II Domingo do Tempo Comum
Só Deus basta
Todos os cristãos são chamados à santidade, à experiência profunda do amor a Deus e do amor ao próximo no dia-a-dia, no concreto da existência. A santidade é, pois, a marca própria da diferença e da originalidade cristãs, o acolhimento da gratuidade da misericórdia de Deus que vem ao nosso encontro, na nossa fragilidade, para nos humanizar.
Lemos o evangelho das bem-aventuranças, e vemos o mundo ao avesso, e esse avesso, para nós impensável e indesejável, é o próprio lugar onde se pode experimentar e viver a felicidade, a alegria e a exultação de uma vida marcada pela bondade e pela beleza. Haverá felicidade a partir dos excluídos, dos pobres, dos descartados, dos que sofrem injustiça e são perseguidos, dos humilhados e dos que choram? Poderá haver felicidade evangélica nos lugares de infelicidade humana? Sim. É possível uma vida autêntica, bela, bem-aventurada em situações de carência e de perseguição. Basta um olhar puro, transparente, liberto de posse e de instrumentalização dos outros e das coisas: «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus». Basta um despojamento interior das próprias certezas, a renúncia voluntária à riqueza, ao domínio e ao poder: «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos Céus». Basta resistir na perseguição e na injustiça, e acreditar numa alternativa possível, lutando para que aconteça: «Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o reino dos Céus». A desgraça pode ser o lugar onde se reinventa a esperança, uma vida humanizada como alternativa à desumanização. «Bem-aventurado», «feliz» é outro modo de dizer e viver a santidade. As bem-aventuranças são a alternativa da vida cristã. A santidade é a nossa vocação primeira, o decisivo da vida cristã, a marca da nossa diferença, o divino apelo que nos faz viver e agir. É o desejo de uma vida bela e feliz que, silenciosamente, grita, com gemidos inefáveis, no mais profundo do nosso ser. Precisamos de cultivar o desejo de sermos santos, porque é isso a que Deus nos chama. Santos na família, santos no trabalho, santos na empresa, santos na amizade, santos nas estradas, no lazer, nos afetos, em tudo o que somos, pensamos e agimos. A santidade é o desejo de unificação e inteireza da nossa vida, e a orientação exigente nesse sentido, nas possibilidades concretas da existência, com a ousadia do passo possível a cada momento.
Padre António Martins in “Homilia na Solenidade de Todos os Santos (01.11.2019)”
Segunda-feira
Ninguém é uma ilha
Ninguém é uma ilha. Só somos uns com os outros e precisamos de amor e de reconhecimento. Que importa a existência se ninguém nos reconhecer, se não valermos para alguém? E, quando se descobre que valemos para Deus, que Deus nos dá valor e nos reconhece, então a vida está salva, encontrando a plenitude de sentido.
“Ninguém pode experienciar o valor de viver sem rostos concretos a amar. Aqui reside um segredo da verdadeira existência humana.”, diz-nos o papa Francisco. E daqui arranca a sua revolução, a da dinâmica da fraternidade universal. Este é um ponto de partida, porque esta experiência, se autêntica, irradia e torna-se contagiante, num contágio bom de felicidade: começa-se por baixo, por um, pela família, e vai-se “pugnando pelo mais concreto e local, até ao último recanto da pátria e do mundo. Mas não o façamos sós, individualmente. Todos, retomando a parábola do bom samaritano, somos responsáveis pelo ferido que é o próprio povo e os povos todos da Terra”. Quem na vida foi meu próximo e de quem é que eu fui e sou próximo? Vai-se dando assim o encontro entre o concreto local e o universal, evitando tanto um localismo individualista fechado como um universalismo abstrato, homogeneizante e dominador. Realiza-se, pelo contrário, aquele ideal do poliedro, tão caro a Francisco: a unidade que floresce na variedade da riqueza de perspetivas, do tesouro de cada cultura, um mundo com “o seu colorido variado, a sua beleza e, em última análise, a sua humanidade”.
