Arquivo da categoria: Reflexão Mensal

No primeiro dia…

Reflexão para o mês de março de 2023

Que queres que te faça?

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Jesus parou e mandou que lho trouxessem. Quando o cego se aproximou, perguntou-lhe: «Que queres que te faça?» Respondeu: «Senhor, que eu veja!»” (Evangelho segundo São Lucas – Lc 18, 40-41)

O episódio do cego de Jericó é um dos muitos relatos de cura descritos nos Evangelhos. Estas recuperações milagrosas narradas pelos diferentes evangelistas nunca são apenas um mero tratamento físico que é dado aos vários doentes que se apresentam diante de Jesus. Estas curas vão para além disso e ultrapassam a noção redutora de biologia. Estas curas são sempre muito mais emocionais do que somente físicas. Cuidando-se do interior dá-se um novo impulso ao que é exterior.

Nesta passagem, o enfoque é dado à cegueira. Nos Evangelhos, a cegueira tem um significado espesso que importa acentuar. Esta cegueira refere-se, sobretudo, à parte emocional, ao bloqueio afetivo que, tantas vezes, nos impede de ver e, consequentemente, ser.  Quando os olhos da alma estão fechados, não conseguimos vislumbrar o que Deus tem para nos mostrar. Por conseguinte, não conseguimos ver a outra margem nem antecipar uma passagem. Só conseguimos ver o imperfeito, o erro, o inconveniente. Como é possível, então, começarmos realmente a ver? Ultrapassando esta cegueira emocional que consiste em não esconder o desejo de Deus que habita em nós e em não desprezar a nossa vontade de caminhar ao encontro de uma Vida maior.

Nos nossos dias, estamos, muitas vezes, ameaçados pela cegueira do conformismo, da intolerância, da hipocrisia, do preconceito. Vivemos dominados pela cegueira da pressa que a sociedade nos impõe e pelo auto-centralismo. É preciso permitir que a Boa-Nova de Jesus nos retire as vendas e nos mostre o caminho de luz, onde poderemos ser homens e mulheres de olhos grandes que contemplam a vida na sua vulnerabilidade, profundidade e existência. Todos nós precisamos desta cura do olhar. Todos nós precisamos que Jesus nos faça ver de um modo diferente, precisamos que Ele nos permita aceder a uma visão nova da realidade. Um modo de entender para além dos preconceitos, das parcialidades, dos julgamentos.

Em várias passagens do Evangelho, encontramos a importância do olhar, do ver, do observar. Deste ver com o coração, do aprender a ver para além das evidências, do ver o que não se vê. E não se trata de nenhum truque mágico, pois se assim fosse estaria ao nível do impossível, do irrealizável, do distante. A perspetiva com que vemos a vida é determinante para a sabermos viver. Jesus ensina-nos a ver a vida para a vida viver. Um olhar novo, puro e límpido faz-nos ser de forma mais plena, mais íntegra, mais contemplativa. Aprender a ver de uma nova perspetiva traz-nos uma maior espiritualidade para a nossa vida quotidiana. Faz-nos ler os acontecimentos diários com uma luz diferente, com uma confiança serena, com uma certeza de um Amor sempre maior.

Aparentemente banal, mas inegavelmente extraordinária é a questão que Jesus coloca àquele cego. “O que queres que te faça?”. Esta pergunta é também para nós, hoje, no nosso mundo, nos nossos quotidianos. “O que queres que te faça?”. Sim, porque a escolha é sempre nossa. Deus nunca se impõe. Ele apenas se disponibiliza. Sou eu que digo sim à construção de uma relação plena, amadurecida e trabalhada com Ele. “O que queres que eu te faça?”. Responder a esta questão implica-nos, traz-nos responsabilidades, faz-nos assumir o leme da nossa embarcação. Ao dar uma resposta, eu penso-me, eu vejo-me, eu conheço-me e, assim, vou crescendo na minha relação de fé adulta e construída. “Uma pergunta é uma máquina de fazer ver.”, diz o Cardeal Tolentino. De cada vez que nos questionamos, de cada vez que procuramos saber mais, de cada vez que nos expomos ao pensar, estamos a encontrar uma nova forma de ver, de conhecer, de viver. As perguntas sobre a vida não nos livram de todas as dúvidas nem nos fazem encontrar todas as repostas que desejaríamos, de imediato, obter. Mas são estas questões que nos encaminham, que nos despertam, que nos abrem horizontes. A vida é sempre mais feita de perguntas do que de respostas precisamente porque cada dia é um momento de temporalidade e de infinito.

A resposta daquele cego é a nossa resposta. O seu pedido é o nosso pedido, é o grito de uma vida nova, é expressão de um desejo de um começo novo dirigido a Deus. E este grito lançado traz consigo novas questões. Querer ver implica sempre confiar no que não se vê para, então, se conseguir ver. E o que é que eu escolho ver? Como perspetivo eu a minha realidade, o meu dia-a-dia, aquilo que eu sou e como sou? Ver implica aprendizagem, construção, busca.

Aquele cego em Jericó pediu a Jesus, “Senhor, que eu veja”. Que seja também este o nosso pedido. Senhor, que eu te veja sobretudo quando a tempestade aparece, quando o medo me domina, quando a morte se instala. Senhor, que eu veja a tua Luz que não se apaga e que brilha desde o início da vida. Senhor, que eu te procure como te procurou aquele cego, mesmo sem te conseguir ver.

“Senhor, que eu veja”. Ensina-me a ver, a saber ver, a aceitar o que estou a ver, a ver na tua presença e com a tua presença. Ajuda-me a compreender que tudo o que me acontece faz parte do meu processo de vida, da minha história, da minha identidade. Senhor, que eu saiba viver através do que me é dado acontecer. Que eu te encontre sempre no que me acontece. Que eu veja a vida dinâmica, orgânica, edificada em ti.

“Senhor, que eu veja.” É este o pedido diário de cada cristão. Uma prece para todos os dias. Para todos os dias em que a vida acontece, recomeça, segue viagem. Senhor, que eu te veja porque tu tornas a minha vida maior, tu amplias as minhas possibilidades, tu acolhes os meus desafios. Tu fazes da minha vida uma história de amor, uma viagem interior, um anúncio de possibilidades infinitas.

No primeiro dia…

Reflexão para o mês de fevereiro de 2023

Uma Luz que não se apaga!

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

“Assim deve brilhar a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai que está nos Céus.” (Evangelho segundo São Mateus – Mt 5, 16)

“Estórias Abensonhadas” é o título de um livro do criador de palavras e escritor Mia Couto. Considero esta expressão muito feliz e muito verdadeira. Somos, de facto, este misto de bênçãos e de sonhos, somos “abensonhados”. E a nossa vida, com todas as suas alegrias e tristezas, avanços e recuos, risos e choros, é um conjunto de histórias que reflete esta inegável variedade. Em todos os tempos, Deus escolhe-nos, chama-nos pelo nosso nome e conhece quem somos.

Nesta passagem do Evangelho de São Mateus, Jesus reforça-nos esta bênção. Somos feitos de Luz. Jesus diz-nos que nós já somos esta Luz. E Ele confia em nós, nunca o deixando de o fazer em momento algum. Jesus encoraja-nos a tomar consciência disso mesmo, ao procurarmos ser e viver essa Luz. Ser esta luz através das nossas obras, dos nossos movimentos, das nossas idas e vindas. Todos nós cristãos somos chamados a agir de um modo comprometido. Jesus convida-nos a segui-lo e espera que este nosso seguimento se manifeste num estilo de vida. Anunciamos Jesus através daquilo que somos, de quem somos, daquilo que vivemos e escolhemos.

Por isso, não pode existir um cristianismo que não esteja envolvido nos desafios atuais que a nossa sociedade apresenta. O cristão deve estar onde a dignidade é ameaçada, onde a injustiça quer dominar, onde os irmãos são rejeitados. Ser cristão não é nunca viver à parte. Ser cristão é fazer parte da parte, de todas as partes. O cristianismo autêntico, real, concreto vive-se, mostra-se, apresenta-se. Por isso, a vida do cristão é sempre a sua primeira mensagem. O cristão humaniza os ambientes, os contextos em que habita. O cristão torna visível, com a sua vida, a profundidade das coisas, o mistério de Deus.

