II Domingo da Quaresma
A bem-aventurança do quotidiano
Bem-aventurados os que estendem largos os gestos de misericórdia, pois a misericórdia os iluminará.
Bem-aventurados os que dão até ficarem de mãos vazias, pois Deus de novo as há de encher.
Bem-aventurados os que rompem com mansidão o muro de implacáveis certezas, pois são outros os caminhos da consolação.
Bem-aventurados os que sentem, pela justiça, fome e sede verdadeiras: não ficarão por saciar.
Bem-aventurados os que sabem o valor de um olhar puro, pois no confuso do mundo verão o próprio Deus.
Bem-aventurados os que quotidianamente se afadigam pela paz: isso torna os mortais filhos de Deus.
José Tolentino Mendonça in “Rezar de olhos abertos”
Segunda-feira
Morada de Luz
A dúvida, por vezes, é apenas o outro lado da fé. Na invisibilidade da sua presença, o Ressuscitado poderia dizer-te: “Sei que há dias cinzentos e opacos na tua vida. Conheço as tuas dificuldades e a tua pobreza, mas, apesar disso és abençoado, habitado por fontes vivas, fontes de fé escondidas no mais profundo de ti mesmo.”
A surpresa da presença de Jesus cria em ti uma morada de luz. Ela ilumina mesmo quando tudo parece envolto em obscuridade e brilha como brasas debaixo da cinza.
O simples desejo de Deus é já o começo da fé. Quando te abres à vida eterna, a confiança da fé começa e não tem mais fim.
Irmão Roger in “Oração: frescura de uma fonte”
Terça-feira
Dar espaço à Luz
Atravessar as sombras, os meandros pouco simpáticos da vida, do que se fez ou faz que nos desajusta do lugar a que somos chamados é difícil, exigente, por vezes vergonhoso, sendo mais fácil arranjar justificações que impeçam a limpidez do ser. O caminho humano, que acarreta o racional, relacional, psicológico e espiritual, é de evoluirmos até ao divino.⠀
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O divino não é estar acima de nada, nem ninguém. É ser pleno. Com a consciência, como o Papa Francisco tantas vezes diz, de passar da miséria à misericórdia. Embater de frente com a miséria humana, na baixeza dos valores, ou pelo menos a possibilidade de a ela aceder, na perspectiva de enfrentar Satanás no deserto, é passo necessário de arrependimento. Os atos feitos não se apagam. Não se muda o mal feito. A beleza, sim, beleza, está na evolução, na escuta do Espírito que nos acompanha na travessia das sombras, a olhar com objetividade, clareza, lucidez para os atos cometidos. Há um contexto. Entre emaranhados de sentires, desejos, dores, feridas, articulam-se apedrejamentos dados e recebidos. Sem perdão, todos perdem. Todos perdemos. O arrependimento não apaga o ato. E talvez se se voltasse atrás repetir-se-ia o que foi. Não se tratam de saltos quânticos no “se soubesse o que sei hoje não faria”. O tempo não é cronológico, mas existencial. Cada pessoa tem os seus passos de vida e libertação. O arrependimento ao longo desse tempo existencial reformula a frase: “com o que sei hoje não posso voltar a fazer”. ⠀
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É tão forte quando damos espaço à luz. A sombra passa a ser uma aprendizagem de aprofundar a misericórdia. O perdão, como cura da memória, leva-nos ao divino e todos ganham. Todos ganhamos. É o sentido da Quaresma: encaminhar-nos até à Luz Pascal. Por outras palavras: à Vida. Só o amor que se faz serviço e entrega conta para o coração de Deus. Seremos julgados pelo amor, não pelos ritos ou tradições. Quando o nosso tempo chegar ao fim, uma só palavra conta: o Amor. E isso ajuda-nos, já hoje, a viver com mais entusiasmo e verdade.
Olho para ti, Senhor Jesus, e vejo o rosto de todos os homens e mulheres meus irmãos a quem é negada uma vida digna de pessoas. Dá força ao meu amor por ti para que se torne amor pelos mais frágeis. Que a tua presença na minha vida me faça reencontrar a ternura de coração e a criatividade dos gestos de misericórdia.
Paulo Duarte, sj
Quarta-feira
Um coração forte e misericordioso
O sofrimento do próximo constitui um apelo à minha conversão, porque a necessidade do irmão recorda-me a fragilidade da minha vida, a minha dependência de Deus e dos irmãos. Se humildemente pedirmos a graça de Deus e aceitarmos os limites das nossas possibilidades, então confiaremos nas possibilidades infinitas que tem de reserva o amor de Deus. E poderemos resistir à tentação que nos leva a crer que podemos salvar-nos e salvar o mundo sozinhos.
