IV Domingo da Quaresma
A tudo Deus dá futuro
O tempo da Quaresma outra coisa não é que um tempo – mesmo na sua exigência, na sua tensão transformadora, no seu impulso de conversão – de possibilidade de saborearmos mais amplamente, mais autenticamente a misericórdia de Deus. Sintamo-nos, por isso, tocados por esta misericórdia. Sintamos que a graça de Deus tudo cura, tudo salva, tudo entende, tudo acolhe. A tudo Deus dá futuro; não há nada na nossa vida a que Deus não dê futuro. Porque o que é próprio da misericórdia é, exatamente, a reversibilidade. Nada é completamente irreversível, nada está perdido, ninguém é deixado para trás.
Deus é fiel ao ser humano. Mesmo quando nós não vemos como, não sabemos como, não conseguimos tratar a Deus por “tu”, Deus não deixa de ser este Pai rico em misericórdia que está diante de nós. Por isso, o tempo do exílio, o tempo do silêncio é também um tempo de saudade, de saudade de Deus. A verdade é que a nossa cultura, em tão grande medida, em tantos parâmetros, parece uma cultura tão distante de Deus, que silencia tanto a procura de Deus. Ela não deixa de ser um lugar onde o ser humano, na aspereza da vida, experimenta o que é este desejo de Deus, esta saudade de Deus. Lembro-me de um filme de Manoel de Oliveira, O Convento: a dada altura há um diálogo, há uma personagem que vive um “mal de vivre”, uma grande inquietação interior, e a outra pergunta:
“- Mas o que é que tu tens? O que é que tu tens?
E ela dá esta resposta:
– Tenho saudades de Deus.”
A saudade de Deus quer dizer que o que responde às inquietações do nosso coração é uma medida alta, a medida do amor, a medida da ternura de Deus. E Deus surpreende-nos sempre. Deus surpreende-nos sempre.
Sintamo-nos convocados a ser testemunhas da misericórdia de Deus. Uns para os outros, sermos transmissores da misericórdia. É verdade que é tão mais fácil transmitirmos um juízo, uma crítica, e isso também há de ter o seu lugar, mas não nos esqueçamos da misericórdia. A misericórdia é esta arte de Deus que não desiste, que sabe que é o amor que pode recompor o vaso quebrado, que sabe que é o amor que reconstrói a própria vida a cada momento. E por isso, Ele é o Pai rico em misericórdia. Deus é gratuidade, Deus é ternura, Deus é amor, e amor incondicional, Deus é misericórdia. Fazermos, cada um de nós, esta experiência da misericórdia de Deus e, depois, sermos capazes de refletir essa misericórdia na nossa vida, nos nossos gestos, na nossa maneira de estar, na nossa relação, arriscando levar a misericórdia, celebrar a misericórdia.
José Tolentino Mendonça in “Homilia no IV Domingo da Quaresma (15.03.15)”
Segunda-feira
As mãos cheias
Somos feitos das primaveras que nos plantam dentro do peito. Muitas vezes, os que o fazem nem sabem que o fizeram; nem sabem que nos fizeram nascer flores dentro dos dias. Somos feitos dos azuis que nos pintam dentro do céu que temos debaixo da pele da alma. Somos feitos das vezes que não olhámos para trás por valer a pena abraçar o que estava mesmo à nossa frente. Mas, afinal, quando não temos quem nos faça ser Primavera ou quem nos pinte o céu de azul, somos feitos de quê?!
Somos feitos de fé. Do que nos faz querer tudo mesmo quando não há forças para quase nada. Do que nos faz querer aumentar o tamanho ao coração, por ser demasiado pequeno para tudo o que queremos guardar nele.
Somos feitos de fé. Da fé que nos faz rezar e juntar as mãos para o Céu. Da fé que nos faz trazer uma pomba ao peito. Uma pomba branca que ninguém vê mas que voa baixinho mesmo debaixo da nossa pele. Da fé que nos faz querer entender menos para poder saber mais. Da fé que nos faz continuar a pedalar mesmo quando a bicicleta (ou o caminho!) nos fizer(em) cair.
