I Semana do Tempo Comum

Domingo (Epifania do Senhor)

Que nos tornemos Reis Magos

Nós celebramos hoje a grande solenidade da Epifania do Senhor, da Sua manifestação. Falar da Epifania é falar do mistério de Cristo, do programa de Cristo, da novidade que Ele introduz na própria história.

Os Magos, que vivem longe, são aquelas pessoas curiosas pela vida, que mantêm uma disponibilidade para se deixar surpreender. No fundo, é preciso ter um coração pobre, é preciso não fazer do seu ego o seu trono, para ainda abrir uma janela e olhar para as estrelas e perguntar o que é que aquelas estrelas quererão dizer. E estes homens estão disponíveis para fazer caminho, para fazer estrada. Um rei é prisioneiro da sua corte, do lugar onde se senta. O Rei Mago é um nómada, é alguém disponível para sair da sua casa, sair do seu palácio, fazer uma viagem. Uma viagem da qual não há muitas certezas, porque se nos deixamos guiar por uma estrela é uma viagem muito aberta, muito pobre ao mesmo tempo de sinais, é uma espécie de alinhavo, não é um traço forte. Mas eles estão disponíveis para ir adorar uma coisa que está longe deles, e não apenas adorar o seu umbigo, adorar a sua imagem. Estes são capazes de ir mais longe. E quando chegam, perante uma criança, ajoelham-se e adoram. Estes põem-se de joelhos perante uma vida que não fez nada, perante uma vida que é, perante aquilo que é o mistério desabalado da própria vida. De joelhos a contemplar o Menino, não contemplam coisas, atos, monumentos, ações, glórias, saberes, conhecimento, não, ajoelham-se perante a vida a vida trémula, a vida que não é nada, a vida frágil, a vida que tem ali todo o seu mistério, a vida no ato puro de ser.

O necessário é que nos tornemos reis magos ao longo deste ano, tendo a capacidade de ir mais longe, tendo a capacidade de ser guiados pelo alto, tendo capacidade de nos desinstalarmos, de fazermos a grande viagem e de retornarmos depois à nossa casa, ao nosso coração por um outro caminho. Isto é, voltar à nossa casa transformados pela própria viagem porque aquilo que vimos, aquilo que fizemos transformou completamente a nossa vida.

Esta é a grande festa da Epifania! Que responsabilidade nos é colocada nas mãos, que responsabilidade tornarmo-nos nós agentes desta Epifania. O Senhor nos dê um coração capaz da adoração. Isto é, da contemplação do seu mistério, do fantástico reconhecimento da sua presença no mundo, nas nossas vidas.

José Tolentino Mendonça in “Homilia na Epifania do Senhor (03.01.2016)”

Segunda-feira (Festa do Batismo do Senhor)

Somos feitos filhos no Filho

Qual é o segredo de Jesus? O que é que o empurrou para aquela vida? O que é que o fez sair de Nazaré para os caminhos da Galileia? O que é que O fez assumir plenamente o Seu destino? Eu não teria dúvidas a dizer que foi a experiência profunda de que Ele é o Filho, de que Ele é o Filho amado, e que Nele Deus coloca o Seu deleite, o Seu coração, o Seu agrado. No fundamento de toda a vida de Jesus está esta certeza de amor, de ser amado. E uma certeza de que fomos amados é uma força para sempre, é uma fortaleza para sempre.

Isto na vida de Jesus é muito claro desde o princípio. E é interessante que nós ouvimos isto no Batismo de Jesus e depois vamos ouvir no momento da Transfiguração, quando o destino tremendo, exigentíssimo de Jesus, aquele desfecho que é a Cruz se desenhava, ouve-se de novo a voz do céu: “Tu és o Meu filho, em Ti coloquei o Meu coração.”

Queridos irmãos e irmãs, o que é que nós somos aqui? Qual é o sentido de estarmos aqui juntos? Porque é que o Cristianismo se torna razão da nossa vida? Nós não somos apenas simpatizantes, partidários, militantes de Jesus. Nós estamos aqui porque cada um de nós faz aquela experiência que Jesus fez. Nós, como depois dirá S. Paulo, somos feitos filhos no Filho. Em Jesus nós descobrimo-nos filhos amados de Deus, e é essa a experiência fundamental. É claro que os cenários podem ser uns ou outros, mais favoráveis ou mais desfavoráveis. Mas o fundamental é que cada um de nós sinta, oiça, escute no fundo mais silencioso da sua alma Deus a dizer: “Tu és o Meu filho, tu és a Minha filha, amados, em ti coloco o Meu coração.” Cada um de nós é depositário desse amor, e é a certeza desse amor a alavanca da nossa vida, a força que nos sustem, a porção de espírito necessária par nós podermos ser. Deus derrama o Seu Espírito em Jesus quando derrama o Seu amor. E também em nós. Nós somos recetáculos do Espírito, o Espírito derramado em nós porque esse amor está presente nas nossas vidas. Nós ganhamos a força na certeza de que somos filhos, e somos filhos amados. Esta certeza que fez a diferença na vida de Jesus é esta certeza que faz a diferença na vida de cada um de nós.

