José Tolentino Mendonça, O pequeno caminho das grandes perguntas, Quetzal Editores
Na organização da vida monacal há um dia reservado para o chamado “tempo de deserto”. Estamos habituados a pensar no deserto como um lugar, mas pode bem ser um tempo. E, nesse caso, a geografia deixa de ser importante: o deserto pode acontecer no meio da cidade, por entre os nossos trajetos habituais ou no espaço da nossa casa. Indispensável mesmo é que nos disponhamos a experienciar um tempo diferente, recorrendo a ferramentas espirituais básicas, mas essenciais: o silêncio, o recolhimento, a leitura, a meditação, a solidão orante…
O deserto é um tempo reconfigurado. Uma pausa necessária para o esvaziamento de si e a purificação interior. Sem darmos conta, a poluição – de palavras, imagens, desejos desencontrados, ficções – asfixia-nos. A nudez do deserto inspira um distanciamento face à avidez, ao instinto de posse, ao sonambulismo de uma existência abandonada ao piloto automático. O deserto faz-nos romper com o consumismo. Devolve-nos a nós mesmos.
“Vou conduzir-te ao deserto e falar-te ao coração”, lê-se no livro do profeta Oseias (2, 16). O poeta Edmond Jabès parece comentar literalmente este passo bíblico quando diz: o dom do deserto é ensinar-nos a radical abertura de coração e a profundidade da escuta.
Na organização da nossa vida secularizada, deveríamos prever tempos regulares de deserto.