes, a Igreja e as suas comunidades são vistas mais pelas divisões internas, pela rigidez ou pela indiferença do que pela capacidade de amar. Este versículo do evangelho de João soa, então, como um apelo urgente à conversão e é profundamente desconcertante porque nos coloca perante o essencial: ou somos discípulos de Jesus no amor ou corremos o risco de sermos apenas seus admiradores. O mundo só acreditará que o Evangelho é vida se a vida dos cristãos for esse mesmo Evangelho vivo. O mundo só nos conhecerá se os nossos gestos refletirem um estilo de vida verdadeiramente cristão. E esta identidade constrói-se, escolhe-se, molda-se no dia-a-dia, nas escolhas que fazemos, na autenticidade que vamos privilegiando. É o amor que evangeliza, que anuncia sem palavras. É o amor que provoca espanto, que cria vontade de permanecer onde ele está. Por isso, ser discípulo de Jesus não é uma identidade abstrata, é deixar que o amor nos aconteça e nos molde. E este amor, quando é assumido e vivido em permanente ressurreição, torna-se luz para o mundo, chama que aquece os nossos corações, sinal vivo da presença em nós de um Deus presente. E talvez seja este o maior desafio dos cristãos: deixarmo-nos reconhecer como discípulos não porque somos cristãos, mas porque o amor, traduzido em atenção, em escuta, em perdão e em serviço, transparece. É um caminho exigente, mas profundamente libertador. O amor vivido em comunidade torna-se farol – não para mostrarmos que somos melhores, mas para revelar a presença de Deus que se faz próxima através de nós.

Amar desta forma não é possível apenas pelas nossas forças. O amor humano é limitado, facilmente cansa e se fecha em si e impõe condições e trocas. Por isso, só permanecendo em Deus, só deixando que seja Ele a amar em nós, podemos ser capazes de viver o seu modo de amar. Deus não nos pede nunca um esforço sobre-humano; pede-nos apenas que nos deixemos transformar por Ele. Que nos permitamos acolher o seu amor primeiro, porque só quem se sabe amado até ao fim consegue amar assim. E será sempre este o nosso maior testemunho: quando, no meio das nossas fragilidades e incoerências, deixamos transparecer algo de um amor que não é só nosso. Quando alguém olha para nós e percebe que não caminhamos sozinhos, mas com Ele e por Ele.

No século II, Tertuliano, um autor das primeiras fases do Cristianismo, testemunhou que os primeiros cristãos levavam as palavras de Jesus tão a sério que os pagãos, admirados, exclamavam: “Vede como eles se amam!” Este testemunho atravessa os séculos e chega-nos como uma pergunta viva: será que ainda hoje podem dizer o mesmo de nós? O mundo continua sedento de um amor verdadeiro — não de amores descartáveis, utilitários, superficiais — mas de um amor que permanece, que cuida, que se doa, que abraça até às feridas. Quando os cristãos se tornam imagem viva deste amor, quando cada comunidade é lugar de acolhimento, de perdão e de serviço, a luz do Evangelho permanece acesa e não pode ser escondida. A medida deste amor que desejamos é o próprio Jesus. É este amor que somos chamados a aprender, a encarnar, a oferecer ao mundo. Por isso, peçamos-lhe, hoje, esta graça: que cada um de nós possa ser reconhecido pelo amor que vive — um amor que mostra ao mundo o rosto de Cristo, que nunca deixa de amar.

Palavras de vida

Reflexão para o mês de setembro de 2025

“Senhor, a quem iremos? Só tu tens palavras de vida eterna.” (do Evangelho segundo São João)

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Para onde vamos? Para onde seguimos? Para quem vamos? Quem nunca se colocou estas questões? Questões estas que urgem cada vez mais nestes tempos que correm velozes, sem piedade. Tempos desenfreados, acelerados que nos colocam uma emergência voraz que nos impele a correr, a seguir, a ir. Para onde vamos? Para onde caminhamos? A quem queremos chegar? Que quotidiano é este que nos impõe velocidade ilimitada? Que dia-a-dia é este que nos faz estar quase sempre atrasados, preocupados, assoberbados? Colocam-se perguntas, procuram-se respostas. Também há dois mil anos, os amigos de Jesus sentiam esta inquietação. Tanto a acontecer à sua volta, tanta novidade a nascer entrelaçada com imensas dúvidas a pairar no ar. O que fazer? O que sentir? Para onde ir? Como ir? Para quem ir? As mesmas questões de hoje, nossas, partilhadas, vividas.

“Senhor, a quem iremos?” Pedro coloca esta questão num tempo de crise, depois de muitos terem abandonado Jesus. Tinham ficado escandalizados com a linguagem exigente do Mestre, com a proposta do Pão da Vida, com a radicalidade do seu amor. Queriam um Messias que confortasse, mas não que desafiasse. Um Jesus que curasse, mas que não os chamasse à conversão. E quando perceberam que segui-lo implicava mudar de vida, foram-se embora. Porque é exigente acreditar num Deus que se faz tão próximo, tão humano, tão vulnerável ao ponto de se oferecer como alimento…

Jesus não os impede. Não suaviza o discurso, não adapta a mensagem para agradar. Apenas olha os que ficam e pergunta: “Também vós quereis ir embora?” É uma pergunta livre, corajosa. Não há chantagem, nem medo de ficar só. Apenas o amor que se oferece e espera uma resposta verdadeira. É uma pergunta que continua viva hoje. Todos nós a escutamos, em algum momento: quando a fé se torna pesada, quando Deus nos parece distante, quando o coração sente vontade de desistir.

Pedro, no seu jeito impulsivo, mas sincero, responde com aquilo que o coração sabe: “Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna.” Estas palavras são uma profissão de fé humilde. Pedro não diz que entende tudo o que Jesus diz. Não afirma que não tem dúvidas. Mas reconhece que, mesmo sem respostas fáceis, ninguém fala como Jesus. Só nas Suas palavras há qualquer coisa que o salva por dentro. Pedro não tem certezas — tem confiança. Não tem mapa — tem o Rosto. Não tem garantias — tem o coração ancorado n’Aquele que é Vida. A resposta de Pedro não é uma certeza teológica. É uma confissão de amor. Pedro viu, ouviu, experimentou e confiou.