Outro pressuposto é a dignidade sagrada de cada ser humano. Aqui, vamos tocar a transcendência. Onde assenta a dignidade da pessoa, que é fim e não meio? Certamente, o ser humano é finito e mortal, mas tem algo de infinito nele. O quê? A pergunta ao Infinito pelo Infinito, se quisermos, a pergunta a Deus por Deus. Independentemente da resposta que se lhe dê, positiva ou negativa, todos os seres humanos são confrontados com esta pergunta, que revela neles o Infinito. A dignidade da pessoa humana é inviolável, e isso não por simples convenção ou convicção subjetiva, ela tem um fundamento real, de ser, transcendendo, portanto, as condições de nascimento ou as fronteiras.
Padre Anselmo Borges in www.dn.pt (17.10.2020)
Terça-feira
Deixar Deus unificar os nossos corações
Fazer crescer a unidade exige um compromisso de todo o nosso ser, que começa no nosso próprio coração. Nas palavras de um antigo salmo, a nossa oração sobe até Deus: «Unifica o meu coração para que honre o teu nome» (Salmo 86,11).
Para avançarmos nesta unidade interior, será que por vezes não teremos de escolher entre os nossos desejos, aceitando que não podemos viver tudo? Se se abrem diante de nós muitas possibilidades, tentemos discernir quais são as que levam mais à paz, à luz e à felicidade.
Há, dentro de nós, uma profunda sede de comunhão e de unidade, que vem de Deus. Podemos expressá‐la na oração. Mesmo com muito poucas palavras, permanecer em silêncio sozinhos com Deus ajuda‐nos a procurar o sentido da vida e renova a nossa disponibilidade para deixarmos o Espírito Santo trabalhar em nós. Para encontrarmos a unidade de coração, um caminho é sempre possível: voltar o olhar para Jesus Cristo, para conhecê‐lo mais, para lhe confiarmos as nossas alegrias e as nossas tristezas. Mesmo no meio de dificuldades, com pouquíssimas certezas quanto ao futuro, poderemos prosseguir o nosso caminho passo a passo, na confiança de que, através do Espírito Santo, Cristo Ressuscitado nos acompanha sempre.
Irmão Alois de Taizé in “Tornar-nos artesãos da unidade (2022)”
Quarta-feira
A amarga bem-aventurança da espera
Esperar é uma arte que o nosso tempo impaciente esqueceu. Ele quer arrancar o fruto maduro assim que brota; mas os olhos gananciosos são apenas iludidos, porque um fruto aparentemente tão precioso ainda está verde por dentro, e mãos desprovidas de respeito deitam fora, sem gratidão, aquilo que as dececionou.
Quem não conhece a bem-aventurança amarga do esperar, isto é, a falta de algo na esperança, nunca poderá saborear a bênção inteira da realização. Quem não conhece a necessidade de lutar com as perguntas mais profundas da vida, da sua vida e na espera, não mantém os olhos abertos de desejo até que a verdade lhe seja revelada; não pode imaginar nada da magnificência desse momento em que a clareza resplandecerá; e a quem quer aspirar à amizade e ao amor de outro, sem esperar que a sua alma se abra ao outro até ter acesso a ela, permanecerá eternamente oculta a profunda bênção de uma vida que se desdobra entre duas almas.
No mundo devemos esperaras coisas maiores, mais profundas, mais delicadas, e isso não ocorre de forma tempestuosa, mas de acordo com a lei divina da germinação, do crescimento e do desenvolvimento. Compreendam a hora da tempestade e do naufrágio, é a hora da inédita proximidade de Deus, não da sua distância. Lá onde todas as outras seguranças se rompem e desabam, e todos os suportes que sustentavam a nossa existência se arruínam um após o outro, precisamente lá é que se realiza essa proximidade de Deus, porque Deus está prestes a intervir, quer ser sustento e certeza para nós. Ele destrói, deixa que o naufrágio ocorra; mas, em cada naufrágio, ele nos leva de volta a Ele. É isto que Ele quer nos mostrar: quando parece que perdemos tudo, quando parece que perdemos e abandonamos todas as seguranças, eis, então, que estamos livres para Deus e totalmente seguros n’Ele. Que nos seja dado apenas compreender com discernimento as tempestades da tribulação e da tentação, as tempestades do alto-mar da nossa vida! Nelas, Deus está perto, não longe.