Todos nós temos essa luz que atrai quem nos rodeia. Felizmente, não faltam exemplos de pessoas que fazem da sua vida um hino à bondade, ao altruísmo, à relação. Mas aqueles que acreditam que esta nossa luz vem de Deus, sabem que esta luz é mais verdadeira, mais universal, mais comunitária. A luz do cristão nunca brilha sozinha. A luz do crente nunca existe no singular. Não é a minha luz, é a luz de Deus para o mundo. Através do meu caminho, das minhas escolhas, eu deixo que Deus venha ao mundo. Deus diz-se presente no mundo atual através daquilo que o cristão é. Por isso, a nossa tarefa enquanto discípulos de Jesus é deixar transparecer essa luz que em nós habita, é ser sinal da sua presença divina no meio dos homens.

A missão do cristão é manter esta luz acesa quando, tantas vezes, é mais fácil diminuí-la ou até mesmo apagá-la. E não precisamos de culpar os outros, as circunstâncias, o mundo. A responsabilidade é, muitas vezes, apenas nossa. Quando deixamos de falar em esperança, quando vivemos a indiferença, quando não sabemos ser gratos, quando silenciamos a vontade de pertencer, quando fazemos cálculos em vez de amar. De cada vez que esta luz se apaga, deixamos que a aridez da nossa alma cresça. Tornamo-nos profissionais da tristeza, da negatividade, do desespero. Tornamo-nos menos quando não nos permitimos ser mais. Assim, o maior projeto humano é não deixar que o mundo, tantas vezes agreste, nos seque, é não permitir que os incêndios quotidianos nos queimem a vontade de sonhar, é não possibilitar que o fim da linha faça parte do nosso desenho.

Nesta passagem do Evangelho, não é por acaso que Jesus refere, quase em simultâneo, luz e mundo. Isto acontece porque não se pode dissociar estas duas realidades. Um cristão precisa do mundo e Deus desafia-nos a abraçá-lo, a acolher as suas circunstâncias e a viver de um modo íntegro neste lugar de tanta contradição. O cristão não é uma realidade abstrata ou inconcreta. O cristão é chamado a exercer, com a sua luz, um poder modificador. Este é o maior tesouro que Deus nos dá. Podermos ser, com Ele e por Ele, Luz para um mundo novo. Por isso, devemos perguntar-nos: o que faço com esta luz que me é dada? Como pode a minha vida refletir esta luz que me foi oferecida?

A nossa luz brilha sempre que os nossos olhos não se fecham, sempre que continuamos a caminhar até à Terra Prometida, sempre que decidimos seguir viagem. Esta Luz é vida que vive em cada dia nosso. Vivermos em relação é condição fundamental para descobrirmos em nós luzes que levávamos e não víamos. Todos temos esta luz. E temos escolhas. Podemos esconder esta luz e fingir que não é nosso o papel de fazer do mundo um lugar de gratidão. Ou podemos revelar esta luz e iluminar os dias que nos são dados, mostrando ao mundo como é possível fazer caminho em paz, fraternidade, comunidade.

Deus chama-nos a todos a sermos esta luz, sem condições ou restrições. A todos nos é oferecida esta possibilidade, a de sermos luz. É desafiante? Muito. É exigente? Tantas vezes. É caminho de vida? Sempre. A essencialidade do nosso ser humano só se completa quando aceitamos dar a vida pela vida desta luz. É sempre dando que recebemos. É sempre iluminando que somos iluminados. Que possamos ser, em cada dia, a Luz que vem de Deus, esta luz que nunca se apaga em nós. Que a nossa Luz brilhe sempre entre nós.

No primeiro dia

Reflexão para o mês de janeiro de 2023

A melhor parte!

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

“Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada’” (Evangelho segundo São Lucas – Lc 10, 41-42)

Agora que o ano civil chegou ao seu final, costuma ser este o tempo propício para a sociedade fazer os seus balanços e avaliações, idealizando e enumerando projetos futuros. É também por estes dias que muito se fala em escolhas e opções. Em várias etapas da nossa vida somos confrontados com escolhas importantes. A escolha de um curso, de amizades e amores, de um sítio para viver. Também nos deparamos com outras escolhas bem mais banais, a escolha de uma peça de roupa para usar numa festa, a escolha de um filme para ver, a escolha da ementa diária. A sociedade prepara-nos – ou tenta preparar-nos – para sabermos fazer as escolhas mais compensadoras, mais enriquecedoras, em que cada um sai sempre a ganhar. Há cursos para tudo, para que nada falhe, ninguém se confronte com o erro, tudo seja perfeito. Ora, acontece que a vida tem sempre formas de nos dizer que nós somos um processo, um caminho feito de avanços e recuos e que é tantas vezes na fragilidade e no erro que encontramos a possibilidade de descobrir o nosso ser, de saber quem somos.

No Evangelho de Lucas, quando se reúne com as irmãs Marta e Maria, Jesus menciona “a melhor parte”. O que significa escolher a “melhor parte”? Parece óbvio que todos nós aspiramos a esta escolha, a optar pela melhor parte. Ninguém quererá, com certeza, escolher a pior parte. Contudo, muitas vezes, a pior parte acaba por ser mesmo a nossa escolha, precisamente porque não sabemos bem o que significa, para nós, a “melhor parte”. Ao contrário do que a sociedade nos diz, escolher a melhor parte não é querer ter mais, querer comprar mais, querer ser superior aos outros. Escolher a melhor parte implica uma visão mais humanizada, mais empática, mais comunitária. Escolher a melhor parte é, tantas vezes, fazer menos, dizer menos, ser o último, aparentemente escolher a perda, optar pelo que é mais fraco, mais frágil, mais simples. Jesus faz-nos uma promessa, dá-nos uma esperança que não morre ao dizer-nos que “a melhor parte” nunca nos será tirada porque é eterna, porque é caminho infinito, porque não está sujeita à sucessão dos dias e das horas nem à erosão do material. Por isso, a melhor parte raramente será a do sucesso, a das vitórias, a do materialismo, a dos prémios. A melhor parte será sempre aquela em que eu consigo ser mais comunitário, mais presente, mais irmão. A melhor parte é sempre uma possibilidade em cada dia que nos é dado.

Nesta passagem do Evangelho, ao referir-se à “melhor parte”, Jesus chama também a atenção para a nossa essencialidade, para a importância que damos à nossa dimensão espiritual. Estaremos nós ocupados com esta nossa essência? O que fazemos para cuidar do nosso lado espiritual? Como tratamos daquela nossa dimensão que tantas vezes permanece oculta e é aparentemente ausente de valor? Que espaço damos ao cuidado para com aquela nossa vertente que não se encaixa nos estudos, nas profissões, nos sucessos sociais? Como cuido eu de mim quando não sou a profissional, a mãe, a irmã, a dona de casa? Esta passagem do Evangelho de Lucas tem sido, muitas vezes, injustamente mal interpretada, pois tem sido vista numa dualidade antagónica entre a boa pessoa, Maria, e a outra a quem Jesus repreende, Marta. Ou então, entre o favorecimento dado à oração em detrimento da vida ativa, como se fosse possível estancar estas duas vertentes, a da vida orante e a da vida mundana. Na nossa comunidade, nós sempre procuramos que essa separação entre a nossa vida de prática religiosa e a nossa vida como cidadãos do mundo não existisse. Nunca nos vimos como umas pessoas ao fim de semana (na catequese, nos encontros, nas eucaristias) e outras durante a semana (profissionais, membros de uma família, cidadão). Somos sempre um todo, somos um conjunto de tudo o que vamos escolhendo, vivendo, sentindo. O ser humano acaba por sofrer porque vive precisamente esta incoerência, porque se compartimenta em dimensões múltiplas, porque é um quando está a trabalhar, porque é de outra forma quando está em família, porque é ainda de uma outra maneira quando vive os seus ditos tempos livres. Somos todos muito mais completos e verdadeiros se escolhermos ser os mesmos em todas as dimensões da nossa vida. Ser cristão é, antes de mais, querer ser uma testemunha de Cristo, um mensageiro da sua Palavra de Amor, um anunciador de que a Vida é sempre mais. Ser cristão é escolher sempre a melhor parte, o que implica trazer a vida de Jesus para a nossa própria vida. Ser cristão é ser coerente todos os dias. Só assim encontraremos a tal “melhor parte”.