Vivemos rodeados de palavras. Palavras que enchem os nossos dias, que nos atravessam as rotinas, que nos distraem. Palavras que prometem felicidade, sucesso, plenitude — mas que não chegam ao mais íntimo de nós. Há palavras que passam. Palavras que seduzem por um instante, que enchem os ouvidos mas não enraízam nada. Palavras que agradam, mas não salvam. Palavras que se gastam, como promessas vãs, como ecos que se dissipam ao primeiro sopro de dor.

E depois… há as palavras de Jesus. Palavras que não se esgotam na superfície. Palavras que tocam lugares que nem sabíamos que existiam. Palavras que ardem, que nos curam, que permanecem. Palavras que nos revelam a nós mesmos, que nos levantam, que nos chamam por dentro, que nos despertam para um dia sempre maior. Palavras cheias de uma vida inteira que não depende do tempo, nem do humor, nem das meras circunstâncias. Palavras que não mudam com as marés, que não se ajustam para agradar, mas que têm a ousadia de dizer a Verdade. Palavras que transformam e que dizem não o que queremos ouvir, mas o que precisamos para viver.

“Só Tu tens palavras de vida eterna.” E porque é eterna, a Palavra de Jesus resiste. Resiste ao tempo, à dor, à solidão, à morte. Resiste em nós quando tudo parece desabar. Estas palavras de vida eterna não prometem apenas um futuro depois da morte. Prometem um presente transformado – uma vida eterna que já começa aqui: uma vida que se descobre amada, que encontra sentido no meio das perguntas, que se deixa guiar por uma esperança maior do que qualquer escuridão. Só Ele tem palavras que tocam a vida inteira — as alegrias, as feridas, os medos, as esperanças. Por isso, ouvir Jesus não é apenas escutar uma mensagem. É deixar que a própria Vida fale dentro de nós. É acolher palavras que não se gastam nem se esgotam. Palavras que ensinam a amar sem medidas, a perdoar onde parecia impossível, a confiar mesmo no meio das incertezas.

Por isso, o Evangelho não é uma fala ou um mero aglomerado de acontecimentos. O Evangelho é uma vida. Uma vida que se espelha na vida de quem se assume cristão. Uma vida que reflete a eternidade das Palavras de vida eterna. E estas palavras leem-se no modo como amamos, na forma como gerimos o que Deus nos confiou, nas escolhas que fazemos. A nossa vida precisa ser esse evangelho vivo. Ou então não é evangelho nenhum. Peçamos a graça de nos deixarmos conduzir por estas palavras de eternidade e que elas se infiltrem no nosso quotidiano em cada dia que nos é dado viver.

O meu coração

Reflexão para o mês de julho de 2025

“Dar-vos-ei um coração novo e porei dentro de vós um espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei um coração de carne.” (do Livro do Profeta Ezequiel)

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

No nosso Musical “Jesus é Vida”, a primeira parte do espetáculo acontecia em contexto de grupo de jovens que, desafiados pela professora de História para apresentarem um trabalho sobre uma figura histórica, decidiram escolher falar sobre Jesus. Uma das personagens de seu nome Susana – interpretada pela… Susana! – começa por manifestar muitas dúvidas relativamente àquela escolha feita pelo seu grupo. Num diálogo com outra personagem de seu nome Ana – interpretada por mim… Ana! -, a Susana vai descobrindo que as dúvidas que sentia não tinham a ver com o trabalho que lhes tinha sido proposto, mas sim com a sua própria perspetiva em relação à vida e principalmente com a dificuldade que ela sentia em viver o que os amigos viviam, em acreditar como eles acreditavam, em assumir a verdade que o grupo assumia. Durante a conversa, a minha personagem ia mostrando à Susana que o que a impossibilitava de viver plena e genuinamente aquilo em que dizia acreditar era o simples facto de não se deixar envolver nas atividades do grupo, de não se entregar à vida, de não se deixar encantar pela beleza.

Ao recordar por estes dias este momento do Musical, veio-me à memória a passagem do profeta Ezequiel sobre o coração novo que Deus nos promete. “Dai-vos-ei um coração novo” é uma promessa que toca no mais profundo da nossa identidade. Estas palavras não são apenas poesia ou consolo. São a promessa concreta de uma modificação interior, de um caminho que nos é oferecido, de uma possibilidade de renovação. E por que razão há urgência nesta transformação?

Vivemos tempos de fragmentação, entre o que se deseja ser e o que de facto se é. Vivemos tempos de cansaço. Não tanto um cansaço físico, mas acima de tudo existencial. Há uma fadiga que persiste e que não se cura com descanso, uma espécie de saturação interior que se vai instalando, silenciosa, mas constante. A pressa com que se vive, a desilusão com que nos confrontamos, o peso das notícias que nos chegam a toda a hora, o ruído permanente da desinformação… tudo isto e tanto mais contribuiu para que o nosso coração, esse centro vivo da nossa identidade, vá perdendo a sua sensibilidade. Vamos endurecendo por dentro, vamos erguendo defesas, vamos fechando o nosso olhar. Ao longo da vida, todos nós corremos o risco de permitir que o nosso coração endureça e nos faça viver à defensiva. Tornamo-nos mais racionais, mais pragmáticos, mas simultaneamente mais frios, menos compassivos, menos atentos aos outros. Dentro de nós hospeda-se um coração de pedra. Este coração de pedra é uma metáfora real da nossa condição: um coração que deixou de bater ao ritmo de Deus e passou a viver em função do medo, do orgulho, do egoísmo.

E é precisamente quando este coração de pedra se instala em nós que Deus intervém, não com acusações, mas sempre com uma promessa, não com imposições, mas sempre com uma proposta. Deus não exige que eu me corrija, que me torne melhor sozinho. Ele próprio se oferece, dizendo: “Dar-vos-ei um coração novo”. Não é um remendo. Não é uma versão moralizada. Não é uma mudança superficial. É um coração novo, uma proposta radical e interior. Um coração de carne é um coração vivo, vibrante, capaz de escutar a voz de Deus, de se deixar encantar pela beleza da vida, pela força do Amor. Um coração com sede de justiça, de verdade, de comunhão.