Somos feitos de fé. Da fé que nos faz felizes e fortes. Da fé que nos deixa também ser pequenos, fracos e pobres. Da fé que nos permite ser o que quisermos por nos permitir ser, precisamente, tudo.
Somos feitos de fé. Da fé que nos põe música nas palavras que dizemos. Da fé que nos faz avançar, nadar mais fundo e viver melhor. Somos feitos de fé. Da fé que nos faz acreditar que não estamos sozinhos. Da fé que nos faz acreditar que somos melhores porque estamos juntos. Somos feitos de fé. Da fé que nos faz repensar a vida toda. Da fé que nos faz querer começar de novo. Da fé que nos derruba os muros de dentro.
Quando nos perguntarem o que dizem ou guardam as nossas mãos, poderemos dizer:
– Tenho uma mão cheia de fé.
E a outra mão?!
– Tenho a outra mão cheia de coragem. Hoje, ainda é preciso coragem para ter fé.
Marta Arrais in “imissio.net”
Terça-feira
Ser Luz
Jesus,
ajuda-nos a espalhar o teu perfume onde quer que vamos.
Inunda as nossas almas do teu Espírito e da tua vida.
Possui todo o nosso ser de forma tão completa que as nossas vidas sejam um reflexo da tua.
Resplandece através de nós e permanece em nós de tal modo que cada pessoa que encontremos possa ver a tua presença em nós. Que eles possam levantar os olhos e apenas ver-te a ti.
Fica connosco e, como tu, seremos uma luz para os outros. Essa luz que não vem de nós próprios, só vem de ti. Serás tu que, através de nós, brilharás sobre os outros.
Que nós possamos louvar-te do modo que tu preferes, irradiando sobre aqueles que nos rodeiam.
Que falemos de ti, não por palavras, mas pelo nosso exemplo, pela força contagiosa, pela influência cativante do que nós fazemos, pela plenitude evidente do amor que está nos nossos corações.
Madre Teresa de Calcutá in “Oração: frescura de uma fonte”
Quarta-feira
Coragem de olhar
Senhor,
a todos nos pedes a coragem do desafio. A coragem de saber ver e agir, individualmente e como comunidade. Só juntando as nossas pobrezas é que estas poderão tornar-se uma grande riqueza, capaz de mudar a mentalidade e aliviar os sofrimentos da humanidade. O pobre, o estrangeiro, o diferente são irmãos a acolher e ajudar. Não são um problema, mas um recurso precioso para as nossas cidadelas blindadas, onde o bem-estar e o consumo não aliviam o crescente cansaço e fadiga.
Senhor,
ensina-nos a possuir o teu olhar; aquele olhar de acolhimento e misericórdia, com que vês os nossos limites e os nossos medos.
Ajuda-nos a ver assim as divergências de ideias, costumes e perspetivas.
Ajuda a reconhecermo-nos como parte da mesma humanidade e a fazermo-nos promotores de novos e ousados caminhos de acolhimento da pessoa diferente, para juntos criarmos comunidade, família, paróquia e sociedade civil.
Eugenia Bonetti in “Via sacra no Coliseu de Roma, 2019 – textos e meditações”
Quinta-feira
Caminho
Se estiveres a ir depressa demais, para. Senta-te à beira do caminho, daquele mesmo que até há instantes caminhaste, e sossega. Olha o pó que trazes nos sapatos, as bolhas que trazes nos pés e vê os passos que deste. Todas as vezes em que andaste mais depressa do que podias e todas as vezes em que te arrastaste apenas porque sim. Olha a marca que deixaste no chão por teres caído e olha o par de pegadas que desapareceu quando achavas não aguentar mais.
Para. Mas não desistas. Senta-te apenas por breves momentos para que esses não te custem a eternidade. Só podes continuar se fores verdadeiro contigo mesmo.
Olha para o caminho que se segue. É longo e nada fácil. Ao fundo tens uma encruzilhada. Dois caminhos possíveis que se apresentam diante de ti. Ambos são possíveis, mas só um poderás percorrer. Independentemente da dificuldade de cada um, opta. Não optes nem pelo mais fácil nem pelo mais difícil. Opta por aquele que te fará feliz. Pensa nos outros, mas pensa também em ti.