Jesus não condena a irmã que está atarefada a preparar a casa para o receber, mas chama a atenção para o excesso de preocupação que ela parece sentir. Quantas vezes isto nos acontece! Preocupamo-nos tanto em ter tudo preparado, tudo perfeito, para que ninguém nos possa criticar ou para que não haja nenhuma falha e nem nos apercebemos que o momento pelo qual aguardávamos já está agora a acontecer. E acabamos por perder a oportunidade de o viver em serenidade. Saber escolher a melhor parte é sabermos estar disponíveis para o encontro, é sabermos estarmos próximos, é relativizar as pressas e as preocupações, é sentir quando é importante estar, simplesmente estar. Tudo na vida de Jesus nos mostra que não é na perfeição que a vida nasce, não é quando temos tudo preparado que a vida acontece, não é quando dominamos as circunstâncias que a vida se faz vida em abundância. Há que saber acolher e aceitar o que a vida nos dá, o que não é perfeito, o que não dominamos, o que nos parece diferente do que idealizamos, pois é tantas vezes nesses momentos que verdadeiramente encontramos o que andávamos à procura. A tal “melhor parte”. Aquilo a que podemos chamar a nossa sorte grande.

A melhor parte. Saber estar presente. Saber estar perto. Acolher este Jesus Salvador que vem até nós, sem se impor, sem se tornar dominador. Somos nós que fazemos esta escolha. É sempre nossa a liberdade de o escolhermos. Somos nós que lhe damos espaço na nossa vida para Ele nascer a cada dia connosco. Somos nós que abrimos os olhos do nosso coração para o vermos nascer em nós e por nós. E para, como Maria, nos sentarmos com Ele e sentirmos que, com Ele, viveremos sempre a melhor parte. A nossa melhor parte. A nossa sorte grande.

No primeiro dia…

Reflexão para o mês de dezembro de 2022

Enquanto houver estrada para andar…

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

“Uma voz clama no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas’” (Evangelho segundo São Mateus – Mt 3, 3)

A época em que estamos a viver é sinónimo de azafama, de agitação, do “não deixes para ontem o que podes fazer hoje”. A sociedade grita-nos que o tempo urge para sermos os mais felizes, os mais ricos, os mais importantes. Há um lema que nos é imposto que é o de evitar derrotas e sermos sempre vencedores. A corrente da movimentação faz com que grande parte da sociedade viva a ansiedade de querer tudo, de experimentar tudo, de preencher todas as horas com atividades e ocupações que sejam sempre e só lucrativas. Pede-nos ainda que fujamos do sofrimento e que finjamos que a morte só acontece aos outros. Pouco espaço parece existir para a simplicidade, para o silêncio, para o gratuito. Alguém que esteja quieto a contemplar a vida é logo questionado se está triste. Tantos se espantam quando veem outros a escolher não correr atrás de carreiras cheias de sucesso e de dinheiro, mas que lhes roubam o tempo de estar consigo e com quem mais amam. Hoje vive-se sempre com pressa, com horários, com prazos, com objetivos só mundanos. Hoje o Homem vive como se fosse uma máquina feita para o sucesso. Vive para o lucro e com o lucro. Escolhe em função do resultado final que só pode ser um: ganhar.

É neste contexto que os cristãos aparecem, tantas vezes, como aqueles que poucos entendem, como aqueles que não sabem aproveitar a vida de acordo com os modelos que a sociedade quer impor. O cristão autêntico é aquele que, muitas vezes, anda na contra-corrente. A mensagem de Jesus Cristo é anti-pressa, anti-barulho, anti-lucro. É a mensagem de um Homem que veio ao Mundo anunciar que a Vida só é vida em abundância quando é vivida na simplicidade, na gratidão, no encontro. Sem trocas, sem contratos, sem lucros, sem lógicas de mercado. É um modo de viver que implica a maior das escolhas: amar. Só amar. No seu tempo, Jesus morreu porque a vida que anunciava era incompatível com a vida da sociedade em que escolheu viver. Hoje, Jesus continua a morrer de cada vez que os homens se recusam a escolher o amor, o outro, a comunidade. Por isso, precisamos tanto do Natal, precisamos que Jesus venha até nós e nos recorde que é sempre possível voltarmos a escolher o amor de novo. Por isso, precisamos todos de voltar a nascer com aquele menino em Belém para nos lembrarmos que a vida é simplicidade.

Acabamos de iniciar o tempo do Advento. O Advento surge como uma época de preparação. Enfeitam-se as casas, iluminam-se as ruas, cuidam-se das ementas natalícias, procuram-se as melhores ofertas, vemos os filmes familiares que a televisão nos proporciona, fazemos listas de tarefas para cumprir. Toda a sociedade se prepara para a grande festa natalícia. Nada pode falhar ou faltar. Há mais de dois mil anos, usando as palavras do profeta Isaías, João Batista anunciava que Deus precisava que os homens preparassem caminho, fizessem estrada, aplanassem as suas veredas. Mas este caminho que João Batista lembrava que todos temos de preparar não é a via das compras, da pressa, do imediato, do consumismo. É o meu caminho. É o teu caminho. É o caminho que nos leva à Vida Eterna, é o caminho que nos direciona para um Deus que insiste, todos os anos, em nascer em nós e para nós. É um caminho que traz tanto trabalho como leveza, que apresenta tantas dúvidas como certezas, que tem tantas curvas como retas, que é tão solitário como comunitário. Esse caminho é a minha Vida. É a tua Vida. E este caminho é sempre uma escolha, um trabalho que eu posso fazer, uma estrada para andar.

Deus vem para que nós possamos ser, para que a Humanidade tenha esse toque divino que nos eterniza. Por isso, cada um de nós é sempre o lugar onde Deus escolheu estar, a nossa estrada é o espaço onde Deus caminha connosco, a nossa vida é a manifestação de um Deus que nos nasce. Deus é connosco. Não estamos sozinhos. Mesmo quando não o queremos na nossa estrada, ele insiste em aparecer sob a forma de uma palavra que lemos, de um amigo que encontramos, de um abraço que recebemos, de uma música que cantamos. E assim Deus continua a visitar-nos através daquilo que nos é próximo. É por isto que se faz Natal.

“Ao lado do teu amigo, nenhum caminho será longo.” Este provérbio japonês, que serviu de título a um livro magnífico do Cardeal Tolentino, põe em evidência a essência comunitária do caminho. Quando caminhamos juntos, quando as nossas estradas são partilhadas, tudo fica mais simples, mais completo, mais fácil, mais suportável. Assim é Deus em nós. Acreditando na sua presença, sentindo o seu amor, vamos seguindo neste caminho que é a vida. Com Ele e por Ele, o nosso coração sente que a vida pode ser sempre mais, que a estrada segue, que os trilhos se desenham.

Por isso, nesta caminhada de Advento, reflito nas questões que se me impõem. Que caminho é este que eu quero preparar? A que me quero eu dedicar? Que estrada estou eu a construir? Com quem quero eu partilhar este meu caminho? Que obstáculos devo eu tentar retirar das minhas veredas? A vida é um conjunto de questões, de interrogações, de avanços e recuos. Só o Amor é inquestionável. E eu avanço na medida em que eu confio e assim vou caminhando. Sempre. Mais depressa ou mais lentamente. Eu sigo. Seguimos. Nesta estrada que escolhemos. Numa estrada clara.