Dietrich Bonhoeffer in “Avvenire”
Quinta-feira
A tarefa da fraternidade
Os meses passam e a experiência da pandemia suscita em nós questionamentos e perguntas categóricas. O que se torna urgente, que empenho para o tempo presente e para o futuro temos pela frente? A resposta é certamente o empenho pela fraternidade e sororidade, isto é, assumir uma responsabilidade que nos torna cuidadores uns dos outros. Isso, entre outras coisas, ensina-nos a calamidade que nos surpreendeu, destacando a nossa fragilidade e o nosso destino comum: todos nós somos vulneráveis, somos mortais, seres humanos vindos da terra e que à terra retornam.
Esse é o fundamento da fraternidade que todos podem sentir e, portanto, assumir para cuidar de si e dos outros, vivendo juntos e juntos habitando a terra como casa comum. A história, de facto, mostra que para esse propósito não bastaram nem a paternidade de Deus confessada por aqueles que têm fé, nem outras transcendências: a fraternidade continua sendo uma tarefa, frágil, nunca alcançada de forma definitiva. É claro que a fraternidade foi uma “invenção” do cristianismo, mesmo que o sentimento comum a coloque dentro da famosa tríade republicana. Embora a fraternidade logo tenha sido colocada ao lado das outras duas, enquanto se combatia pela liberdade e pela igualdade, alcançando resultados precisos, a fraternidade não recebeu a atenção e o empenho necessários para que as outras “irmãs” fossem afirmadas com um fundamento.
Edgar Morin também nos lembra que “a liberdade pode ser instituída e a igualdade imposta. A fraternidade, por outro lado, não se estabelece por lei. É fruto de uma experiência pessoal de solidariedade e responsabilidade. Sozinha, a liberdade mata a igualdade e a igualdade imposta destrói a liberdade. Só a fraternidade permite manter a liberdade, porém continuando a luta para suprimir as desigualdades”. Liberdade e igualdade dizem respeito à esfera dos direitos e, mais ainda, dos direitos do indivíduo, enquanto a fraternidade é um valor intrínseco da convivência, da comunidade. O Papa Francisco, com a sua encíclica “Fratelli Tutti”, pediu a todos e a cada um o que é necessário para nos salvar juntos: a fraternidade.
Enzo Bianchi in “Avvenire”
Sexta-feira
Reconhecer-se pequeno
Na vida, reconhecer-se pequeno é um ponto de partida para se tornar grande. Se pensarmos nisto, crescemos não tanto com base nos sucessos e nas coisas que temos, mas sobretudo nos momentos de luta e fragilidade. Na necessidade, amadurecemos; abrimos o coração a Deus, aos outros, ao sentido da vida. Abrimos os olhos aos outros. Abrimos os olhos, quando somos pequenos, para o verdadeiro sentido da vida. Quando nos sentimos pequenos face a um problema, pequenos diante de uma cruz, de uma doença, quando sentimos fadiga e solidão, não desanimemos. A máscara da superficialidade está a cair e a nossa fragilidade radical está a reemergir: é a nossa base comum, o nosso tesouro, porque com Deus as fragilidades não são obstáculos, mas oportunidades. Uma boa oração seria esta: “Senhor, olha para as minhas fragilidades…” e enumerá-las perante Ele. Esta é uma boa atitude diante de Deus.
