Reflexão para o mês de setembro de 2023
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
“Ele chamou um menino, colocou-o no meio deles e disse: «Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu.” (do Evangelho de São Mateus 18, 2-3)
Jesus responde à interpelação dos seus discípulos que estavam muito preocupados acerca de quem, de entre eles, seria considerado o maior, o melhor, o mais importante. Estavam tão cheios de eles próprios e tão inquietos acerca do lugar principal que seria dado a alguém que nem se aperceberam que a pergunta que fazem a Jesus estava cheia de orgulho, desejo de poder e hierarquias. A resposta que Jesus lhes dá é avassaladoramente simples ao dizer-lhes que só entrarão no Reino de Deus se se tornarem como as crianças. Nesta resposta há duas dimensões importantes: a condição de se ser criança e a referência ao Reino de Deus. Ser como as crianças é dar espaço ao que sentimos, ao que vivemos, ao que vem até nós, sem julgamentos nem preconceitos. Esta sugestão que Jesus nos faz nada tem a ver com a infantilidade ou com a imaturidade. Jesus pede-nos que sejamos como as crianças, pois estas estão abertas às suas emoções, sem usarem máscaras, sem se desculparem com medos, sem utilizarem receios. À humanidade de hoje Jesus continua a dizer que todos devemos permanecer como crianças no sentido de que é a simplicidade a chave que nos abre os olhos do entendimento, que desbloqueia preconceitos, que amplia horizontes. Ser crianças na arte do espanto, na arte de se alegrar com o que genuinamente importa.
Então, para sermos grandes temos de ser pequenos. E o que é isto de sermos pequenos? Somos pequenos quando nos deixamos envolver pela beleza, pela simplicidade. Quando nos deixamos fascinar pela vida e não nos deixamos manipular pelos porquês, pelas pedras, pelos obstáculos. Quando olhamos para a vida abraçando as dúvidas, as dores, as interrogações, persistindo e continuando caminho. Quando nos deixamos guiar pela sensibilidade, pela atenção, pela comoção. Quando aos olhos do mundo, muitas vezes, não cumprimos os requisitos de excelência, de sucesso, de carreirismo, mas acedemos àquela sabedoria maior que só pertence ao coração.
Jesus sugere-nos que permaneçamos pequenos para sermos cada vez maiores no espanto, na admiração, na entrega. Para que os nossos olhos continuem carregados de alegria e de simplicidade. Para não ficarmos doentes por carregarmos tantos “ismos” que a idade adulta parece acarretar – o pessimismo, o adultismo, o egoísmo, o individualismo, o materialismo, etc.
Só assumindo esta condição de crianças, poderemos aceder, compreender e viver o Reino de Deus. Este Reino anunciado por Jesus só se torna visível e concretizável quando nos permitimos a nós próprios querer vê-lo. E para ver este Reino temos de usar o coração e a vontade de querer vê-lo. Podemos usar a razão para tratarmos da questão de Deus, mas para termos uma relação pessoal com Ele precisamos de vivê-la e vê-la com o coração. Para conhecermos este Deus que nos ama é imprescindível deixarmo-nos comover, envolver, querer fazer parte. Deixar de lado os preconceitos, as reservas, os medos. Confiar. Ir. Contemplar a vida com o coração. Procurar permanentemente a beleza e a harmonia. Deixar que os nossos olhos sejam sensíveis à beleza que existe. Sermos pessoas maravilhadas, encantadas, rendidas à beleza da simplicidade, confiantes na harmonia, ou seja, sermos como as crianças são.
Nos Evangelhos, Jesus recorre, com frequência, à importância que deve ter preservarmos a essencialidade de sermos crianças. De facto, não há nada que tenha mais valor do que o olhar puro, o olhar de criança, o olhar de espanto. A riqueza a desejar não reside nem numas luxuosas férias nas Maldivas, nem nos carros ultramodernos, nem nas importantíssimas posições de chefia. Nada. Tudo isso passa, tudo é efémero, tudo se constrói e destrói. A riqueza maior, a que nos salva, está no dom de nos envolvermos, na capacidade de nos comovermos, na propensão para sentirmos, na aptidão para estarmos atentos aos outros. Um olhar embrutecido impede-nos de saber contemplar a beleza da vida, de saber ver o que realmente importa, de conseguir escolher o que vale verdadeiramente mais. É muito fácil deixarmos que o nosso olhar se prenda na tristeza, no desânimo, na indiferença. É muito fácil tornarmo-nos as tais pessoas muito sisudas que ainda ontem mergulhavam em risos felizes nas lagoas em Caminha e hoje se deixam dominar por agendas repletas de compromissos muito sérios que lhes roubam tempo para fazer algo tão simples como olhar para as estrelas ou emocionar-se com um poema que é recitado. É muito fácil seguirmos esta corrente dos meros cumpridores de horários, das pessoas muito sérias, cheias de preocupações excessivas, de estatutos a exibir e que acham uma pobreza e um retrocesso existencial o deixarem-se envolver nas emoções e serem simples, como o são as crianças.
É por tudo isto que ser Cristão é uma verdadeira loucura aos olhos de um mundo que nos exige sucessos, conquistas, materialismos. É por isso que ver o Reino de Deus neste nosso mundo é uma tarefa que só se proporciona a quem realmente se dispõe e se propõe a vê-lo, com os olhos do coração, com a simplicidade das crianças, com a alegria que brota de quem encontra um feliz tesouro, a Eternidade do presente. E este Reino reservado aos simples é concretizável também na medida em que eu me deixo envolver naquilo que é a minha própria vida. Eu ligo-me emocionalmente aos outros através das experiências que vivemos em conjunto. Viver esta JMJ fez-me voltar a confirmar esta necessidade de envolvência e, sobretudo, de nos deixarmos envolver. Ou seja, de não sermos indiferentes à Vida e deixarmo-nos ser e estar em irmandade. O jornalista eufórico que gritou de alegria ao ver o Papa passar. Os jovens vindos do outro lado do mundo a cantar e a ser alegria nas múltiplas ruas de uma Lisboa jovem. As famílias que seguiram tudo e todos pela televisão. Os amigos que carregaram a cadeira do jovem Lourenço para que ele conseguisse ver o Papa. Exemplos tão bonitos do que é ser pequeno. É tão simples quando não nos permitimos ser complicados. É um mundo novo que é possível construir com tão pouco e, ao mesmo tempo, com tanto.
Ser como as crianças. Voltar à infância e recuperar o espanto, a admiração, a curiosidade, a busca. Numa entrevista dada à jornalista Anabela Mota Ribeiro, o Cardeal José Tolentino Mendonça chama a atenção para a importância de retomar essa arte do espanto: “A infância é uma máquina de espanto. Já todos passamos por essa máquina, mas é bom que a conservemos.” É imprescindível acolhermos a disponibilidade para aprender, para descobrir, para ver, para ouvir, para deixar-se encantar e olhar mais longe. A abertura é a condição do espanto. Permanecer em espanto toda a vida e deixar-se conduzir pela simplicidade foi a resposta que Jesus deu à interpelação dos seus discípulos. