As vinhas da ira, John Steinbeck
Livro sugerido por Sofia Brito
“Tenha-se medo da hora em que o homem não mais queira sofrer e morrer por um ideal, pois que esta é a qualidade básica da humanidade, é a que a distingue entre tudo no universo.
A primeira palavra para descrever este enormíssimo clássico é “êxodo”. A narrativa decorre impelida por um êxodo atrás de outro. Apanha-nos desprevenidos com a imagem de um jovem homem, sério, determinado, em viagem para chegar a algum lugar. Mais tarde entendemos que esse lugar é a sua família, e que a sua viagem é um regresso do exílio – da prisão.
Desde logo entendemos então que Steinbeck não quer falar de pessoas exemplares. Steinbeck fala das pessoas comuns, de pessoas humildes, com bagagens e com vidas imperfeitas. Quer pôr rostos e nomes nas massas de gentes que, nos anos 30, após a Grande Depressão, foram expulsas das suas casas por grandes empresas, sem rostos nem nomes.
Nesse esforço, Steinbeck personaliza uma luta massiva com a própria miséria e, inerentemente, com a acumulação de riqueza. Pode-se falar até numa luta pelo direito a existir enquanto pessoa, e não mero trabalhador ou mesmo instrumento de trabalho. É uma luta que se foi transmutando até aos dias de hoje, e que em Portugal adquire rostos e nomes, entre outros, naqueles que emigram à procura de maior estabilidade e qualidade de vida.
É uma obra de leitura difícil e que sabe um pouco a estar na estrada, com toda a sua rudeza, com todo o pó, com a ansiedade de ver o próximo horizonte. Steinbeck vai com o ser humano ao seu próprio limite. Procuramos então o que nos torna mais – mais do que instrumentos de trabalho ou de produção, mais do que a nossa própria subsistência. Porque continuam aquelas pessoas na estrada, face a todas as possíveis adversidades? E porque ajudam as outras? Porque se criam códigos morais? Qual a função de um objetivo comum, de um bem maior, e porque é tão difícil que todos o vejam, em simultâneo?
A forma como a obra nos demonstra tantas emoções e experiências contraditórias a acontecer, em uníssono, é um daqueles mistérios a que também já tentei dar resposta. A resposta que frequentemente encontrei é a própria humanidade e o mistério da Fé: creio que algo nos une, e que em cada experiência profunda nos vemos, uns aos outros, na nossa forma mais igual e semelhante. Frente a frente com as escolhas destes personagens, tão palpáveis, é impossível não pensar no que faria nessa mesma situação. E de alguma forma também, me sentir grata. Grata por ver outras pessoas a encontrarem, na sua profunda vulnerabilidade, esse Ideal que nos une, que é a capacidade de Amar e dar Vida.
O Jogo das Contas de Vidro, Hermann Hesse
Livro sugerido por Beatriz Cruz
“Existem muitas espécies e formas de vocação, porém, a essência e o sentido da experiência é sempre o mesmo: o que acorda a alma, a transforma ou exalta, é sempre que, em vez de sonhos e pressentimentos íntimos, de repente um apelo do exterior, um fragmento da realidade se impõe e age.” (in “O Jogo das Contas de Vidro”, Hermann Hesse)
O livro “O Jogo das Contas de Vidro” é essencialmente sobre vocação: o encontrar, o assumir, o viver sem medos, plenamente, com respeito, e acima de tudo com dignidade o chamamento que nos acorda para uma vida plena. E é também sobre a importância de questionar continuamente se o caminho que escolhemos fazer é fiel a essa vocação. Este caminho flui com naturalidade, embora não necessariamente com facilidade, não sendo isento de dúvidas, de percalços, de momentos de desânimo. Não há certezas absolutas. Uma escolha abre novas possibilidades que apenas surgem depois que essa escolha é feita. Há um sentido, mas o caminho é feito passo a passo. Sabemos para onde queremos ir, mas é a humildade, a confiança, o discernimento contínuo e a paciência que nos ajudam nas escolhas, contra medos, orgulhos, vaidades e teimosias. Hermann Hess chama-lhe “despertares”. E há realmente um acordar. De repente, algo faz tão completamente sentido que só podemos ir por aí.
A vocação implica um escrutínio contínuo, um pôr em causa, um questionar sem reservas. E isto acompanhado de uma clareza de espírito, de um ouvir e ponderar todos os argumentos, de uma ausência de preconceitos ou de ideias feitas. E, principalmente, nunca pensar que é demasiado tarde ou que somos demasiado velhos para recomeçar. A vida plena vem acompanhada de uma atenção, de uma disponibilidade, de equilíbrios e desequilíbrios que nos impelem para a frente e para cima.
À personagem Joseph Knecht foi apresentada muito cedo a oportunidade de viver a sua vocação. Caminhou por degraus, de “despertar” em “despertar”, evoluindo harmoniosamente, com empenho, disciplina, abnegação, ausência de “paixões”, desejos e facilitismos, até ao grau supremo de Magister Ludi. Vivendo plenamente aquilo em que acreditava, descobre um dia que essa vida se encontrava isolada da História, da realidade, numa autêntica “bolha” de perfeição. Sendo já de idade avançada e com uma vida de provas dadas, admite pôr em causa essa “perfeição” para abraçar uma realidade imperfeita mas inserida na História, na Humanidade, sem a proteção de que sempre havia usufruído. Castália, onde viveu quase toda a sua vida, estava inserida na História, no Mundo, protegida e mantida pelo Mundo, mas orgulhosamente isolada. Ao procurar a perfeição absoluta, desprezava tudo o que o não fosse. Isolada, pensava que se bastava a si própria e desdenhava quem lhe dava condições de assim poder existir. Contra uma vida perfeita, Knecht pondera escolher uma vida em busca da perfeição. Uma vida aberta à Humanidade e inserida na sua História. O final da narrativa surpreende! E se pensam que ficam a saber a história com base nesta pequena partilha estão longe de imaginar a viagem que vão fazer quando o lerem. Vale a pena acompanhar Joseph Knecht ao longo do seu caminho.