No primeiro dia…

Reflexão para o mês de novembro de 2022

Vaidade das riquezas

Texto de Jorge Ferreira, Comunidade Estrada Clara (este texto foi escrito pelo Jorge em novembro de 2008)

“O homem que vive na opulência não permanecerá. Esta é a sorte dos que confiam em si mesmos. Não te preocupes, se alguém enriquece, se aumenta a fortuna da sua casa. Quando morrer, nada levará consigo; a sua fortuna não há-de acompanhá-lo.”  Salmo 49

Em tempo de crise, as palavras proféticas da Bíblia gritam-nos com mais força. Crise que não é uma doença nem uma catástrofe natural diante das quais somos quase impotentes, mas uma crise provocada por homens. Homens que sem escrúpulos fazem mal aos seus semelhantes. Há dias, na SIC Notícias, um comentador dizia que a irresponsabilidade dos especuladores da bolsa estava ao nível da irresponsabilidade de Hitler, Mao Tse ou Pol Pot. Homens estes que queriam ter mais dinheiro e mais poder, mais dinheiro e mais lucro, mais lucro e mais dinheiro, mais dinheiro e mais dinheiro. Perderam. E com eles todos. E ao que parece todo o mundo, em efeito dominó, como dizem os economistas.

Penso que toda esta busca incessante e incansável que se faz pelo dinheiro é uma ideia confusa que se generalizou em todas as pessoas de que o dinheiro traz felicidade ou nos põe perto dela. Querer ter mais dinheiro é normal e saudável. Querer ter muito dinheiro, acumular riqueza, possuir tudo à volta até onde o olhar alcança é doença. A árvore do fruto proibido do Éden lembra-nos isso: não nos é dado ter tudo nem saber tudo. O homem não soube ver quão maravilhoso era tudo à volta e preferiu aquele fruto. Hoje faz-se o mesmo. A felicidade não vem de termos mais dinheiro, mas vem na medida em que nos realizamos. Não valemos pelo que temos dentro dos bolsos, mas pelo que temos dentro da cabeça. Somos felizes na medida em que percebemos o que se passa à nossa volta, na medida em que compreendemos os nossos irmãos, os nossos amigos, o mundo, o cosmos. Não se chega a este conhecimento preocupados em ganhar dinheiro nem a pensar no carro que vamos comprar amanhã. A felicidade é um estado sereno. Quieto. Calmo. A felicidade não faz barulho. Não é um mero divertimento. É um estado interior. Parece-me que a felicidade estará ao nível daquilo a Abraham Maslow chama de autorrealização. Na teoria da hierarquia das necessidades humanas que ele apresenta em forma de pirâmide com cinco níveis, a autorrealização é o nível mais elevado e “depende da realização e cumprimentos máximos dos nossos potenciais, talentos e capacidades. Se uma pessoa não estiver autorrealizada, ficará impaciente, frustrada e descontente”. Assim estava o Jovem rico que Jesus encontrou um dia. Apesar da sua grande fortuna e de cumprir todos os mandamentos, como dizia, sentia-se insatisfeito. Jesus disse-lhe como deveria alcançar a felicidade, mas ele não foi capaz de a encontrar “porque possuía muitos bens”. Diz-nos também Maslow que “independentemente das nossas ocupações e interesses podemos maximizar as habilidades pessoais e atingir o desenvolvimento completo da personalidade. A autorrealização não é limitada a celebridades intelectuais e criativas, como os músicos, artistas, astrofísicos. O importante é desenvolver os seus próprios potenciais no mais alto nível possível, qualquer que seja a missão escolhida”. Uma das diversas condições para que possamos sentirmo-nos realizados que mais aprecio é esta: “Estar livre de restrições impostas pela sociedade e por nós mesmos”. Quais são as restrições que a sociedade nos impõe? Como é que eu me livro destas restrições? Como é que eu descubro que tenho uma vontade, um gosto, uma ideia se estou obcecado pela moda, pela fama, pelas tecnologias, pelo dinheiro, pelo bem-estar material? E já agora: o que é que me faz rir? Rio-me com aquilo que os outros se riem? O que é que de mim quero mostrar aos outros? O que é que os outros vêm em mim? Conhecermo-nos e pensarmo-nos chama a felicidade a nós. Ter um telemóvel que a sociedade nos impõe não chama. Nas Forças de Assinatura de Martin Seligman não é mencionado o dinheiro, ter muito ou pouco. Pelo contrário ter muito dinheiro é normalmente sinal de muitas preocupações. “A boa vida consiste em obter a felicidade através da utilização das suas forças de assinatura nos principais domínios da vida. Uma vida com significado adiciona mais um componente: utilizar estas mesmas forças para promover o conhecimento, o poder ou a bondade.”(Martim Seligman). A descoberta das nossas forças e a sua utilização no dia-a-dia pressupõem estarmos livres de restrições, regras e modelos que nada têm a ver connosco, nada nos acrescentam e nada valem. Maslow diz que a autorrealização exige coragem. Eu digo que é preciso coragem para, por vezes, tomarmos certas decisões, tais como abandonarmos um curso que não nos interessa, um(a) namorado(a) que não nos completa, a comida que nos faz mal, o telemóvel, as modas, as manias, as mentiras, a cama, a televisão, o trânsito, o computador se preciso for para sermos nós mesmos, para sermos felizes. “O processo de autorrealização exige esforço, disciplina e autocontrole. Assim, para muitas pessoas pode parecer mais fácil e seguro aceitar a vida como ela é, em vez de procurar novos desafios. As pessoas realizadas testam-se a si mesmas constantemente, abandonando rotinas seguras, comportamentos e atitudes familiares”. (Maslow)

 “Estou interessada em fazer filmes que desafiem as pessoas a ser protagonistas das suas próprias vidas.” disse Susan Sarandon há dias de passagem por Lisboa. Ela descobriu que todos podemos conduzir e nossa vida. Ela não acha que só os artistas ou pessoas com dinheiro o podem fazer. Por fim, podemos especular se os especuladores da bolsa que especularam demais e com o dinheiro dos outros se sentirão felizes e realizados. Ou especulados!

“Uma vida cheia de significado é aquela que se junta a algo maior do que nós” (Martim Seligman)

No primeiro dia…

Reflexão para o mês de outubro de 2022

The sky is the limit

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

“Afeiçoai-vos às coisas do alto e não às coisas da terra.” (da Carta aos Colossences 3, 2)

Há alguns anos, numa entrevista dada ao jornal “Público”, o cardeal Tolentino Mendonça afirmou: “Não conseguimos encontrar sentido na vida com os olhos colados aos sapatos. Precisamos de infinito, nem que seja de um fragmento de infinito.” Guardei sempre como um sinal de alerta pessoal estas suas palavras e, quando leio esta passagem da carta de São Paulo aos Colossenses que serve de ponto de partida para a nossa reflexão mensal, relembro a minha promessa de procurar sempre esse fragmento de infinito que se encontra no alto, naquilo que é elevado.

Os anos passaram, mas estas afirmações do nosso cardeal poeta maior continuam a ser atuais. De facto, vivemos demasiadamente com os pés no chão, a olhar o lugar que pisamos, os sítios que percorremos. Infelizmente, esta é uma tendência muito nossa, muito humana, a de viver com os olhos no chão, naquilo que é pequenino, no que é limitado. Entendemos, muitas vezes, as nossas ações como sendo de curto alcance, de estreiteza de vistas, de finitudes já estabelecidas. Tudo isto tolda-nos e impede-nos de encontrar o que está mais além, o que de mais infinito temos para alcançar e viver.

Quando percorremos as ruas das cidades, no frenesim do nosso dia-a-dia, o habitual é mesmo este, o de nos vermos apressados, agitados, caminhantes de olhos colados aos sapatos. Ou então de olhos colados aos nossos gadgets digitais que nos alienam para um mundo virtual e, por isso, romanticamente distante, ausente e irreal. Com tanto a acontecer à nossa volta, por que razão serão os nossos sapatos a receber o privilégio do nosso olhar? Com tanto a observar e a contemplar diante dos nossos olhos, por que motivo damos primazia ao chão?

