Carta de São Paulo aos Filipenses 4, 4
4Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo o digo: alegrai-vos! 5Que a vossa bondade seja conhecida por todos. O Senhor está próximo. 6Por nada vos deixeis inquietar; pelo contrário: em tudo, pela oração e pela prece, apresentai os vossos pedidos a Deus em acções de graças. 7Então, a paz de Deus, que ultrapassa toda a inteligência, guardará os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus.
8De resto, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é nobre, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é respeitável, tudo o que possa ser virtude e mereça louvor, tende isso em mente. 9E o que aprendestes e recebestes, ouvistes de mim e vistes em mim, ponde isso em prática. Então, o Deus da paz estará convosco.
António Damásio, Ao Encontro de Espinosa
(…) Para que servem os sentimentos? Na tentativa de dar uma resposta é conveniente começar por uma reflexão sobre a alegria e a mágoa, os dois emblemas da nossa vida afectiva. Como se constroem a alegria e a mágoa? Que representam?
A alegria e a mágoa começam com a apresentação de um estimulo emocionalmente competente. O processamento deste estímulo dentro do contexto em que ocorre leva ao selecionar e executar de um programa preexistente de emoção. Por seu turno, a emoção leva à construção de uma série de mapas neurais do organismo para os quais sinais vindos do corpo-propriamente-dito contribuem de modo importante. Mapas com uma determinada configuração formam a base do estado mental a que chamamos alegria e as suas virtudes, uma partitura composta na clave do prazer. Outros mapas formam a base do estado mental a que chamamos mágoa, que, na ampla definição de Espinosa, inclui estados negativos como a angústia, o medo, a culpa e o desespero. Trata-se de partituras compostas na clave da dor.
Os mapas ligados à alegria significam estados de equilíbrio para o organismo. Estes estados podem ou não desenrolar-se no corpo. Os estados de alegria traduzem uma coordenação fisiológica óptima e um fluir desimpedido das operações da vida. Conduzem não só à sobrevida, mas à sobrevidacom bem-estar. Os estados de alegria são também caracterizados por uma maior felicidade da capacidade de actuar.
Podemos bem concordar com Espinosa quando disse que a alegria (laetitia no seu contexto latino) estava associada a uma transição do organismo para um estado de maior perfeição. Maior perfeição no sentido de maior harmonia funcional, sem dúvida, maior perfeição no sentido em que o poder e a liberdade de ação estão aumentados. Mas é preciso ter em mente o facto de que os mapas da alegria podem ser falsificados pelas drogas e, por isso mesmo, não refletir o estado actual do organismo. Alguns dos mapas ligados às drogas reflectem uma melhoria transitória das funções do organismo. Tarde ou cedo, no entanto, a melhoria não é sustentável biologicamente e serve de prelúdio para a degradação das funções biológicas.
Os mapas relacionados com a mágoa, tanto no sentido estreito como largo da palavra, estão associados a estados de desequilíbrio funcional. A facilidade de ação reduz-se. nota-se a presença da dor, de sinais de doença ou de sinais de desacordo fisiológico, todos eles indicando uma coordenação diminuída das funções vitais. Se a mágoa não é corrigida seguem-se a doença e a morte.
Na maior parte das circunstâncias, os mapas da mágoa e da tristeza reflectem o estado atual do organismo. Ninguém abusa de drogas que levem à mágoa e à depressão. No entanto, as drogas de que tantos abusam acabam por induzir mágoa e depressão que se seguem rapidamente aos highs que começam por produzir. Por exemplo, a ecstasy produz highs caraterizados por um prazer calmo que se acompanha de pensamentos benignos, mas o uso repetido da droga induz depressões que se tornam cada vez mais marcadas e que se seguem a highs cuja amplitude é cada vez menor. A operação normal do sistema da serotonina é afetada diretamente e uma droga que de início foi considerada inocente tem vindo a revelar-se cada vez mais perigosa.
De acordo com o que Espinosa disse quando discutiu a noção de tristitia, os mapas da mágoa estão associados a uma transição do organismo para um estado de menor perfeição. O poder e a liberdade de atuar reduzem-se. Na perspetiva espinosiana, a pessoa invadida pela tristeza é separada do seu conatus, é separada da sua tendência natural para a auto-preservação. Esta descrição aplica-se , por certo, aos sentimentos que se encontram nas depressões graves e às suas consequências últimas no suicídio. A depressão poder ser vista como parte de uma “síndroma da doença”. Os sistemas endócrinos e imunológicos participam na depressão crónica tal como se um agente patogénico, por exemplo uma bactéria ou um vírus, tivessem invadido o organismo. De forma isolada, momentos de tristeza, medo ou zanga não precipitam a espiral de deterioração da doença. Contudo, toda e cada ocasião de emoção negativa coloca o organismo num estado marginal. Quando e emoção é o medo, esse estado marginal pode ter vantagens – desde que o medo seja justificado e não seja o resultado de uma apreciação incorreta da situação, ou sintoma de uma fobia. O medo justificado é uma excelente apólice de seguros, que tem salvo ou melhorado muitas vidas. Mas a zanga ou a tristeza são menos benéficas, pessoal ou socialmente. a zanga bem dirigida pode, é claro, desencorajar o abuso e servir como arma defensiva, tal como ainda continua a servir na selva. Em muitas situações sociais e politicas, contudo, a zanga é um bom exemplo de uma emoção cujo valor homeostático está em declínio. O mesmo se pode dizer da tristeza, um apelo sem lágrimas à compaixão. Isto não quer dizer que a tristeza não possa ser eficaz, em certas circunstâncias, por exemplo, quando nos ajuda a enfrentar uma perda pessoal. Mas se tristeza permanece para além de um período breve o resultado é sempre nocivo.
Assim, os sentimentos podem ser os sensores mentais do interior do organismo, as testemunhas do estado da vida. Os sentimentos podem também ser sentinelas, dado que permitem ao nosso si que tome conhecimento do estado da vida do organismo durante um breve intervalo de tempo. Os sentimentos são, em suma, as manifestações mentais do equilíbrio e da harmonia, da desarmonia ou do desacordo. Não se referem necessariamente à harmonia ou ao desacordo dos objetos e das situações exteriores ao organismo, embora seja evidente que também o podem fazer. Referem-se mais imediatamente à harmonia e ao desacordo que acontecem no interior da carne. A alegria e a mágoa são revelações mentais desse processo de manobra, excepto quando drogas ou depressão corrompem a fidelidade da revelação (embora seja possível defender o argumento de que a doença revelada pela depressão é, ao fim e ao cabo, bem fiel ao estado da vida no organismo deprimido).
É curioso pensar que os sentimentos são testemunhas do nível mais recondito da vida. E quando tentamos inverter a marcha da engenharia da evolução e descobrir as origens dos sentimentos, é legítimo perguntar se a razão por que os sentimentos prevaleceram como fenómeno importante dos seres vivos complexos é precisamente a sua capacidade de dar testemunho sobre a vida à medida que ocorrem na mente.
(…) qualquer projeto de salvação humana – qualquer projeto capaz de tornar uma vida examinada numa vida feliz – deve incluir meios para resistir à angústia causada pelo sofrimento e pela morte, meios para suprimir a tristeza e para a substituir pela alegria. A neurobiologia da emoção e do sentimento diz-nos, em termos bem sugestivos que a alegria e as suas variantes são preferíveis à tristeza e às suas variantes, que a alegria leva mais facilmente à saúde e ao florescer criador. Não parece haver aqui qualquer equívoco: devemos procurar a alegria por decreto assente na razão, mesmo que a procura pareça tola e pouco realista.