Ter um coração misericordioso não significa ter um coração débil. Quem quer ser misericordioso precisa de um coração forte, firme, fechado ao tentador mas aberto a Deus; um coração que se deixe impregnar pelo Espírito e levar pelos caminhos do amor que conduzem aos irmãos e irmãs; no fundo, um coração pobre, isto é, que conhece as suas limitações e se gasta pelo outro.
Senhor, dá-nos um coração forte e misericordioso, vigilante e generoso, que não se deixa fechar em si mesmo nem cai na vertigem da globalização da indiferença.
Papa Francisco in “Mensagem para a Quaresma de 2015”
Quinta-feira
Confiança renovada
Jesus, alegria dos nossos corações, o teu Evangelho assegura-nos que o Reino de Deus está no meio de nós. Abrem-se então em nós as portas da simplicidade.
Deus de toda a eternidade, tu sabes que a nossa linguagem humana pouco consegue exprimir a nossa espera de comunhão contigo. Mas tu concede-nos o dom de uma vida para ti. E surge a aurora de uma confiança renovada. Jesus, sê a nossa paz. Tu dizes-nos: “Não tenhas medo, eu estou contigo.”
Jesus, tu sabes que o ser humano procura a paz interior. A nossa alma pede-te: dá-nos a paz interior. E, na nossa escuridão, tu acendes o fogo do teu perdão e da tua compaixão. Esse fogo nunca se há de apagar.
Comunidade de Taizé
Sexta-feira
Cruzes gloriosas
Senhor,
fazei que, à luz da Cruz, símbolo da nossa fé, possamos aceitar os nossos sofrimentos e, iluminados pelo vosso amor, abraçar as nossas cruzes tornadas gloriosas pela vossa morte e ressurreição. Dai-nos a graça de olhar de frente as nossas vicissitudes e descobri nelas o vosso amor por nós.
Que cada um de nós seja tão humilde e forte que carregue a cruz de quem encontramos. Quando nos sentirmos sozinhos, fazei que possamos reconhecer na nossa estrada um Simão de Cirene que para e carrega sobre si o nosso fardo. Concedei-nos a graça de saber procurar o melhor em cada pessoa, estar abertos a cada encontro, mesmo na diversidade. Peço-Vos que cada um de nós possa descobrir-se sempre ao vosso lado.
in “Via sacra no Coliseu de Roma, 2018 – textos e meditações”
Sábado
Fragilidade
Vivemos todos no imprevisto, improvisando a cada momento. Reinventamos a vida e a nós mesmos, caminhando no inseguro, sem regras definidas nem certezas de nada. O futuro próximo é incerto e desconhecido. Precisamos todos de estar unidos, em família e na sociedade, para atravessar a urgência dos tempos presentes. Somos todos devolvidos ao realismo da nossa fragilidade humana, sem máscaras nem ilusões. Cada dia é uma vitória sobre o medo, da vida sobre a morte, da solidariedade sobre o egoísmo. Em cada dia reinventamos a esperança, crescemos em compaixão. Com Sophia podemos dizer: «Em cada gesto ponho solenidade e risco».
A nossa Quaresma avança para a Páscoa. A nossa Páscoa desloca-se do rito para o concreto da vida, do templo para os hospitais, para os lares, para as nossas casas. Desloca-se ou sempre aí esteve, e distraídos não erámos capazes de a identificar? Somos desafiados a viver a laicidade entranhada e quotidiana da condição cristã. Aí onde estamos, em casa, nos hospitais, nos serviços públicos, no voluntariado que realizamos por imperativo de responsabilidade e de consciência. A Igreja reinventa-se no testemunho doméstico, corajoso e humilde, sem triunfalismos, dos seus leigos e leigas, dos seus pastores, dos seus religiosos e das suas religiosas.
Os tempos presentes são, verdadeiramente, apocalíticos. «Apocalíticos» num rigoroso sentido bíblico, que significa reveladores. São tempos reveladores da grandeza e da miséria de cada um de nós, das nossas famílias, das comunidades cristãs, das nações, e de toda a humanidade. Tempos reveladores da capacidade solidária e fraterna ou do egoísmo individualista. Os tempos presentes tiram todas as máscaras com que nos ocultamos e devolvem o verdadeiro rosto do humano, de cada um de nós. Estes nossos tempos convocam-nos à decisão, à ação, ao testemunho, a uma (re)invenção pessoal, familiar, comunitária. Deus fala-nos através dos sinais destes nossos tempos.
António Martins in “Homilia no V Domingo da Quaresma (29.03.20)”