Há uma sede inegável de infinito, o ser humano é, por natureza, um ser insatisfeito com a mediocridade do dia-a-dia, do que já é sabido e conhecido, do que não é agradável. O homem tende para a busca e esta procura não se esgota no horizonte dos nossos sapatos. A condição humana é a condição de peregrino, caminhante. O nosso olhar pede-nos mais, a nossa vida quer levar-nos para bem mais longe. Procurar as “coisas do alto” não é fugir da realidade, mas antes encontrar aqueles ideais que não acabam: a justiça, a verdade, a paz, a solidariedade. Buscar as “coisas do alto” não é sinónimo de uma vida poupada a problemas e questões, mas antes a escolha de uma vida real, concreta, com os seus trabalhos e desafios sem, contudo, perder a dimensão espiritual, elevada, infinita que nos vem de um Deus maior. Afeiçoar-nos às “coisas do alto” é priorizar o que realmente importa, é dar valor ao que não tem fim.

Todos sabemos que a vida terrena é efémera. Por isso, as “coisas da terra” serão sempre zonas de conforto que, de forma limitada, nos oferecem esse conforto e certezas. As “coisas da terra” dão-nos alegria e satisfação, mas serão sempre limitadas pela sua finitude. Devemos, por isso, aproveitá-las e vivê-las, realizando através delas a nossa vocação, mas sempre com o olhar no infinito que nos é oferecido por Deus. E só com um olhar mais amplo, conseguiremos ver melhor o terreno, aceitar o quotidiano e vivê-lo com serenidade. Olhar para o alto amplia a nossa capacidade de espanto, a nossa criatividade, o nosso desejo de edificar, de construir. A maior das graças é a de conseguir ver o nosso quotidiano a partir de Deus, é pensar a vida e as suas circunstâncias e contrariedades a partir do nosso entendimento de filhos de um Pai que nos ama infinitamente. A decisão é sempre minha. Eu posso escolher construir o meu dia na certeza de que a vida é mais. Eu posso decidir deixar de ter os meus olhos baixos sobre os problemas e as dificuldades que me aprisionam e limitam. Eu posso optar por levantar os meus olhos para a Luz e ser também eu uma luz. Quando eu escolho viver as “coisas do Alto”, as “coisas da terra” ganham outra dimensão, outra explicação, outra elevação. É no meu dia-a-dia que eu sou chamada a ser um sinal de Deus, a viver a minha condição de filha de Deus, a construir o meu caminho. É no meio do mundo que eu sou criatura amada de Deus. Mas para o ser em toda a plenitude, tenho de continuar a olhar para o Alto, para Aquele que não tem fim. A história humana está cheia de exemplos de homens e mulheres que escolheram, no meio de nós, viver nas alturas e para as alturas. Um desses exemplos é o de Chiara Lubich que procurou sempre um Ideal que não morresse, que não tivesse fim. E ela encontrou-o quando se deixou encontrar por Jesus.

Viver o infinito é fazer acontecer a sua procura. Olhar o infinito é caminhar de olhos abertos, cheios de esperança, daquela esperança que cansa de tanto esperar, mas que existe por isso mesmo. Por isso, não vivamos com os olhos colados aos sapatos. Não vivamos com o nosso pensamento colado em nós próprios, no nosso egoísmo, nas nossas autoproclamadas defesas. Não finjamos que o melhor de nós não chama por nós. Não nos percamos nas autoestradas da vida que com facilidade e rapidez nos levam para qualquer lado, mas que nos impedem de contemplar com tempo, com espanto e com atenção a simplicidade dos caminhos longos. Não fixemos os nossos olhos no fim da linha porque podemos estar a cancelar o seu início. Sigamos o conselho de São Paulo e tenhamos as “coisas do alto” como as nossas guias. Que a partir desta busca pelas “coisas do alto” saibamos perspetivar as “coisas da terra”, num diálogo infinito olhando a nossa vida concreta de um modo largo, amplo, maior. E assentemos os nossos pés nas estrelas, nessa Estrela Maior que é Jesus, aquele que soube viver as “coisas da terra” olhando sempre “as coisas do alto”.

No primeiro dia…

Reflexão para o mês de setembro de 2022

Feliz Dia Novo!

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

“Este é o dia que fez o Senhor: nele exultemos e nos alegremos!» (Salmo 118, 24)

Gosto de setembro. Apesar das férias terminarem, dos dias ficarem mais pequenos e das roupas começarem a pesar nos corpos. É o fim da confusão nas ruas da cidade, dos amores de Verão que só duram enquanto o sol brilha, da apatia massificada que inexplicavelmente contagia quem por ela se deixa seduzir. Gosto de setembro. São dias de começos, de inícios, de novidades, de encontros, de agendas, de projetos. É importante marcarmos determinados dias e momentos desde que lhes possamos atribuir um significado de futuro, de perspetiva, de crescimento. Não é pintar esses dias de saudosismos e de lembranças nostálgicas que nos levam a acreditar que o que aconteceu ontem foi o melhor das nossas vidas, mas sim escolher um dia para fazermos escolhas e projetos que nos levem a sermos pessoas mais elevadas. Marcar um dia para lermos um livro, para arrumarmos os nossos armários, para estarmos em silêncio, para combater os amuos e os negativismos. Marcar alguma coisa é para isso mesmo, para marcar! Para nos fazer crescer e evoluir, para nos obrigar a deixar para trás a preguiça e o desânimo, para nos levar a abrir novas janelas. Por vezes, precisamos destas metas traçadas que nos dão força para tomarmos decisões e que nos impelem a caminhar para a frente e a descobrir que podemos ser muito melhores do que aquilo que somos.

Quando tantas vezes se fala em datas, horários, marcações, por vezes pensamos em regras, imposições e obrigações, acarretando assim um significado negativo e nada natural e próprio do que é humano. Acredito que esses dias marcados podem contribuir para o nosso equilíbrio, para o nosso bem-estar e serenidade. Se encaramos esses dias como obrigações, eles, de facto, não passarão disso mesmo… obrigações! Obrigações que por si só nos reprimem, nos limitam e nos enfraquecem. Há sempre a possibilidade de fazermos dias novos, de caminharmos de começo em começo, de irmos de início em início. De deixarmos para trás o que nos amedronta e nos prende ao chão. De deixarmos que apareça a vida inteira que há dentro de cada um de nós.

Por isso, é preciso que esses dias apareçam para exigirem de nós tudo aquilo que podemos dar. Descobrir que em cada ser humano há a possibilidade de recomeçar, de criar, de fazer de novo, de inventar. Enquanto crentes, entendemos que em Deus tudo pode ser novo a cada dia e que nunca nada se esgota ou termina em época alguma. Na história do povo de Deus, há imensos dias marcantes na vida de todos aqueles que quiseram fazer brilhar a sua luz no meio dos homens. O dia em que Abraão deixou a sua terra para encontrar a Terra Maior, o dia em que Moisés descobriu que pertencia a um Deus infinito, o dia em que Maria sentiu que o seu filho tinha qualquer coisa de especial, o dia em que Jesus deixou a sua casa para iniciar a sua grande viagem, o dia em que Pedro começou a seguir Jesus, o dia em que as mulheres chorosas foram ao sepulcro e de lá vieram a cantar. Dias de luz, de decisão, de caminho. O dia em que Chiara Lubich não acompanhou os pais e escolheu ficar numa cidade destruída. O dia em que o irmão Roger se deixou encantar por aquela pequena e simples aldeia no sul de França. O dia em que Nelson Mandela se tornou um homem livre para lutar pela liberdade dos outros. O dia em que Jorge Bergoglio se apercebeu que já não voltava para a sua amada Argentina. Em Deus há sempre dias novos, dias de mudança. Não é preciso que estejam marcados num calendário, apenas é preciso que estes estejam marcados nas escolhas que fazemos e sabemos fazer a cada dia que é nosso e que nos pertence. Não é preciso esperarmos por um dia especial nem por nada de extraordinário para deixarmos que o melhor aconteça em nós. O que é fundamental é estarmos disponíveis, atentos, com o coração aberto. Deixarmos fluir e ouvir o que Deus tem para nos dizer, Ele que nos fala de tantos modos e formas através de tudo e de tanto que nos rodeia.