José Tolentino Mendonça in “Homilia na Festa do Batismo do Senhor (10.01.2016)”

Terça-feira

Como experimentar Deus hoje

Para termos uma verdadeira experiência de Deus precisamos ir além da razão racional que compreende os fenómenos pela rama, calcula-os, manipula-os e insere-os no jogo dos saberes da objetividade científica e também dos interesses humanos. Esse espírito de cálculo pensa sobre Deus mas não percebe Deus.

Precisamos de outro espírito, aquele que sente Deus: o espírito de finura e de cordialidade, de encantamento e de veneração. É a razão cordial ou sensível. Ela sente Deus a partir do coração.

Deus é mais para ser sentido a partir da inteligência cordial do que para ser pensado a partir da razão intelectual. Então, damo-nos conta de que nunca estivemos sós. Há uma Presença inefável, misteriosa e amorosa que nos acompanhava.

Não será por isso que nunca acabamos de perguntar por Deus, século após século? Não será por isso que o nosso coração sempre arde quando nos entregamos a Ele? Não seria o advento d’Ele, do sem Nome e do Mistério que nos habita? Estamos seguros que é Ele, quando não sentimos mais medo porque estamos na palma da sua mão. Então experimentamos a discreta serenidade e irradiamos vida e bondade.

Leonardo Boff in “Avvenire”

Quarta-feira

Escuta-me

A quem me pergunta: “Qual é o primeiro mandamento, o mais urgente?”, respondo sem dúvidas, é o mandamento da escuta. De facto, está significativamente à frente dos dez da tradição judaico-cristã, porque sem o exercício da escuta não podemos observar as dez palavras que fazemos remontar a Moisés.

A escuta é um exercício que nos acompanha desde a vida intrauterina, exercício sempre em função, e por isso o ouvido está sempre aberto e não podemos fechá-lo. É a escuta que nos torna capazes de falar, que nos permite colocar o outro e torná-lo próximo, mesmo que distante, mesmo que invisível, que nos habilita ao diálogo, à palavra transversal, à relação. Parece que especialmente hoje existe uma recusa à escuta diretamente proporcional ao desejo, à pretensão de falar, de intervir, de se manifestar. Em todos os níveis. Da família à vida em sociedade, na qual o primado é dado aos ruídos, às informações obsessivas, às tempestades de mensagens que nos chegam sonoramente também nas redes sociais. Não há tempo para colocar-se à escuta, não há desejo de ouvir o outro, e assim a escuta é retirada por distrações e compromissos que nos pedem para preferir ser ativos à suposta passividade da escuta.

Porém, a escuta não é passividade, requer certo silêncio, uma atenção à palavra que nos é dirigida; é sempre preciso empenhar a mente e coração para realmente escutar. Quem sabe escutar está ciente que até a postura do seu corpo pode estar disposta à escuta ou negar qualquer acolhimento à palavra que vem de fora. Penso também que, para quem quer guardar a vida interior, seja necessário escutar o próprio silêncio, e nele a voz das próprias profundidades, da consciência para cada ser humano, de Deus para o crente.

Só na escuta acendemos relações, sustentamos histórias de amor, percorremos caminhos de tolerância e de reconciliação, porque a escuta descentraliza-nos, o outro que escuto é incorporado por mim, para que o outro em mim se torne um bem que me habita no íntimo.

Enzo Bianchi in “Avvenire”

Quinta-feira

Escutando a voz de Deus

Querido filho de Deus, todos nós devemos ser contemplativos. Geralmente, assumimos que isso é reservado a alguma vida monástica, vivida por pessoas especiais que foram chamadas por Deus. Mas a verdade é que cada um de nós deve ter esse espaço interior onde podemos ouvir a voz de Deus. Deus está disponível para todos nós. Deus diz, “Fica tranquilo, sabendo que eu sou Deus.” Cada um de nós deseja e necessita de se dar a si mesmo espaço para o silêncio. E então veremos com os olhos de Deus.

Uma das imagens que tenho da vida espiritual é a de nos sentarmos diante de uma fogueira num dia frio. Não temos de fazer seja o que for. Só temos de nos sentar diante da fogueira e depois, gradualmente, as qualidades do fogo são transferidas para nós. Começamos a sentir o calor. Tornamo-nos os atributos do fogo. É o mesmo que acontece connosco e com Deus. Quando estamos na presença de Deus, as qualidades de Deus são transferidas para nós. Devemos aprender a ser recetivos, a estar na presença de Deus, disponíveis, deixando que Deus seja Deus, dentro e através de nós.