Deus sabe que, por nós mesmos, não conseguimos regenerar o que em nós se quebrou. Por isso, propõe-se Ele próprio realizar essa obra em nós. E é este o coração da mensagem cristã: não estamos sozinhos. Fomos criados para vivermos em aliança com Deus, numa relação de pertença mútua. Quando permitimos que Ele transforme o nosso coração, assumimo-nos filhos de um Pai que nos ama. E pertencer a Deus é encontrar a nossa identidade mais profunda. É saber que temos um lugar nosso, um propósito a cumprir.

Esta promessa que Deus nos faz toca o grande dilema humano: como amar num mundo ferido pela dor? Como manter a doçura quando tudo nos convida ao endurecimento? Como permanecer sensível sem sofrermos com a indiferença? Deus responde-nos com a oferta de um coração novo. Não um coração perfeito, mas um coração que se abre, que se dispõe a que Deus nele habite e o transforme. O verdadeiro milagre não é um coração perfeito, é um coração capaz de mudar, disponível, aberto. Ao prometer-nos um coração novo, Deus convida-nos a recomeçar de dentro para fora. A confiar que é sempre possível sentir de novo, amar de novo, viver com leveza. É um convite à reconciliação com a nossa própria humanidade. E esta promessa não se esgota no passado. Ela é um apelo para o presente. A dureza dos nossos dias, o individualismo e a indiferença exigem homens e mulheres de coração novo. O caminho mais fácil é sempre o do endurecimento. Mas Deus continua a oferecer-nos, todos os dias, este dom magnífico: um coração capaz de recomeçar, de amar, de perdoar, de se entregar.

P.S. No Musical, a personagem Susana acabou por ser dos elementos mais empenhados do seu grupo na realização do trabalho para a escola. Ela foi-se deixando transformar por este coração que Deus lhe ofereceu. E digo “foi-se deixando” precisamente porque este é um trabalho contínuo, de avanços e recuos, de erros e acertos. A Susana continuou com medos e dúvidas, mas assumiu vivê-los com confiança e com a certeza de que Deus habitava no seu novo coração. E, sobretudo, foi escolhendo cuidar deste seu coração em comunidade…

A vida em abundância

Reflexão para o mês de junho de 2025

“Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (do Evangelho segundo São João)

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Há dias, no nosso encontro mensal “Estradas Partilhadas”, começamos a ver “After life”, uma série profundamente filosófica e ao mesmo tempo tão próxima da vida real, repleta de dizeres marcadamente espirituais. Num dos episódios da série, encontramos esta afirmação maravilhosa proferida por uma das personagens: “A felicidade é maravilhosa. É tão maravilhosa que não importa se é nossa ou não”. Ao escutá-la, lembrei-me também de uma das mais famosas frases de Jesus: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância”. De facto, estas duas frases, quando lidas com atenção do espírito, revelam uma única verdade mística: a verdadeira felicidade e a verdadeira vida não são posse, são presença. São estados de partilha, não de acumulação. São escolhas comuns e não individuais.

A mensagem de Jesus aponta-nos uma vida vivida em abundância, não em termos materiais, mas numa dimensão espiritual, de amor, propósito, sentido e comunhão com o outro. Ele propõe-nos uma existência transbordante de graça, onde o bem e a felicidade não são escassos nem reservados, mas disponíveis a todos que se abrem ao Amor. A verdadeira abundância é aquela que se partilha. É a alegria que se multiplica, é a felicidade que cresce ao ser vivida em comunidade. Por isso, o bem que acontece no outro não nos diminui nunca; pelo contrário, engrandece-nos, acrescenta-nos porque participamos do milagre maior do amor que habita no meio de nós.

A vida em abundância que Jesus nos promete não é medida em posses, em méritos e nem sequer em momentos felizes individuais. A vida em abundância é aquela que, ao ser vivida verdadeira e generosamente, já não se distingue entre o “eu” e o “tu”, mas reconhece-se unicamente no “nós”. Jesus não nos oferece uma promessa de abundância individualista, mas sim de uma realidade onde a felicidade dos outros não é uma ameaça, mas uma extensão da nossa própria essência, pois tudo o que é verdadeiro e bom em qualquer ser humano pertence ao Corpo vivo que somos todos em Deus.

Assumir a felicidade dos outros como contentamento nosso implica um compromisso grande com a vida e um entendimento gigante não só do que é isto que nos acontece antes da morte física, mas também uma compreensão maior do que é saber viver e, como nos diz Jesus, viver em abundância, em plenitude. Esta visão convida a uma superação do ego, onde a felicidade do próximo deixa de ser um espelho daquilo que nos falta, e passa a ser uma manifestação da presença de Deus no mundo. Alegremo-nos, pois, quando outros são felizes, pois estamos a testemunhar essa vida abundante que Cristo veio oferecer. No fundo, amar a felicidade onde quer que ela esteja é já um sinal de que estamos a viver com o coração moldado por esse Amor maior que Jesus veio ensinar. Quando a felicidade de alguém nos toca, mesmo sem ser “nossa”, é a abundância prometida que se revela, silenciosamente, dentro de nós.

Isto desafia o pensamento utilitarista e egocêntrico que impera na sociedade moderna. Mas, se conseguirmos alegrar-nos com a felicidade dos outros, libertamo-nos das amarras da inveja, do ressentimento e da competição. Esta abertura à alegria alheia é uma forma de transcendência – um passo em direção a um amor mais universal. Na prática, isto pode manifestar-se em pequenos momentos: sorrir ao ver uma criança a brincar, emocionar-se com a conquista de um amigo ou sentir paz ao saber que alguém encontrou o seu caminho. A felicidade partilhada, mesmo quando não é nossa, tem o poder de iluminar também o nosso espírito.

Aceitar esta ideia é também um ato de humildade. É reconhecer que não somos o centro do mundo, mas parte de algo maior, onde o bem-estar coletivo importa tanto como o individual. Ao celebrarmos a felicidade dos outros, multiplicamos a luz no mundo – e isso é, por si só, uma forma única de sermos felizes. Ver a felicidade no outro — e deixar que ela nos preencha sem que seja “nossa” — é um sinal de maturidade espiritual profunda. É participar da abundância de Deus, não com as mãos que agarram, mas com o coração que contempla e se alegra. E quando conseguimos olhar para a felicidade de alguém e sentir gratidão — mesmo que estejamos, pessoalmente, em dor — aí tocamos o mistério da cruz e da ressurreição. Amar o bem, mesmo fora de nós, é já um ato redentor. É deixar que a vida abundante de Cristo se manifeste não apenas em nós, mas através de nós.