No domingo de Páscoa, o dia maior dos Cristãos, celebramos precisamente esse dia primeiro e cantamos alegre e jubilosamente, com o salmista, “Este é o dia que fez o Senhor. Nele exultemos e nos alegremos.” Acreditamos que o Senhor faz todos estes dias para nós, acreditamos que nos é dada a oportunidade de fazer de cada dia um dia grande, grato, maior. Cada dia que nos é dado para viver é sempre uma possibilidade e se é uma possibilidade é a vida a acontecer. É uma tarefa diária e constante a de cuidarmos dos nossos dias. Mesmo quando esses dias amanhecem cinzentos, chuvosos, cansativos, tristes. A vida é feita destas turbulências que tantas e tantas vezes nos servem de plataforma de lançamento para dias maiores, imensamente claros e luminosos. Vivamos, então, todos os dias com a certeza de que há sempre uma possibilidade, uma oportunidade, um caminho. Agradeçamos cada dia, cada momento, cada partilha. Todos os dias a vida terrena nos lembra que é efémera. E todos os dias podemos lembrar a maravilha que é viver cada dia. Em simplicidade. Em gratidão. Em espanto. Procuremos a essencialidade da vida naquilo que a vida nos dá. Não nos gastemos em rancores, incompreensões, maledicências. Busquemos o que é bom, o que nos faz bem, o que nos ilumina. E em cada dia saibamos fazer estas escolhas.

Gosto de setembro. Dos dias novos que vão chegar. Dos projetos de um futuro maior. Das escolhas que todos faremos. Da paz e da serenidade que o silêncio nos traz. Dos livros que vamos ler. Das palavras que vamos cantar. Das perguntas que vão aparecer e das mudanças que surgem depois como resposta. Gosto dos dias que vou escolher e dos propósitos que serão o meu lema. Felizes dias novos. É preciso fazer de cada dia um domingo de Ressurreição, o primeiro dia da semana, o dia em que Jesus Vivo lembra a cada homem e a cada mulher que há uma Vida que não acaba aqui. Seguimos juntos!

No primeiro dia…

Reflexão para o mês de agosto de 2022

Mi casa es tu casa

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Quando chegou àquele local, Jesus levantou os olhos e disse-lhe: «Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casa.» (do Evangelho segundo São Lucas 19, 5)

A história de Zaqueu é uma das passagens mais conhecidas e comentadas da Bíblia. Nela se aborda o encontro de Jesus com alguém que, aos olhos da sociedade da época, era um pecador, sem possibilidade de redenção. O encontro de Jesus com este homem é transformador, desafiador para os críticos do seu tempo e é sempre sinal de vida nova para todos nós.

Neste texto bíblico, há um acontecimento curioso e que, muitas vezes, ao lermos esta narrativa, acaba por passar despercebido. É o momento em que Jesus, avistando Zaqueu, lhe diz que precisa de ficar em sua casa. Esta urgência deste pedido feito por Jesus está carregada de amor, de acolhimento, de proteção. E é um pedido que Ele nos faz a todos nós. Jesus quer ficar em nossa casa, na nossa vida, nos nossos espaços. É Ele quem vem até nós e nos pede abrigo. Este pedido que Jesus faz a Zaqueu inaugura o princípio da hospitalidade que é marca indelével de todo o Cristianismo. Antes de sermos Igreja, temos de ser acolhimento. Para sermos Igreja, temos de ser acolhimento.

Hospitalidade significa estarmos preparados para acolher, para receber, para sermos casa para os outros, para sermos um abraço amigo, um olhar de ternura. Nos Evangelhos, a hospitalidade é um tema fulcral. A conhecida passagem das irmãs Marta e Maria. O pai misericordioso do filho pródigo. O bom e cuidadoso samaritano. Mas o primeiro sinal de acolhimento acontece quando o próprio Deus se faz presente numa criança. Maria e José são os primeiros a acolher e a hospedar Deus nas suas vidas.

Hospitalidade é uma forma de amor. Jesus pede a Zaqueu hospitalidade. Quer ser recebido em sua casa. O método de Jesus é sempre o de amar primeiro, o de procurar, o de se fazer presente. Jesus transforma os comportamentos e as atitudes mais marcadamente desumanizadas em vias de proximidade, amizade e hospitalidade. Jesus oferece a Zaqueu o seu Amor e a sua presença de uma forma incondicional, sem estratagemas, sem negociações, sem pré-requisitos. E respeita a sua liberdade, valor tão fundamental para que o posterior “sim” de Zaqueu a uma vida nova – ele compromete-se a partilhar com os pobres os seus bens e a emendar injustiças – possa ser verdadeiro e pleno. Jesus é sempre o primeiro a querer fazer parte da nossa vida. Zaqueu, aquele homem desprezado pelos seus, sentiu a hospitalidade de Jesus e isso renovou-o, isso fez dele um homem novo, que deseja a mudança. Começa para ele uma vida nova porque ele próprio assim o quis, assim se disponibilizou a mudar. Neste episódio de Zaqueu, Jesus mostra a disponibilidade de Deus frente a toda a humanidade. Jesus toma sempre a iniciativa, não espera primeiro uma conversão. Este é o modo de Deus amar.

Hoje, Deus continua a querer entrar em nossa casa, a querer habitar connosco, a querer ficar entre nós. E isto acontece de tantas formas, através de tantos acontecimentos quotidianos. Ouvimos, no nosso coração, as mesmas palavras escutadas por Zaqueu: “Hoje tenho de ficar em tua casa.” Nos tempos de correm, nós devemos ser estes lugares de acolhimento, de presença, de fortaleza. Devemos ser uma palavra inteira, uma força firme, uma presença serena. O mundo anda enraivecido, irritado, desiludido. As pessoas procuram refúgios e cada um de nós tem essa obrigação, essa missão, a de ser casa, porto de abrigo, segurança. Enquanto cristãos, a nossa obrigação é a de acolher. Receber sempre. Sem entraves. Sem dúvidas. Sem julgamentos. Que não se assuma como cristão aquele que não abre a sua porta a quem é diferente, aquele que rejeita amar, aquele que julga e condena o que não conhece. A identidade crente constrói-se a partir da noção de hospitalidade enquanto marca fundamental do testemunho cristão.

Estamos num tempo de mudança, novos ventos se agitam, um novo olhar nos é pedido pela vida. São tempos desafiadores, mas simultaneamente de profunda reconstrução. Por isso, a Igreja deve ser o primeiro espaço onde se demonstra, acima de tudo, a hospitalidade para com a humanidade de hoje, para com o mundo moderno e as suas particularidades e contextos. O Cristianismo proclama uma nova forma de estar com os outros, uma cultura de proximidade, de união. Por isso, a hospitalidade reflete a vida da Igreja. Sem ela, a Igreja esvazia-se do seu significado fulcral: acolher e cuidar das pessoas e envolvê-las no mistério divino. Por meio da Igreja, Deus acolhe a humanidade e a humanidade acolhe Deus. A hospitalidade é assim um dos mais profundos gestos fraternos porque pressupõe o acolhimento e a valorização do ser humano na sua individualidade. Viver a hospitalidade é cuidar do outro na sua plena integralidade. A Igreja só pode ser um lugar de acolhimento, sendo os cristãos esses mesmos instrumentos que agem na Igreja, acolhendo, cuidando, lutando contra os individualismos, os egoísmos, os preconceitos. Mais do que nunca, hoje, a hospitalidade é um grande desafio. Por vezes, julgamo-nos pessoas de acolhimento, mas basta uma situação em que os nossos pré-conceitos surgem e colocam logo em causa essa mesma hospitalidade. Tantas vezes habita em nós a indiferença para com o sofrimento do outro. Outras tantas vezes cedemos à tentação do julgamento fácil e imediato. E muitas outras vezes deixamo-nos levar pela nossa vontade em impor aos outros regras, negociações e trocas.