Eu estou profundamente agradecido por esses momentos, quando me sento na presença d’Aquele que é dócil e compassivo, tentando partilhar tudo isso ou que seja dada alguma dessa divina serenidade. Muitas vezes perguntam-me qual a origem da minha alegria e eu posso dizer que ela provém da minha vida espiritual, especificamente desses momentos de tranquilidade. Eles são uma parte indispensável do meu dia, independentemente do que eu tiver de enfrentar.

Além da oração e da meditação, não conheço outra maneira de cultivar uma relação verdadeira e profundamente pessoal com Deus, com cuja presença nos queremos regalar, caindo num silêncio ainda maior e mais profundo. Este é o silêncio do amor, a tranquilidade da adoração e contemplação – o tipo de tranquilidade que é tão eloquente e quando acontece entre duas pessoas que se amam.

Desmond Tutu in “Deus tem um sonho – uma visão de esperança para o nosso tempo”

Sexta-feira

O que buscas está no silêncio e na quietude

Hoje há conforto, mas não há descanso. Todos temos fome de plenitude, mas deixamo-nos satisfazer por futilidades. Quero o que é  profundo, mas vou-me contentando com aparências. Busco a luz, mas ando maravilhado atrás de meros reflexos…

Aquilo que sou depende muito mais do que abdico do que daquilo que conquisto. Aperfeiçoar-me é uma purificação. A iluminação só chega depois de termos esvaziado tudo o que apenas faz sombra. O que enche, mas não sacia. Andamos todos, cada um à sua maneira, em busca de Deus. É preciso que nos calemos e paremos. Que quebremos a lógica dos dias cheios de compromissos e obrigações, onde tudo é importante, mas só por um momento. Tudo passa, tudo desaparece com a mesma rapidez com que chegou.

Sabemos que há algo de errado nesta forma de viver. Queremos mudar, mas não mudamos. Queremos descansar, mas não paramos. Como se não tivéssemos vontade de mudar de rumo e nos deixássemos deslizar pela suave descida da decadência. Tal como as brasas entre a cinza. Não podemos deixar que as nossas dimensões mais profundas sejam sufocadas. É preciso que paremos e façamos o que importa.

Os nossos dias, meses e anos passam, nascem e morrem, como estações em que o comboio passa sem parar. Como se tivéssemos uma vida possível, mas que não chegamos a realizar. Com pressa de chegar a um lado qualquer que não existe, ou então a fugir, com medo daquele silêncio que nos empurra para diante de nós mesmos, onde, olhos nos olhos, não podemos mentir.

Era tão bom que eu me deixasse de preocupar com as coisas sem importância e me dedicasse mais ao que tenho à minha responsabilidade. Só tenho esta vida, este tempo em que passo. Onde cada dia é uma dádiva tão única que jamais se repete. Agradece-se a vida em silêncio. Que eu aproveite a vida que me é dada. Vivendo-a.

José Luís Nunes Martins in www.agenciaecclesia.pt

Sábado

Sermos quem somos

A relação com Deus é una. Cada um vive-a de acordo com aquilo que é. Em tempos em que sentimos que temos de ser perfeitos, cumprir objetivos, sermos sempre os melhores, esmagando-nos de exigência e de perfeição, a religião, num dos sentidos da sua etimologia, religare (religar), mostra-nos que podemos ser “apenas” quem somos. Dentro do ser quem somos, também entra a vulnerabilidade. Deus não apenas nos permite isso como nos pede que assim seja. É esta a força da nossa relação com Ele.

É fundamental reconhecermos os nossos limites e os do outro e dar passos de encontro, dar passos de reconhecimento e de compaixão. Porque, quando eu me reconheço vulnerável, respeito a vulnerabilidade do outro. Quando eu me reconheço vulnerável, reconheço que os outros também podem viver essa vulnerabilidade e essa fragilidade. Quando integro este sentir, posso então ajudar a que o outro possa superar e atravessar essa vulnerabilidade, essa sombra, esse momento de medo e de escuridão.

A relação com Deus permite a dúvida. Porque a dúvida ajuda-nos a ir mais longe. Se não nos questionarmos, se não me perguntar o que está para lá daquilo que vejo, fico acomodado apenas no que sei e no que o olhar alcança. Por isso, permitir a dúvida é sempre ir mais fundo. O mistério da fé não é o inacessível, é antes a matéria que me é dada para que eu possa aprofundar no conhecimento de mim mesmo e do mundo que me rodeia. É a dúvida, a pergunta, a inquietação, é o que nos leva a querer ser mais do que nos sabemos ser. É um convite ao diálogo, à interioridade. Deus quer-nos “incomodados” para que possamos crescer, maturar, desenvolver.

Paulo Duarte in “Rezar a vida –  a experiência da fé no quotidiano”