Reflexão para o mês de abril de 2023
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
“Nós sabemos que passamos da morte para a vida porque amamos os irmãos. Quem não ama, permanece na morte.” (da 1.ª Carta de João – 1 Jo 3, 14)
As cartas de João são textos belíssimos que exaltam a identidade do ser humano enquanto filho de Deus. João aborda, em muitos destes seus escritos, o tema do amor ao próximo, anunciando a ideia de um Amor que nos torna divinos e nos salva da morte. Para João, o amor fraterno está no centro da oposição entre vida e morte. João parte da lei do Amor, proclamada por Jesus, e que é a maior loucura por Ele anunciada. Amar os inimigos, perdoar quem nos fez mal, dar uma nova oportunidade, vencer a morte com a vida. Tudo isto foi, na altura, – e ainda hoje o é! – visto como loucura, incompreensão. Traz dúvidas e incertezas. Muitas perguntas. E sempre muito espanto. Mas, sobretudo, traz consigo a chave da identidade cristã.
Só em Deus é possível aceder a esta compreensão de Amor maior. Só assumindo este amor ao jeito de Deus é possível ver e viver de um modo diferente, louco aos olhos do mundo, mas verdadeiro no coração da Eternidade. Enquanto não optarmos por viver esta dimensão divina, muito do que nos acontece permanecerá inaceitável, inatingível. É fundamental olharmos a vida, o mundo, os outros com os olhos de Deus para podermos passar a viver de um modo mais completo, mais íntegro, mais dimensional. Mais perto de Deus. Em Deus. Só assim avançaremos para a outra margem. Só assim subiremos à montanha. Só assim caminharemos pelas águas. Só assim passaremos da morte para a vida.
O Amor de Deus vai além do que nos é pedido. É feito sem cálculos, sem algoritmos, sem contratos. Sem dúvidas, sem trocas, sem imposições. É um Amor que acolhe, aceita, espera, acredita. Não é oportunista, mas oferece oportunidades; não impõe condições, mas é sempre incondicional; não é desconfiado, mas só vive da e na confiança. O Amor de Deus ultrapassa a simples esfera sentimental, romântica. O Amor de Deus é concreto, deriva em ação, é universal. Por isso, quando amamos verdadeira e genuinamente, estamos unidos a Deus e somos seus instrumentos. E nunca poderemos dizer que somos cristãos se não praticarmos (ou, pelo menos, tentarmos praticar!) este Amor fraterno.
O Amor cura-nos. Salva-nos. Liberta-nos. Afasta-nos do mal. Eleva-nos. Faz-nos sair do que é limitado, rasteiro, mortal. É no Amor que curamos as feridas abertas pela vida que nos acontece. É no Amor que somos salvos dos nossos abismos. É no Amor que recebemos a eternidade daquilo que seremos. É no Amor que compreendemos que a vida é sempre poderosa, sempre mais, sempre vencedora. E é no Amor que, tal como cantava Camões, nos vamos da “lei da morte libertando”.
Sabemos que somos mais quando amamos. Sabemos que crescemos mais quando ampliamos o espaço da nossa tenda para acolher aquele irmão que precisa de um abraço amigo. Sabemos que somos mais felizes quando retiramos de nós o peso do mal, da ofensa, da ingratidão. Sabemos que para sempre viveremos quando escolhemos amar. Jesus escolheu amar até ao fim. Escolheu morrer para nos mostrar que está connosco nos nossos sofrimentos, nas nossas dores, nos nossos abismos. Está ao nosso lado e diz-nos que com Ele, um dia, estaremos plenamente na manhã eterna da vida sem fim. A grande força do Cristianismo é esta aparente fraqueza humana, ou seja, a de escolher o Amor, a opção pela disponibilidade para amar, esta vontade de amar até ao fim.
Aceitar esta essencialidade do Amor de Deus implica escolher abrir-me a Deus e às possibilidades que Ele me oferece. Pede-me que, muitas vezes, assuma uma boa dose de loucura em relação àquilo que o mundo e a sociedade esperam de mim. Faz com que, tantas vezes, tenha de ir por outro caminho, aquele que só quem vive em Deus e por Deus conhece bem. Esta loucura de ser cristão está prevista naquela que Santo Agostinho considerou ser a página das páginas do Evangelho – as Bem-aventuranças, o programa, por excelência, da existência cristã. Jesus revela-nos que viver à moda de Deus é incompatível com a lógica dos vencedores e vencidos que o mundo nos oferece. Numa sociedade marcadamente baseada no egoísmo, nos interesses individuais, todos aqueles que vivem ao estilo de Jesus são incompreendidos. Se o mundo vive em função do poder e da ostentação, do lucro e dos juros, quem mostra que a vida pode ser vivida no dom e no serviço aos outros torna-se uma voz incómoda para o desenvolvimento do sistema capitalista.
Por isso, permanecemos na morte quando escolhemos a via do facilitismo, quando vivemos para o que é terreno, quando nos comprometemos com o que é finito. Permanecemos na morte quando não somos como aquele Pai misericordioso que prepara a festa para o filho que ele jugava perdido. Permanecemos na morte quando não somos como Zaqueu que tudo mudou em si para hospedar Jesus no seu coração. Permanecemos na morte quando não somos como aquele samaritano que tratou das feridas de quem tanto sofreu. Permanecemos na morte quando não somos como aquele bom Pastor que não descansou enquanto não encontrou a sua ovelha.
Vivemos por estes dias o final da Quaresma e o início do tempo Pascal. A morte e a ressurreição de Jesus trazem-nos uma mensagem clara: a vida eterna não é uma condição a que acedemos quando morrermos. Pelo contrário, a vida eterna pode ser vivida no presente, quando escolhemos existir numa comunhão constante com o nosso Deus e, consequentemente, com os nossos irmãos. A vida eterna é uma vontade nossa à qual podemos aceder através da escolha que fazemos – amar. O amor mais forte do que a morte é aquele que foi vivido por Jesus. E é a este nível de Amor que cada um de nós cristãos deve aspirar e, consequentemente, anunciar. É este Amor que nos ressuscita, que nos levanta, que nos faz sair dos túmulos onde tantas vezes nos encerramos.
A Fé não nos livra de uma morte física, mas para quem crê, a morte não é a última e definitiva realidade. A ressurreição de Jesus é a resposta de Deus à vida por Ele vivida, ao seu modo de viver no Amor até ao extremo. O Amor ensinado por Jesus é profecia e antecipação para todos nós, seus amigos, destinados, com Ele e por Ele, a esta mesma ressurreição. Que a Páscoa que celebramos a cada ano faça de nós, em cada dia, uma pessoa de passagem, em caminho, em andamento ao encontro da Terra Prometida. Que saibamos escolher sempre a via do Amor para a vida em Amor. E assim jamais morreremos. E assim para sempre viveremos.