Ninguém se pode tornar cristão para si mesmo. Nós somos cristãos com os outros. A Igreja, enquanto casa de hospitalidade, não se pode isolar, é preciso que se construa em comunhão com a Humanidade, que demonstre, através dos seus membros, a essencialidade da mensagem salvífica de Jesus. Ao longo desta última década, o Papa Francisco tem proclamado a necessidade de uma Igreja relacional e acolhedora e não uma Igreja feita de crentes que julgam e ostracizam, deturpando a essencialidade da mensagem de Jesus. Enquanto Cristãos, a nossa missão é a de acolher, cuidar, abraçar, salvar. A hospitalidade cristã derruba os muros da ingratidão, da indiferença, da distância.

O monge Thomas Merton afirmou que “aquilo que devemos fazer hoje não é tanto falar de Cristo, mas deixar que Ele viva em nós, de tal modo que as pessoas possam encontrá-lo ao sentir como vive em nós.” Esta é a nossa missão enquanto cristãos viventes na nossa sociedade. Sabermos ser casa para este Deus que nos ama e levar o seu Amor aos outros através da nossa vida, das nossas escolhas, dos nossos caminhos. Deus acredita em cada um de nós. Ele quer ficar connosco, quer ser a nossa casa. Deixemo-nos invadir pelo seu Amor. Façamos da sua casa a nossa casa. Desçamos das árvores que nos isolam do mundo, deixemos os preconceitos e os julgamentos inúteis e acolhamos este Deus que quer ser tudo em nós. Assim seremos casa. Assim seremos Luz.

No primeiro dia…

Reflexão para o mês de julho de 2022

Chama-me pelo meu nome

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

“E agora, eis o que diz o Senhor, o que te criou, ó Jacob, o que te formou, ó Israel: “Nada temas, porque Eu te resgatei, e te chamei pelo teu nome.” (do 2.º Livro de Isaías 43, 1)

Somos conhecidos pelo nosso nome. É a nossa primeira identificação, é nossa primeira definição. Somos o nome que nos deram, que para nós escolheram, que para nós desejaram que assim fosse. Apresentamo-nos com um nome que reúne, numa tão simples palavra, tudo aquilo que somos, expressamos, pensamos, vivemos. Ao longo dos anos, este nosso nome carrega uma história, emoções, experiências, alegrias e tristezas, descobertas e caminhos. Somos o nome que nos é. No Batismo, quando os nossos pais e padrinhos anunciam o nosso nome, este também passa a ser uma propriedade sagrada, um nome que passa a ter uma alma. O nome é um elemento de individualização da pessoa na sociedade. Quer o apreciemos ou não, ele é o nosso património. O nosso nome próprio está relacionado com a nossa realidade pessoal e com a nossa identidade responsável, livre, criativa, identidade esta que vai sendo elaborada ao longo da nossa história pessoal. No nome de cada ser humano está tudo aquilo que nós somos. O nome é sempre a pessoa e interessar-se por saber o nome de alguém é procurar conhecer esse alguém. O nome é a porta de entrada de cada história particular. Quando um nome é invocado, ele traz consigo tudo o que a pessoa é, tudo o que ela significa, tudo o que ela simboliza. Há nomes que nos trazem alegria, saudade, que atualizam propósitos, que despertam compromissos, que reavivam sentimentos.

Também no universo bíblico, o nome de cada interveniente na história da salvação significa aquilo que torna cada pessoa única. São muitos os relatos dos chamamentos que Deus faz. É Deus quem toma a iniciativa e chama cada um dos seus pelo nome. O nome encerra assim toda a essência da pessoa e, ao mesmo tempo, todo o mistério da sua relação única e exclusiva com Deus. Deus chama-nos pelo nosso nome. O Senhor chamou Moisés pelo nome (Ex 3, 4), chamou Samuel pelo nome (1 Sm 3, 4). No livro de Isaías, sabemos que este chamamento vem desde o início da nossa criação: “Quando ainda estava no ventre materno, o Senhor chamou-me, quando ainda estava no seio da minha mãe, pronunciou o meu nome.” (Is 49, 1). Até as estrelas são conhecidas por Deus pelo seu nome: “Ele fixa o número das estrelas e chama a cada uma pelo seu nome.” (Sl 147, 4). Nos Evangelhos, acompanhamos o chamamento que Jesus faz a cada um dos seus discípulos, chamando-os pelo seu nome e dando a cada um a missão de colaborar na construção do seu reino de amor e de paz. No Evangelho segundo São João, no relato da parábola da ovelha perdida, ficamos a saber que o Bom Pastor chama as suas ovelhas cada uma pelo seu nome. Assim, há uma importância individual e única que nos é dada e que devemos assumir e na qual devemos acreditar.

E em cada dia, Deus continua a chamar-nos também a nós, nos nossos contextos, nas nossas rotinas, nas nossas escolhas. Deus chama pelo nosso nome. E Ele conhece mais do que o nosso nome. Ele conhece os nossos pensamentos, desejos, vontades, medos, alegrias. Ele conhece tudo em nós. Ter um nome significa que somos chamados, que há uma vocação à qual respondemos. E dentro das nossas possibilidades, da nossa originalidade, dos nossos limites e competências, somos chamados por Deus a concretizar essa mesma vocação, a dar um propósito e um significado à nossa existência. A sermos mais, a mostrarmos que somos filhos de um Deus que nos ama e que quer que escolhamos ser felizes. Sim, a escolha é nossa. Sempre nossa. Só nossa. Deus conhece-nos, sabe quem nós somos, mas criou-nos para a liberdade, para sermos nós a decidirmos o que queremos. Ele faz de nós seres de liberdade para que possamos escolher. Deus não nos impõe nada. Deus não nos obriga a nada. Deus não nos castiga nem se vingará de nós se não O quisermos escutar. Deus é amor. Deus é espera. Sou eu quem O escolhe. A dinâmica da nossa relação com Deus passa através da nossa história, dos nossos avanços e recuos, das nossas dúvidas e certezas, das nossas perguntas. Quando Deus nos chama para fazermos parte do seu projeto de amor, está a dar um significado novo ao nosso nome, ao nosso património existencial. Somos sempre chamados. É isso o que significa ter um nome. É ter dignidade, é ser um pedaço de infinito, é sermos únicos e sermos também imagem de Deus. Responder ao chamamento de Deus, nos dias de hoje, é assumir o nosso papel como filhos de Deus, é materializá-lo nas nossas escolhas diárias, é atualizar a sua mensagem de esperança e de amor nos nossos dias, é trazer para a minha rotina os gestos de Jesus, é abraçar a vida com coragem, é olhar quem me rodeia com compaixão, é escrever com as nossas atitudes os nossos novos evangelhos, é cantar eternos aleluias. E sabermos sempre que somos livres para construir o(s) sonho(s) que Deus tem para nós.

Deus continua a chamar-nos hoje. A todos. E chama-nos pelo nosso nome. Pela nossa identidade. Conhece-nos e privilegia a nossa individualidade. Não somos um aglomerado, um número. Somos ímpares. Somos únicos para Deus que nos ama precisamente por sermos irrepetíveis. O nosso nome é a nossa intimidade que é conhecida por Deus que é tudo em nós. Mesmo quando não O vemos, não O sentimos, não O desejamos. Ele faz-se presente e chama-nos a uma vida maior, plena, fecunda. Vem sempre ao nosso encontro mesmo quando não nos apercebemos disso. Por vezes, este nosso Deus chama-nos através de alguém que vem ao nosso encontro, outras vezes diz o nosso nome por meio de um acontecimento triste, muitas outras vezes interpela-nos através de uma canção que acabamos de ouvir, e tantas outras vezes, o nosso nome é dito pela natureza que estamos a contemplar. De muitos modos, Deus continua a chamar por nós. De forma criativa, atual, amorosa, Deus não desiste de nós. Quer nos dar uma vida nova, com significado, liberta da biologia redutora de todos os seres vivos. E este chamamento que Deus nos faz é plenamente concretizável – assim o aceitemos que seja – em qualquer contexto da nossa vida familiar, social, profissional, cívica. Podemos ser essas testemunhas de Deus nos momentos mais simples e com os recursos mais acessíveis que possuímos. Para isso só precisamos de escutar com o nosso coração o nosso nome. Aquele nome que Deus nos chama. E, sem medo e sem reservas, usemos a nossa vida para que o sonho de Deus se concretize através de nós. São Tomás de Aquino dizia que “cada pessoa é uma expressão singular de Deus.” Assim, cada um de nós sinta esta graça e esta responsabilidade de sermos esta singularidade de Deus nas nossas vidas.  E assim seremos Luz. E assim seremos Paz. E assim seremos Páscoa!