Muito mais do que procurarmos a nossa felicidade, a vida em abundância é a felicidade que a felicidade dos outros nos traz. É um maravilhamento constante com a beleza, um espanto infinito com a simplicidade que nos sustenta. Esta noção de felicidade trabalha-se, constrói-se, molda-se. Trabalha-se no dia-a-dia da vida. Constrói-se no empenho e na dedicação com que entrelaço os meus propósitos. Molda-se na relação que tenho com os outros e com o Outro. Por isso, procuremos espaços onde possamos exercitar estes desejos. Onde possamos descobrir aquela que é a nossa melhor versão. Onde quem caminha connosco exija, com amor e confiança, o melhor de nós próprios. Peçamos a Deus esta graça de sabermos procurar esta felicidade salvadora. Sejamos gratos quando nos é dada a oportunidade de vivê-la. Confiemos no Espírito Santo para que ele nos faça caminhar nesta estrada de coração aberto e de olhos cheios daquela luz que não se apaga. E não tenhamos medo de escolher, sempre e para sempre, esta vida em abundância.

Naquela noite, descalcei-me diante do Mistério…

A reflexão de João, discípulo de Jesus

(a partir do Evangelho do dia – Jo 13, 1-15)

Recordo aquela noite como se ainda estivesse a vivê-la. A mesa posta, o pão ainda quente, o vinho já servido, mas o que se preparava – sei-o agora – era mais do que uma ceia. Era um testemunho.

Pedro falava alto, contando as suas peripécias para conseguir comprar aquele pão a tempo da ceia. Tomé, sempre desconfiado, fazia-lhe muitas perguntas. Tiago e Filipe divertiam-se a imitar os dois. Todos nós nos riamos. Foi então que Jesus Se levantou. Com um gesto sereno, mas cheio de solenidade, tirou o manto. Pegou na toalha, atou-a à cintura, tal como um servo faria. E ajoelhou-Se diante de cada um de nós.

Eu vi Pedro hesitar, vi os olhos dos outros abrirem-se de espanto. E dentro de mim soavam perguntas: “Como podia Ele, o nosso Mestre, curvar-Se assim? Como podia Ele, o Deus feito carne, tocar com mãos tão limpas a poeira dos nossos pés?” Quando lavou os meus, não ousei falar. Não senti apenas água… senti graça e misericórdia. Era como se cada gota dissesse: “Deixa-Me purificar-te.”

Naquele gesto, Jesus revelou o que muitos nunca compreenderiam: que a verdadeira glória está em servir, que a maior luz é a que se abaixa para iluminar a escuridão. Porque naquele gesto, Ele não lavava apenas os pés. Lavava-nos o orgulho, a rigidez, a falsa ideia de grandeza. Lavava-nos os medos, os atalhos, as pressas de querermos ser os primeiros. E mostrava-nos que o amor verdadeiro é sempre serviço, é dádiva, é entrega. Ali Deus ajoelhou-se na nossa humanidade.

Mais tarde, no Calvário, quando o vi entregar-Se por nós, compreendi que aquele lava-pés era já um prenúncio da cruz: o Deus que Se inclina, que Se doa, que ama até ao fim.

Naquele lava-pés, entendi que ser amado por Jesus é também ser chamado a amar como Ele: de joelhos, com a toalha da humildade e o coração aberto. Naquele Seu gesto, também percebi que quem não aceita ser lavado, nunca será fonte.

Vinde e vede!

Reflexão para o mês de abril de 2025

“Mestre, onde moras? Vinde e vede!” (do Evangelho segundo São João)

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Esta passagem do Evangelho segundo São João apresenta-nos o encontro de Jesus com aqueles que foram os seus primeiros discípulos. Este encontro acontece no rio Jordão, um dia depois do Batismo de Jesus. Aqueles dois homens, maravilhados com tudo o que tinham presenciado, seguem Jesus e interpelam-no: “Mestre, onde moras?”. Ao que Ele responde, em forma de convite: “Vinde e vede!”. Eles seguem-no e assim começavam o seu caminho para a Terra Prometida.

A pergunta que os discípulos entregam a Jesus é fruto da sua sede, da sua busca, da sua procura. Não é uma questão de curiosidade. Não é também uma questão de lugar físico ou geográfico. É antes um desejo de sentido. Não é um simples pedido de localização, mas um anseio de habitação da alma. Esta questão colocada exprime o desejo de conhecer e compreender quem é verdadeiramente aquele Homem que ama com gestos, que salva com palavras, que anuncia uma eternidade feliz.

Esta questão feita pelos discípulos a Jesus pode ser ampliada para nós e é sobre nós mesmos: “Mestre, onde vives? Onde estão as tuas raízes? O que é te vivifica? Onde está a fonte para bebermos dessa tua água? Onde podemos permanecer enraizados em Ti? Onde nos podemos sentir acolhidos em Ti? Onde habitamos nós? Em que moradas depositamos a nossa esperança? A quem ou a quê nos confiamos?” Deixemos que estas interpelações ecoem em nós como um mantra contínuo e que descubramos que o Mestre mora onde O deixamos morar: dentro de nós.

À pergunta que os discípulos lhe fazem, Jesus, com a sabedoria de quem sabe que a verdade não se explica, mas se experimenta, responde com um convite: “Vinde e vede!”. Não lhes entrega um discurso recheado de aforismos nem tão pouco moralizações abstratas. Oferece-lhes sim um convite à experiência. “Vinde e vede!” implica um deslocamento, uma saída da zona de conforto, uma confiança naquele que nos chama. Muitas vezes, sentimo-nos sozinhos e abandonados porque só procuramos este Deus nos sítios errados. Julgamos que Ele está nas respostas rápidas e imediatas, nas seguranças concretas, nas ações provadas de forma racional e até científica. Pois, a verdade é que dificilmente O encontraremos assim… Deus está no caminho que fazemos, na busca do quotidiano, nesta peregrinação que a vida é e só teremos acesso à sua morada se confiarmos nesse mesmo caminho, se peregrinarmos em confiança, se nos disponibilizarmos ao compromisso. O encontro com Deus não é uma teoria abstrata, mas sim um caminho que se faz. A relação com Deus não parte de mapas prontos, mas de convites aceites na confiança.