Quando decidires, não tornes a pensar. Não dês espaço aos “ses” nem te lembres dos “mas”. Avança!
“Nenhum caminho será longo”, nenhum caminho será breve, nenhum caminho será perfeito, mas todo o caminho será o teu. O caminho dos teus passos, dos teus avanços, das tuas quedas, das tuas dúvidas, das tuas feridas, das tuas certezas e das tuas mágoas. O caminho das tuas escolhas. O caminho da tua vida. O caminho que te diz respeito, mas que não te pertence. O caminho que percorres com os teus pés, mas não com a tua força.
E quando tornares a ir depressa demais, quando os teus passos se mostrarem sem sentido, quando sentires que tens de parar. Não pares. Abre os braços. Acolhe a Vida. Há sempre passos que te acompanham, pegadas que te seguem: um caminhar que se orienta ao ritmo de dois corações.
Rita Santos in “imissio.net”
Sexta-feira
Caminho para a Ressurreição
Senhor,
Imprime nos nossos corações sentimentos de fé, esperança e caridade.
Ajuda-nos a transformar a nossa conversão feita de palavras, em conversão de vida e de obras.
Ajuda-nos a guardar em nós uma recordação viva do teu Rosto, para que nunca nos esqueçamos do altíssimo preço que pagaste para nos libertar.
Jesus crucificado,
reforça em nós a fé, que não ceda diante das tentações;
reaviva em nós a esperança, que não se perca seguindo as seduções do mundo; conserva em nós a caridade que não se deixe enganar pela corrupção e pela mundanidade.
Ensina-nos que a Cruz é caminho para a Ressurreição.
Ensina-nos que a sexta-feira santa é caminho para a Páscoa da luz;
ensina-nos que Deus nunca esquece nenhum dos seus filhos e nunca se cansa de nos perdoar e abraçar com a sua misericórdia infinita.
Mas ensina-nos também a não nos cansarmos de pedir perdão e crer na misericórdia sem limites do Pai.
Papa Francisco in “Via sacra no Coliseu de Roma, 2015 – textos e meditações”
Sábado
Todos os dias a vida recomeça
É bom saber, Senhor, que todos os dias a vida recomeça. A força criadora da vida não se empalidece no labirinto dos afazeres, nem a destroem a turbulência de certas geografias ou a áspera penumbra de algumas horas.
A vida, a nossa vida, mesmo frágil e trémula, é soberana.
Investida do teu amor, ela pode sempre refazer-se, transfigurar-se, vestir-se de música súbita.
Tocada por esse amor, ela é capaz de ser mais do que o rangido das coisas, mais do que esta porção de cinza caída de repente, mais do que o conhecimento detalhado da tristeza que nos deixa acordados noite fora ou do que a expectativa confusa que nos exila do fulgor, entregues à nossa difícil ciência.
A vida parece-se à dança, humilde e fantástica, que os pássaros desenham como dom no desamparo dos céus – coisas para sabermos antes de todas as aprendizagens.
Faz-nos trilhar, Senhor, a estrada da confiança.
Dá-nos um coração capaz de amar serenamente aquilo que somos ou que não somos, aquilo que sonhámos ou as coisas que não escolhemos e que, contudo, fazem parte da nossa vida.
Ensina-nos a devolver a todos os teus filhos e a todas as criaturas a extraordinária bondade com que nos amas. Não permitas que o nosso espírito se feche no medo ou no ressentimento: ensina-nos que é possível olhar a noite, não para dizer que pesa em todo o lugar o escuro, mas que a qualquer momento uma luz se levantará.
Dá-nos a ousadia de criar e recriar continuamente, mesmo partindo daquilo que não é ideal nem perfeito. E, quando nos sentirmos mais frágeis ou sobrecarregados, que recebamos com igual confiança a nossa vida como um dom e cada dia como um dia de Deus.
José Tolentino Mendonça in “Rezar de olhos abertos”