No primeiro dia…

Reflexão para o mês de Junho de 2022

Guardar o que é bom

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

“Examinai tudo. Guardai o que é bom. Afastai-vos de toda a espécie de mal.” (da 1.ª Carta de São Paulo aos Tessalonicenses 5, 21-22)

A primeira carta que São Paulo escreve aos Tessalonicenses é um hino à comunidade cristã. É um texto belíssimo no qual são apresentados os fundamentos para uma vida plena: a alegria, a gratidão e a vida em comum. Desta carta de São Paulo, considerada um dos mais antigos documentos do Novo Testamento, escolhi, para a reflexão deste mês, estas três simples frases: “Examinai tudo. Guardai o que é bom. Afastai-vos de toda a espécie de mal.”

“Examinai tudo.” Um cristão é, por excelência, um observador, aquele que olha a vida, que contempla, como tão sabiamente definiu Ricardo Reis, este espetáculo do mundo do qual faz parte desde o primeiro dia, desde que foi sonhado e amado por Deus criador. Um cristão não se encerra no seu “eu”, não se fecha no seu condomínio privado, não se abstrai da vida. Um cristão vive no mundo, encara as suas maravilhas, mas também enfrenta os seus desastres. Daí a importância de examinar tudo, como nos exorta São Paulo. Ver tudo, conhecer, observar. Contemplar. Querer ver. Recusar-se a viver de forma indiferente, desinteressada ou abstraída. O ser humano é um ser social. Somos pessoas porque o somos com os outros e com o Outro. Quando São Paulo evidencia a importância de examinar tudo, está também a enfatizar a nossa autoanálise, o nosso conhecimento interior, a nossa descoberta pessoal. Por isso, que nunca percamos esta vontade de descobrir, esta ânsia de procurar e, sobretudo, este desejo luminoso de nos maravilharmos com e pela vida.

“Guardai o que é bom.” Gravar em nós a serenidade dos momentos simples. Guardar tudo em Deus significa, para nós crentes, entregar-lhe o que somos, o que experimentamos, o que vivemos. O que sentimos e também tudo o que não compreendemos. E não deixar a vida à mercê do medo, da angústia, do desânimo. Deixar que Deus habite em nós e nos preencha com o dom da gratidão, da simplicidade, da harmonia. Nos textos bíblicos, esta atitude de “guardar o que é bom” surge referenciada em diversas ocasiões significativas. Também Maria foi guardando no seu coração tudo o que observava em relação ao crescimento do seu filho (Lc 2,19). Pratiquemos, pois, este princípio, o de conservar o que é bom, o que edifica, o que nos eleva. Deixemo-nos levar pela bondade, pela beleza que existe. E há tanta! Tanta! Que os nossos olhos se abram a essa mesma beleza. Não nos fechemos ao belo. Cuidemos do nosso coração que é o nosso tesouro. Com o coração amamos, perdoamos, vivemos. Um coração cheio de dureza não é sensível à beleza, não se apercebe daqueles que estão à sua volta. É um coração vazio. É um coração que não partilha e que, assim, não se pode multiplicar. Devemos cultivar os bons sentimentos, aqueles que nos edificam. Procurar experiências significativas. Os pais devem dar aos filhos tempo, abraços e risos. Contemplar a natureza, ouvir uma música, escutar o silêncio do fim do dia, ler um livro, conversar, partilhar vida. Tudo isto contribuiu para enchermos o nosso coração de bondade. Para sermos bondade.

Este conselho de São Paulo para guardarmos só o que é bom parece ser fácil de seguir. No entanto, enquanto espécie humana (ainda não somos só seres divinos!) tendemos para guardarmos, quase a ferro e fogo, as recordações mais tristes e dolorosas. A psicologia explica este fenómeno pelo facto de que uma experiência traumática é muito mais importante para a nossa sobrevivência enquanto espécie do que a memória de algo agradável. Em conversas que surgem, aqui e acolá, acontece muitas vezes ouvirmos mais histórias de tristezas do que de alegrias. É precisamente contra isto que devemos lutar, dizer não, fazer um esforço para nos focarmos naquilo que é positivo e bom. Todos nós já passamos pela experiência do mal, do sofrimento, da dor. Há um verso de Miguel Torga que o Jorge lembrava algumas vezes para nos chamar a atenção para uma tentação perigosa. “Aos poucos, a vida vai-nos tirando a vontade de cantar.” Isto sempre provocou em mim um arrepio de medo quase paralisante. Sempre me questionei como seria possível alguém perder a vontade de cantar. E cantar, neste contexto, significa o maravilhar-se com a vida, o continuar a caminhar, o fazer sonhar. E hoje compreendo que este verso é um alerta para todos nós, os viventes. À medida que a vida vai avançando e com ela trazendo alegrias e tristezas, há uma tendência generalizada para se privilegiar o negativo, o lado sombrio. Recordamos, muitas mais vezes os problemas que vivemos do que as soluções que encontramos. Vamos acumulando deceções e amarguras e os dias ficam por viver na sua plenitude. Sem nos apercebermos, deixamos de cantar, de procurar e de sentir a alegria de estarmos vivos, presentes, juntos. Deixamos de ler um livro porque achamos que já não temos tempo, deixamos de rir com vontade porque somos as ditas pessoas sérias, deixamos até de ir à missa porque isso agora já não se encaixa no meu perfil de jovem-adulto-promissor-com-uma-carreira-brilhante-e-ligeiramente-ateu-só-porque-sim, deixamos de nos deitar na relva a olhar o céu porque isso agora é uma perda de tempo, deixamos de… E, assim, a vida vai-nos embrutecendo sem nos darmos conta. As experiências de dor existem e, é certo, não podemos fingir que elas não aconteceram. No entanto, é imperativo, para podermos seguir viagem, para avançarmos, colocarmos à nossa frente aquilo que temos guardado de bom. Seguir vivendo sem esses pesos que nos atrapalham o andar. É um processo fácil? Não, não é. Mas é a atitude necessária para continuar a viver. E, sobretudo, para sermos Luz para os outros. Para sermos caminho. Não deixemos que a morte nos aconteça antes do tempo. Cuidemos do nosso coração. Guardemos o que é bom, puro, simples, doce.

“Afastai-vos de toda a espécie de mal.” O mal chama sempre a atenção, é poderoso, gere emoções e provoca reações bem mais visíveis. Ninguém está ou é imune ao mal. E o mal já não é aquele ser diabólico, de risinho maquiavélico, causador de medos e de gritos estridentes. Esta caricatura já não representa os nossos dias. Pelo contrário, o mal apresenta-se hoje com uma bela figura, sedutora, repleta de promessas felizes e de imediata concretização. São Paulo pede-nos que não tenhamos medo de dizer não ao que nos faz mal, a tudo aquilo que obscurece o nosso entendimento. Rejeitemos imagens, ideias, percursos, opções que não nos fazem bem, que nos fazem ser menos do que a plenitude que cada um de nós, enquanto filho de Deus, deve assumir. Procuremos o bem. Procuremos as estrelas que há milhares de anos continuam a ser um presente para nós. Procuremos um abraço amigo naqueles que caminham ao nosso lado. Procuremos aquela canção que temos guardada no nosso coração. Procuremos este Deus que nos espera sempre de braços abertos. Guardemos tudo o que é bom. E assim seremos Luz. E assim seremos Páscoa. E assim seremos caminho. Aleluia!