Deus chama-nos sempre, Ele quer-nos sempre ao Seu lado. Mas ama-nos de tal modo que até nos dá a liberdade total de rejeitarmos este Seu chamamento. Quando aceitamos este seu convite, assumimos o risco próprio que a fé traz consigo. A fé é, antes de mais, uma resposta, uma ida na direção de Deus. É um desejo de caminhar, de fazer viagem, de navegar tantas vezes por “mares nunca dantes navegados”. De nada nos serviria a fé se não nos permitisse seguir pelo desconhecido. A Fé é um processo que cresce com o risco, abrindo-nos caminho que é a nossa vida toda.

Ao acederem ao convite de Jesus, aqueles dois homens não conheciam o final da sua história. Não sabiam, naquele momento, que iriam viver a mais extraordinária vida com Jesus, cheia de dias desafiantes, de palavras poderosas, de encontros abraçados, de espaços acolhidos. Não sabiam que iriam enfrentar a dor da cruz e, depois, encontrar a luz. E tudo começou com uma simples pergunta…

“Vinde e vede!” encerra o desejo do encontro, o combustível imprescindível para mantermos acesa a vontade de continuar a procurar. É uma chama que se mantém acesa em proporção ao sentido e à grande importância de quem ou do que se busca. Viver é desafiador na medida em que viver é procurar.

Nos tempos atuais, em Igreja, particularmente em contexto paroquial, creio que o mais desafiador é fazer com que os cristãos “venham e vejam”. Numa época em que as sociedades nos impõem que vivamos assoberbados com o trabalho, com o estatuto social, com os bens materiais, com o “show-off” das redes sociais, é, por vezes, difícil aceitarmos o convite para um encontro religioso, para uma experiência espiritual, para uma formação teológica. Mas a experiência também nos diz que depois de aceites e experimentados estes convites, abre-se uma nova realidade na vida das pessoas, encontra-se uma maior disponibilidade de horários e, assim, sem mais reservas, acedemos a uma outra compreensão da vida, de Deus, de nós próprios. Quem decide vir e ver, não fica indiferente: transforma-se. O olhar que vê Jesus já não é o mesmo; é um olhar que atravessa as sombras e se deixa iluminar pela verdade.

“Vinde e vede!” é esse convite a ousar abandonar o comodismo da fé acomodada; é esse chamamento a caminhar de olhos fechados, mas sempre de mãos dadas com Ele; é esse desafio à transformação pessoal com a única certeza da oferta uma Eternidade feliz. Que eu tenha a disponibilidade de me colocar sempre esta pergunta: “Mestre, onde moras?” e a vontade de encontrar a resposta. Que os meus pés sigam sempre nesta estrada, que os meus olhos vejam sempre esta claridade, que o meu coração deseje sempre ir ao encontro daquele que me ama.

No nosso tempo

Reflexão para o mês de março de 2025

“É este o tempo favorável, é este o dia da salvação.” (da Carta aos Coríntios)

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Vivemos um tempo marcado paradoxalmente pela pressa e pelo adiamento. Corremos desenfreados de um lado para o outro, cumprindo as tarefas diárias, mas, tantas vezes do mesmo modo apressado, adiamos projetos ou decisões, relevando-as para um plano secundário, como se dispuséssemos de todo o tempo futuro para os concretizar. Julgamos sempre que haverá uma altura melhor, uma ocasião mais propícia, um tempo mais adequado. E vamos adiando, à espera das conjunturas mais favoráveis e até do alinhamento dos astros… E, outras tantas vezes, essa oportunidade perde-se porque nós não somos donos do tempo…

São Paulo, na sua carta aos Coríntios, exorta-nos com esta certeza inabalável: “É este o tempo favorável, é este o dia da salvação.” Esta afirmação é um convite à consciência do presente, à ação de Deus no momento presente, no agora que é o tempo que me pertence. Deus age no agora. Muitas vezes, olhamos para o passado com saudade ou arrependimento, lamentando os erros cometidos ou sonhando com tempos que parecem ter sido melhores. Outras vezes, projetamos tudo para o futuro: “um dia vou ter mais tempo para estar com os meus amigos”, “quando tiver mais disponibilidade, vou fazer voluntariado”, “quando a minha vida estiver mais tranquila, vou dedicar-me à minha comunidade”, “quando sentir que estou pronto, vou comprometer-me mais”. Mas estas palavras de São Paulo rasgam estes mesmos adiamentos e colocam-nos diante de uma verdade fundamental: o momento certo é este no qual eu vivo.

Há duas palavras gregas para “tempo”: “chronos” e “kairós”. “Chronos” refere-se ao tempo cronológico, aquele que medimos com o relógio e com o calendário. Já “kairós” é o tempo oportuno, o tempo da graça, o tempo de Deus. Quando São Paulo nos diz que “este é o tempo favorável”, ele fala-nos do “kairós”. Não se trata de um tempo qualquer, mas do tempo que Deus nos concede para que algo novo aconteça. E esse tempo “perfeito” é o tempo do agora com as suas circunstâncias e imperfeições. Deus prepara-nos, com o seu Amor, este tempo, este presente que nos é dado. E porque é um presente, só pode ser bom. E porque vem de Deus, só pode ser uma graça. Mesmo quando passamos por dificuldades, mesmo quando as circunstâncias parecem adversas, Deus pode fazer deste tempo um tempo favorável porque nos permite compreender a sua presença em nós.