Na verdade, é precisamente na fragilidade que descobrimos quanto Deus se preocupa connosco. O Evangelho diz-nos que Jesus é muito terno com os pequeninos: «Depois, tomou-as nos braços, abençoou-as, impondo-lhes as mãos» (v. 16). As contrariedades, as situações que revelam a nossa fragilidade são ocasiões privilegiadas para experimentar o seu amor. Sabem bem isto quantos rezam com perseverança: em momentos de escuridão ou solidão, a ternura de Deus para connosco torna-se – por assim dizer – ainda mais presente. Quando somos pequeninos, sentimos ainda mais a ternura de Deus. Esta ternura dá-nos paz, esta ternura faz-nos crescer, porque Deus se aproxima de nós à sua maneira, que é proximidade, compaixão e ternura. E quando nos sentimos sem importância, isto é, pequenos, por qualquer razão, o Senhor aproxima-se, sentimo-lo mais próximo. Ele dá-nos paz, faz-nos crescer. Na oração, o Senhor abraça-nos, como um pai com o seu filho. Assim, tornamo-nos grandes: não na ilusória pretensão da nossa autossuficiência – isto não faz grande ninguém – mas na força de recolocar toda a esperança no Pai. Precisamente como fazem os pequeninos, eles fazem assim.
Papa Francisco in “Angelus (03.10.2021)”
Sábado
A surpresa de Deus
Deus fez-nos maravilhosamente, e se nós formos capazes de sentir isso, não como uma vaidade, não como um orgulho (que isso é uma coisa tão tola!), mas como uma verdade natural que nos funda, que nos arquiteta, então somos capazes de viver a vida com outra liberdade, com outra naturalidade, com outra confiança. Porque é este olhar de Deus que confirma cada um de nós que nos ajuda verdadeiramente a ser, que nos desimpede o caminho e os nós que sem querer nós carregamos anos e anos e depois percebemos que não fazia sentido, que não era aquilo, que aquilo não nos ajudava …
É importante sentir isto, sentir a força incondicional do Amor de Deus que nos é oferecido. E que nós descobrimos não apenas a acontecer a meio da vida mas percebemos depois que é desde sempre, que esse Amor foi o primeiro pensamento que Deus teve acerca de nós e que a nossa vida é uma vida cuidada, é uma vida amparada, é uma vida embalada, é uma vida no Amor de Deus.
Deus não nos deixa ficar no desânimo, Deus não nos deixa com os braços caídos. Deus quer que nós percebamos, na humildade e na simplicidade da nossa vida, que somos chamados a ser luz, a experimentar a salvação, a saborear a salvação de um modo que muitas vezes não é aquilo que nós sonhámos, não é aquilo que nós pensámos. Nós somos chamados a olhar a vida de outra forma e isso é também uma conversão ao Amor de Deus, não é apenas um trabalho psicológico, é um trabalho espiritual. É uma reconstrução espiritual da vida que nós precisamos que aconteça. Porque a nossa vida não é só o resultado dos fatores e das variantes que nós dominamos. A nossa vida não é pré-determinada. Às vezes pensamos: “Com o que eu fiz, com o caminho que eu tive, com as opções que eu tomei, agora o resultado é este, acabou!” Achamos que a vida se tornou irreversível, que a vida agora é atuada por uma espécie de fatalismo que necessariamente nos vai confirmar no desânimo… Mas a vida também é um salto, a vida também nos chega do futuro, não nos chega só do passado. O hoje não é só o que tem a ver com o ontem, o hoje também é a surpresa de Deus, é este futuro de Deus que se abeira da soleira da nossa porta, da soleira deste instante que nós somos. E é a abertura de coração também a esse futuro, a essa novidade, a esse lado inédito da vida, que nos faz começar a cada momento uma nova história, e nos faz acreditar que é possível. Por isso, a vida de cada um de nós é muito importante. Aquilo que somos é muito importante! Nós fomos feitos para a luz de uma bênção.
José Tolentino Mendonça in “Homilia na Solenidade do Nascimento de São João Batista (24.06.2018)”