Reflexão para o mês de agosto de 2022
Quando chegou àquele local, Jesus levantou os olhos e disse-lhe: «Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casa.» (do Evangelho segundo São Lucas 19, 5)
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
A história de Zaqueu é uma das passagens mais conhecidas e comentadas da Bíblia. Nela se aborda o encontro de Jesus com alguém que, aos olhos da sociedade da época, era um pecador, sem possibilidade de redenção. O encontro de Jesus com este homem é transformador, desafiador para os críticos do seu tempo e é sempre sinal de vida nova para todos nós.
Neste texto bíblico, há um acontecimento curioso e que, muitas vezes, ao lermos esta narrativa, acaba por passar despercebido. É o momento em que Jesus, avistando Zaqueu, lhe diz que precisa de ficar em sua casa. Esta urgência deste pedido feito por Jesus está carregada de amor, de acolhimento, de proteção. E é um pedido que Ele nos faz a todos nós. Jesus quer ficar em nossa casa, na nossa vida, nos nossos espaços. É Ele quem vem até nós e nos pede abrigo. Este pedido que Jesus faz a Zaqueu inaugura o princípio da hospitalidade que é marca indelével de todo o Cristianismo. Antes de sermos Igreja, temos de ser acolhimento. Para sermos Igreja, temos de ser acolhimento.
Hospitalidade significa estarmos preparados para acolher, para receber, para sermos casa para os outros, para sermos um abraço amigo, um olhar de ternura. Nos Evangelhos, a hospitalidade é um tema fulcral. A conhecida passagem das irmãs Marta e Maria. O pai misericordioso do filho pródigo. O bom e cuidadoso samaritano. Mas o primeiro sinal de acolhimento acontece quando o próprio Deus se faz presente numa criança. Maria e José são os primeiros a acolher e a hospedar Deus nas suas vidas.
Hospitalidade é uma forma de amor. Jesus pede a Zaqueu hospitalidade. Quer ser recebido em sua casa. O método de Jesus é sempre o de amar primeiro, o de procurar, o de se fazer presente. Jesus transforma os comportamentos e as atitudes mais marcadamente desumanizadas em vias de proximidade, amizade e hospitalidade. Jesus oferece a Zaqueu o seu Amor e a sua presença de uma forma incondicional, sem estratagemas, sem negociações, sem pré-requisitos. E respeita a sua liberdade, valor tão fundamental para que o posterior “sim” de Zaqueu a uma vida nova – ele compromete-se a partilhar com os pobres os seus bens e a emendar injustiças – possa ser verdadeiro e pleno. Jesus é sempre o primeiro a querer fazer parte da nossa vida. Zaqueu, aquele homem desprezado pelos seus, sentiu a hospitalidade de Jesus e isso renovou-o, isso fez dele um homem novo, que deseja a mudança. Começa para ele uma vida nova porque ele próprio assim o quis, assim se disponibilizou a mudar. Neste episódio de Zaqueu, Jesus mostra a disponibilidade de Deus frente a toda a humanidade. Jesus toma sempre a iniciativa, não espera primeiro uma conversão. Este é o modo de Deus amar.
Hoje, Deus continua a querer entrar em nossa casa, a querer habitar connosco, a querer ficar entre nós. E isto acontece de tantas formas, através de tantos acontecimentos quotidianos. Ouvimos, no nosso coração, as mesmas palavras escutadas por Zaqueu: “Hoje tenho de ficar em tua casa.” Nos tempos de correm, nós devemos ser estes lugares de acolhimento, de presença, de fortaleza. Devemos ser uma palavra inteira, uma força firme, uma presença serena. O mundo anda enraivecido, irritado, desiludido. As pessoas procuram refúgios e cada um de nós tem essa obrigação, essa missão, a de ser casa, porto de abrigo, segurança. Enquanto cristãos, a nossa obrigação é a de acolher. Receber sempre. Sem entraves. Sem dúvidas. Sem julgamentos. Que não se assuma como cristão aquele que não abre a sua porta a quem é diferente, aquele que rejeita amar, aquele que julga e condena o que não conhece. A identidade crente constrói-se a partir da noção de hospitalidade enquanto marca fundamental do testemunho cristão.
Estamos num tempo de mudança, novos ventos se agitam, um novo olhar nos é pedido pela vida. São tempos desafiadores, mas simultaneamente de profunda reconstrução. Por isso, a Igreja deve ser o primeiro espaço onde se demonstra, acima de tudo, a hospitalidade para com a humanidade de hoje, para com o mundo moderno e as suas particularidades e contextos. O Cristianismo proclama uma nova forma de estar com os outros, uma cultura de proximidade, de união. Por isso, a hospitalidade reflete a vida da Igreja. Sem ela, a Igreja esvazia-se do seu significado fulcral: acolher e cuidar das pessoas e envolvê-las no mistério divino. Por meio da Igreja, Deus acolhe a humanidade e a humanidade acolhe Deus. A hospitalidade é assim um dos mais profundos gestos fraternos porque pressupõe o acolhimento e a valorização do ser humano na sua individualidade. Viver a hospitalidade é cuidar do outro na sua plena integralidade. A Igreja só pode ser um lugar de acolhimento, sendo os cristãos esses mesmos instrumentos que agem na Igreja, acolhendo, cuidando, lutando contra os individualismos, os egoísmos, os preconceitos. Mais do que nunca, hoje, a hospitalidade é um grande desafio. Por vezes, julgamo-nos pessoas de acolhimento, mas basta uma situação em que os nossos pré-conceitos surgem e colocam logo em causa essa mesma hospitalidade. Tantas vezes habita em nós a indiferença para com o sofrimento do outro. Outras tantas vezes cedemos à tentação do julgamento fácil e imediato. E muitas outras vezes deixamo-nos levar pela nossa vontade em impor aos outros regras, negociações e trocas.
Ninguém se pode tornar cristão para si mesmo. Nós somos cristãos com os outros. A Igreja, enquanto casa de hospitalidade, não se pode isolar, é preciso que se construa em comunhão com a Humanidade, que demonstre, através dos seus membros, a essencialidade da mensagem salvífica de Jesus. Ao longo desta última década, o Papa Francisco tem proclamado a necessidade de uma Igreja relacional e acolhedora e não uma Igreja feita de crentes que julgam e ostracizam, deturpando a essencialidade da mensagem de Jesus. Enquanto Cristãos, a nossa missão é a de acolher, cuidar, abraçar, salvar. A hospitalidade cristã derruba os muros da ingratidão, da indiferença, da distância.
O monge Thomas Merton afirmou que “aquilo que devemos fazer hoje não é tanto falar de Cristo, mas deixar que Ele viva em nós, de tal modo que as pessoas possam encontrá-lo ao sentir como vive em nós.” Esta é a nossa missão enquanto cristãos viventes na nossa sociedade. Sabermos ser casa para este Deus que nos ama e levar o seu Amor aos outros através da nossa vida, das nossas escolhas, dos nossos caminhos. Deus acredita em cada um de nós. Ele quer ficar connosco, quer ser a nossa casa. Deixemo-nos invadir pelo seu Amor. Façamos da sua casa a nossa casa. Desçamos das árvores que nos isolam do mundo, deixemos os preconceitos e os julgamentos inúteis e acolhamos este Deus que quer ser tudo em nós. Assim seremos casa. Assim seremos Luz.