E Deus fala-nos, neste nosso presente, de diversas formas: numa inspiração no coração, num encontro inesperado, numa dificuldade que nos ensina, numa Palavra que ouvimos. Mas, se estivermos distraídos ou sempre à espera de um “tempo melhor”, corremos o risco de perder a oportunidade de viver este presente que Deus nos quer ofertar. Por isso, a salvação não é algo distante, mas uma realidade que se inicia no hoje da nossa vida. Se precisamos de renovar o nosso interior, o momento de mudar é agora. Se precisamos de um compromisso mais forte, o momento de assumi-lo é agora. Deus está presente no agora, e é aqui que Ele quer encontrar-nos e cobrir-nos com o seu Amor.

Isso não significa que não devemos planear o futuro, mas sim que não devemos deixar de viver o hoje na plenitude da graça de Deus, na certeza da confiança de quem nos ama. Deus não nos pede que esperemos por um amanhã incerto, mas que vivamos com intensidade a Sua graça no presente. Ele está no presente, chamando-nos neste exato instante a uma vida renovada. Este “tempo favorável” também não significa que tudo será fácil ou perfeito, mas que acreditamos que Deus age nas nossas vidas no momento presente, independentemente das circunstâncias.

Muitas vezes, esperamos um momento ideal para agir, para transformar a nossa vida. Mas a verdade é que o tempo favorável não é quando as condições parecem perfeitas, mas sim o agora, com todas as suas dificuldades e desafios. Deus chama-nos a agir no presente, mesmo diante da incerteza. Deus convida-nos a viver plenamente o hoje, sem adiamentos.

O tempo favorável. A história do meu presente diário. A minha resposta diária ao amor de Deus por mim. Como estou a viver este meu agora? Tenho consciência da oportunidade que cada dia me traz de amar mais, de acolher mais, de ser mais? Será que estou sempre à espera de condições ideais para me comprometer mais? Será que estou a adiar mudanças que sei que preciso fazer? Será que estou realmente a aproveitar este tempo como um tempo de graça? Escutemos o que São Paulo nos diz: o tempo favorável é hoje; o dia da salvação é agora. O tempo presente é um ato de entrega e de confiança. Significa estar verdadeiramente onde estamos, sem distrações desnecessárias, praticando a atenção plena. Significa escutar com atenção, falar com verdade, amar sem reservas. Que possamos, então, abraçar o presente como o presente que é. Que saibamos saborear cada momento como uma bênção, uma nova oportunidade de sermos, simplesmente, felizes.

A gramática da Bondade

Reflexão para o mês de fevereiro

“E não nos cansemos de fazer bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não houvermos desfalecido (da Carta aos Gálatas 6, 9)

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

“A gramática da Bondade”. Há dias deparei-me com esta expressão sublime num manual de Português do 12.º ano. É da autoria do Cardeal José Tolentino Mendonça e nela se resume todo o plano da vivência cristã. De facto, a bondade não é apenas um valor ou um comportamento ocasional, mas sim um elemento estrutural essencial dentro da fé cristã. A bondade permeia todas as áreas da vida cristã, moldando relacionamentos, atitudes e a maneira como os cristãos interagem com o mundo ao seu redor.

Ser bondoso, na identidade cristã, significa viver de acordo com essa gramática, onde cada ação, palavra e intenção se alinham com a vontade de Deus. E isto manifesta-se no perdão, na caridade, na paciência e no compromisso com a justiça e a verdade. Portanto, a bondade cristã não é apenas um princípio ético, mas uma resposta ao amor de Deus, moldando a vida de quem crê ao plano de salvação que Deus tem para cada um de nós. É o amor a Deus que nos faz sempre reconhecer no outro o próximo, o irmão ou a irmã a ser amado. E isso requer compromisso pessoal, decisões e escolhas de vida.

A bondade é ativada pela escuta genuína da Palavra de Deus que nos impele a viver de modo pleno a totalidade do Amor divino. Quando verdadeiramente conhecemos e nos deixamos orientar pela mensagem de Jesus, percebemos que os nossos esquemas mentais têm de ser alterados. Compreendemos que temos de investir mais nas relações, que temos de praticar mais a atenção para com o outro. E se assim nos deixarmos ir, na base da confiança e da esperança, há todo um mundo novo que vem até nós. Um cristão é um agente de mudança, é uma luz que ilumina a escuridão, é um desafiador de lógicas e julgamentos.

Como podemos nós, nos nossos contextos e histórias diárias, concretizar este mistério da bondade? A resposta a esta questão encontrámo-la sempre na ordem da simplicidade. A bondade está sempre ao alcance de todos porque todos nós fomos feitos à imagem de um Deus que só nos ama e que, sendo Ele próprio um mistério de bondade insondável, só espera de nós a concretização desta mesma bondade. A grande novidade que o Evangelho anuncia não é tanto o facto de que Deus é fonte de bondade, mas que todos os homens podem e devem agir à imagem do seu Criador. Por isso, o mais pequeno gesto de bondade tem um valor incalculavelmente maior do que muitas teorias, belas palavras ou boas intenções. Pessoalmente, não consigo deixar de acreditar na perseverança da bondade. Se a procurarmos à nossa volta, vamos encontrá-la, pelo que concluo que o que é verdadeiramente humano e revolucionário é isto mesmo, esta necessidade de acolher o outro, de fazer o bem, de personalizar este mesmo bem. A bondade é como uma chama que pode estar momentaneamente oculta, mas nunca se extingue definitivamente ou como uma semente debaixo da terra que, mais tarde ou mais cedo, vai brotar e dar fruto. Nem sempre a bondade é notória e evidente, mas ela existe e torna-se real se nela escolhermos investir. E o que investimos ser-nos-á devolvido, conforme a promessa do Senhor.

Na missa inaugural do seu pontificado, o Papa Francisco deixou-nos esta imagem fortíssima: “Não devemos ter medo da bondade.” Parece ser algo contraditório, mas acaba por ser a fotografia de uma certa realidade que nos envolve. A bondade não é virtude dos fracos, antes, pelo contrário, denota fortaleza de ânimo e capacidade de solitude, de compaixão, de verdadeira abertura ao outro. Bondade implica ação, envolvimento, ousadia em contrariar a lógica mercantilista das relações humanas. Anos mais tarde, o Papa voltou a repetir a que talvez seja uma das suas declarações políticas mais forte: “Que a vossa bondade seja revolucionária.” Porque viver a bondade numa sociedade que idolatra o umbiguismo, a competição e o sucesso desenfreado é ir contra a corrente, é assumir um cariz revolucionário. Bondade gera bondade. Alegria provoca alegria. Afeto multiplica afeto. Não há contagens negativas nem cálculos premeditados. É a lógica do Amor de Deus que vai contra todos os cálculos, previsões e estimativas humanas.

