Anselmo Borges, Diário de Notícias 28.julho.2018
O que é que verdadeiramente queremos? A realização plena de todas as dimensões do ser humano, a plenitude, a felicidade. O Papa Francisco sabe disso e escreveu a exortação Alegrai-vos e Exultai, para indicar o caminho dessa realização, na convicção de que Deus, “aquele que pede tudo, também dá tudo, e não quer entrar em nós para mutilar ou enfraquecer, mas para levar à perfeição”. Sempre sob o desígnio da alegria. Francisco lembra o livro da Bíblia, Ben Sirá: “Meu filho, se tens com quê, trata-te bem. Não te prives da felicidade presente” e também São Francisco de Assis, “capaz de se comover de gratidão perante um pedaço de pão duro ou de louvar, feliz, a Deus, só pela brisa que acariciava o seu rosto”. Não se trata, portanto, da “alegria consumista e individualista. Com efeito, o consumismo só atravanca o coração; pode proporcionar prazeres ocasionais e passageiros, mas não alegria”. A verdadeira alegria é aquela que “se vive em comunhão, que se partilha e comunica”, porque, segundo uma palavra de Jesus, “a felicidade está mais em dar do que em receber”. Não será por acaso que na cultura de hoje se manifestam alguns riscos e limites, a evitar: “a ansiedade nervosa e violenta que nos dispersa e enfraquece, o negativismo e a tristeza, a acédia cómoda, consumista e egoísta, o individualismo e tantas formas de falsa espiritualidade sem encontro com Deus que reinam no mercado religioso actual”. “O consumismo hedonista pode enganar-nos, porque, na obsessão de nos divertirmos, acabamos por estar excessivamente concentrados em nós mesmos, nos nossos direitos e na exacerbação de ter tempo livre para gozar a vida…, acabando por nos transformar em pobres insatisfeitos que tudo querem provar. O próprio consumo de informação superficial e as formas de comunicação rápida e virtual podem ser um factor de estonteamento que ocupa todo o nosso tempo e nos afasta da carne sofredora dos irmãos. No meio deste turbilhão actual, volta a ressoar o Evangelho para nos oferecer uma vida diferente, mais saudável e mais feliz”, adoptando cada um o seu caminho e discernindo segundo os tempos e as circunstâncias, sem, por outro lado, ficar sujeito a um zapping constante. Deus é eterna novidade e não se pode cair na sedução da habituação, do “sempre foi assim”: a Igreja não é “uma peça de museu nem uma propriedade de poucos”.
“O que é que tem real valor na vida? Quais são as riquezas que não desaparecem? Seguramente duas: Deus e o próximo. Estas duas riquezas não desaparecem.” E as duas são inseparáveis. Jesus, mais do que muitas fórmulas e preceitos, entregou-nos “dois rostos, ou melhor, um só: o de Deus que se reflecte em muitos, porque em cada irmão, especialmente no mais pequeno, frágil, inerme e necessitado, está presente a própria imagem de Deus”. Assim, a santidade é feita de abertura habitual à transcendência, que se expressa na oração e na adoração. “O santo é uma pessoa com espírito orante, que tem necessidade de comunicar com Deus. É alguém que não suporta asfixiar-se na imanência fechada deste mundo e, no meio dos seus esforços e serviços, suspira por Deus, sai de si erguendo louvores e alarga os seus confins na contemplação do Senhor.” Há dois erros nocivos. O daqueles que transformam o cristianismo numa “espécie de ONG”, privando-o daquela espiritualidade irradiante que o caracteriza. Mas “é nocivo e ideológico também o erro das pessoas que vivem suspeitando do compromisso social dos outros, considerando-o algo de superficial, mundano, secularizado, imanentista, comunista, populista”. Sagrada é a vida dos pobres que “se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura e em todas as formas de descarte. Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às novidades do consumo, ao mesmo tempo que outros se limitam a olhar de fora enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente”.
O que é ser santo? Jesus explicou-o nas “bem-aventuranças”, que são “como que o bilhete de identidade do cristão”. “A palavra ‘feliz’ ou ‘bem-aventurado’ torna-se sinónimo de ‘santo’, porque expressa que a pessoa fiel a Deus e que vive a sua Palavra alcança, na doação de si mesma, a verdadeira felicidade.” As bem-aventuranças implicam outro estilo de vida e são contracorrente. “Felizes os pobres em espírito”: “as riquezas não te dão segurança alguma”; no coração dos que têm o coração pobre, “Deus pode entrar com a sua incessante novidade”. “Felizes os mansos”: “a mansidão é outra expressão do desapego interior”. “Felizes os que choram”: compreendem a angústia alheia e aliviam os outros. “Felizes os que têm fome e sede de justiça”: a realidade mostra-nos como “é fácil entrar nos gangues da corrupção, fazer parte dessa política diária do ‘dou para que me dêem’, onde tudo é negócio”. “Felizes os misericordiosos”: a misericórdia é dar, servir os outros e também perdoar e compreender; “a medida que usardes com os outros será usada convosco”, disse Jesus. “Felizes os puros de coração”, porque é do coração que procedem os homicídios, os roubos, os falsos testemunhos, preveniu Jesus. “Felizes os pacificadores.” “Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça.”
“Será com os descartados desta humanidade vulnerável que, no fim dos tempos, Deus plasmará a sua última obra de arte.” “Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, estava nu e vestistes-me, estive na prisão e fostes ter comigo. Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos foi a mim que o fizestes.”
Padre e professor de Filosofia