Precisamos de espaços onde praticar a bondade. Precisamos de pessoas que exijam de nós essa prática da bondade. Precisamos de nos descentralizarmos e de olharmos para o Outro nos outros. Precisamos de procurar ativamente a bondade, de nos deixarmos guiar pela empatia, de provocarmos generosidade em quem nos rodeia. Precisamos de ver com o coração que limpa a negrura dos dias, que abraça as dores partilhadas, que nos ergue sempre em esperança. A escolha é nossa. A de procurar ativamente esta bondade que existe. A de criar gestos de bondade para multiplicar essa bondade. A de salvar o nosso mundo. A de fazer da palavra bondade um verbo na voz ativa e conjugado no presente do Indicativo. Peçamos ao Senhor a graça de contemplar a vida através da beleza da bondade: “Ensina-nos, Senhor, o que significa bondade, esta forma afetuosa de conduzir a realidade e as relações.”

A Fé é um superpoder

Reflexão para o mês de janeiro

«Coragem, minha filha! A tua fé te salvou!» (do Evangelho de São Mateus 9, 22)

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Feliz Ano Novo! Felizes 365 dias que nos serão dados viver!

O início de um novo ano pede-nos sempre uma reflexão acerca do ano que passou. Gosto de fazer este exercício de análise e, quando olho para trás, em particular para estes últimos quatro anos, só me consigo sentir grata. E motivo é muito simples: a minha escolha de vida, a minha Fé e o modo como a tenho vivido. A minha escolha de Fé trouxe-me até à pessoa do presente que sou hoje e com as pessoas que são o meu presente. E esta minha escolha pode não responder às minhas perguntas de por que razão a morte nos aconteceu há quatro anos, mas olhar para o que nos tem acontecido com olhos de Fé e de Esperança traz-me uma grande paz e uma imensa gratidão. Creio ser esta uma das mais importantes dádivas de se viver em Fé: experimentar a gratidão, saborear a bondade, viver a paz mesmo que, aos olhos do mundo, tal pareça impossível. E, acima de tudo, a Fé ajuda-nos a compreender como é que da morte renasce sempre a Vida. Sempre!

A Fé é uma construção pessoal. Primeiro, é sempre um desejo, uma vontade, um querer. Tem de existir esta disponibilidade, não pode ser imposta. Eu desejo conhecer Deus que me ama, mas que ainda não conheço, portanto, muitas vezes, é-me difícil retribuir esse mesmo amor. Eu tenho vontade de experimentar quem este Deus é, como é que Ele se manifesta, como é que Ele vive nas suas testemunhas. Eu quero fazer este caminho de busca e de construção. Este será assim o primeiro passo a dar numa caminhada de Fé. Por isso, a Fé implica uma relação pessoal, uma adesão. É um ato de confiança, é um caminhar sem garantias que implica a entrega das minhas fragilidades a um Deus as acolhe. A Fé é um processo que cresce com o risco, abrindo-nos caminho que é a nossa vida toda.

A gramática da Fé pede a sua conjugação no plural. O caminho que a fé nos mostra é sempre comunitário. Uma Fé genuinamente vivida só existe quando é partilhada, quando é espaço de bem comum com os outros e para os outros. A Fé implica relação, contacto, aliança. A Fé, para crescer, precisa de ser alimentada, nutrida, cuidada, caso contrário, ela torna-se mais vulnerável, mais frágil, mais sujeita à erosão do tempo e das incertezas. A Fé alimenta-se na oração, no quotidiano, na relação com os outros meus irmãos que são sempre o melhor reflexo de Deus.

Uma vida de Fé exige muita coragem e ousadia. Isso significa esforçarmo‐nos para não ficarmos paralisados pela presença da morte e da destruição que nos cercam hoje. Assim, ter Fé é deixarmo-nos ser socorridos. É não termos receio de nos entregarmos totalmente, tal como somos, com tudo o que somos. A Fé não é uma garantia, não é uma apólice de seguro. Ter fé não me vai impedir de assistir à morte daqueles que amo. Ter fé não me vai proteger de uma doença ou de um desaire profissional. Ter fé não me vai pagar as contas no final do mês. Mas ter Fé ajuda-me a superar todas estas dificuldades, a abraçá-las e a vivê-las de uma forma, a caminhar por entre vales tenebrosos guiada pela confiança que a Terra Prometida nos traz, acreditando que as dificuldades, as dores, os obstáculos não são o ponto final.

Então, como é que a Fé nos salva? De forma, de que modo ter Fé é garantia de salvação? A Fé salva-me na medida e que eu escolho que a minha Fé me salve. E a Fé que me salva depende de mim, isto é, da minha vontade em querer ser salva a partir da Fé que me salvará. Se não fosse a minha escolha de vida em Fé e pela Fé, não sei quem seria. Obviamente, é possível viver sem Fé, mas a minha história de vida tem um saldo inegavelmente feliz por causa da minha Fé. Sou uma pessoa melhor porque acredito que há uma Vida que nos espera não só aqui, mas sobretudo na Eternidade. Aceito com paz as minhas fragilidades porque sei que há um Deus que as acolhe. Sinto-me mais serena perante os obstáculos porque sei que são passageiros. Ter Fé ajuda-me a queixar-me menos do que me acontece e a desprezar qualquer revolta ou raiva que com facilidade se apegam ao coração humano. A minha Fé faz-me saber o que não é verificável pela racionalidade e ajuda-me a saber viver com isso. A Fé é simultaneamente entendimento e mistério, mistério e entendimento. Quando a razão já não consegue explicar os acontecimentos, então é nesse espaço que a minha Fé atua e me faz viver. Ter Fé ensina-me que é possível viver numa Irmandade feliz, que há uma mão que nos segura, que há sempre uma Voz que canta contigo a tua canção.

Quem mergulha numa vida de Fé, nunca mais deseja voltar ao superficial. Foi o que aconteceu comigo… Quem se deixa levar pela perspetiva de ler a vida como dom, nunca mais se deixa contaminar pela ingratidão e pela futilidade. A Fé é o meu superpoder! Reveste-me de fortaleza, aumenta a minha imunidade, protege-me do caos e do egoísmo. Mesmo quando ela brilha de forma muito ténue na escuridão, muito frágil e, muitas vezes, prestes a apagar-se…

O meu desejo para este Ano novo cheio de dias por inaugurar é que a minha vida possa ser sempre um testemunho deste meu superpoder. Que através das minhas palavras, ações, escolhas e comportamentos, eu seja capaz de personificar aquilo em que acredito. Que a minha fé seja sempre “uma boa notícia”, que é o sentido literal da palavra “Evangelho”. Que de mim se possam lembrar como uma mulher de Fé. Que eu possa anunciar com a minha vida como sou feliz com as minhas escolhas. “Seja o que for, será bom. É tudo.” Termino com estes versos do poeta maior, Daniel Faria. São o espelho do que é viver em Fé e pela Fé todos os dias. Que seja este o nosso mantra diário ao longo deste novo ano!

Adventar

Reflexão para o mês de dezembro

“Espera no Senhor. Sê forte e corajoso e espera no Senhor.” (Salmo 27)

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

A história da fotografia que acompanha este texto é muito simples. Colónia, Alemanha. JMJ 2005. Em agosto, num dia particularmente quente com temperaturas invulgares para aquela cidade. Durante mais de cinco horas, estivemos na praça em frente à majestosa catedral de Colónia à espera que o Papa Bento XVI chegasse para saudar os peregrinos. As expectativas eram grandes. As horas iam passando, o calor aumentando, as conversas fluíam, os risos intensificavam-se. Estávamos ativamente à espera. Numa espera comunitária, sem pressas nem ansiedades porque sabíamos que o Papa estava a chegar. Quem já fez a experiência de participar numas JMJ sabe que uma das atividades previstas é mesmo esta… estar à espera do Papa! Percorrem-se lugares, escolhem-se os melhores sítios, combinam-se estratégias. Tudo para, simplesmente, ver o Papa. Para quem está de fora deste tipo de eventos religiosos, isto pode parecer algo “estranho” e uma perda de tempo, mas para nós cristãos esta espera é sempre significativa. Esperamos aquele que para nós é o representante de Jesus no meio de nós.

Ao deparar-me de novo com esta fotografia que representa a nossa espera, veio-me à ideia este conceito de espera cristã, conceito este que marca de forma evidente este período que hoje iniciamos – o Advento. O tempo do Advento é, por excelência, o tempo da espera. É o tempo privilegiado da preparação, do cuidado, da atenção. É o tempo do silêncio que fecunda, do olhar que procura a beleza, da paciência que se torna ação. Nestes dias que antecedem o Natal, a função do cristão é essa mesma – a de adventar.

Adventar. Adventar é esperar o que se anuncia, aguardar, com fé e esperança, o que está para vir e ver. Somos pessoas em advento, em preparação, em caminho. A nossa vida é uma espera contínua, daquilo que há de vir, do que há de acontecer, do que viveremos na Terra que nos está prometida para toda a Eternidade.

Muitas vezes, associamos esta espera a algo que nos é difícil de suportar, um vazio que se instala, uma ausência que corrói. Mas o tempo do Advento que nos é dado viver ressignifica esta noção de espera. É este o papel de Deus nas nossas vidas. Dar um novo significado à nossa história, ao que nos acontece. Dar uma nova possibilidade de caminho às nossas inquietações e incompreensões.

Adventar é esperar. E esperar não é passividade, não é impaciência, não é ansiedade. Esperar em Deus é dispormos do tempo propício para a profundidade, para abandonar a superficialidade, o imediato que tantas vezes nos faz viver de forma incompleta. Há uma dinâmica própria na espera cristã que não se enquadra nas dinâmicas deste mundo. Por isso, o esperar de um cristão é, muitas vezes, mal entendido e aceite. Esta espera cristã só é plenamente compreendida na disponibilidade interior e na confiança. Esta espera enche-se da riqueza maior que é Deus que vem até nós. Aquele que nos ama, ele próprio já nos espera. E sabermo-nos esperados por ele dá-nos a paz de que precisamos. Por isso, esta espera cristã fortalece-nos, torna-nos mais comprometidos com a vida que nos vai acontecendo, estimula a nossa criatividade, promove a nossa empatia, alarga-nos horizontes, liberta-nos do peso do que é concreto.

Neste Advento que hoje iniciamos, desafiemo-nos a aprender a esperar mais e melhor. Esperar implica confiança. No que nos espera. Nos que amamos. No desconhecido. No inesperado. No que não controlamos. Mas saber que há um Deus que nos espera é saber que essa espera vem de Deus. A nossa vida faz-se de esperas. A nossa vida está cheia de “adventos”. Precisamos do exercício da espera, escolhendo boicotar a ideologia da pressa, da inquietação, do utilitarismo.

Adventar não é passividade nem desistência. É ação, procura, entendimento. Esperamos na alegria e na vigilância. Esperamos com abertura e disponibilidade.

Na palavra “esperança” encontramos a palavra “espera”. E isto não é um mero acaso linguístico. Quem espera, tem de esperar com esperança. Porque esperar é sempre desejar o que está para vir. Esperar confirma a nossa esperança. Quem espera, alcança porque se deixa acreditar. Num futuro maior, numa alegria multiplicada, num fruto nascido de uma semente planta. Exercitamos a esperança quando escolhemos esperar e, assim, passamos a olhar o presente e o futuro com outra certeza no meio das incertezas.

Advento. Há uma festa que estamos todos a preparar. Uma festa a ser vivida já na antecipação de um nascimento feliz. Diz a sabedoria popular que o melhor da festa é esperar por ela. Pois é este o caminho que nós cristãos somos convidados a percorrer. Adventar. Saber esperar. Saber preparar aquela festa que nasce em mim com o nascimento d’Aquele que faz ser Luz. Adventar. Que saibamos conjugar este verbo nas ações dos nossos dias. Que nos assumamos como cristãos de advento, comprometidos com o caminho, empáticos com os irmãos, anunciadores de esperança.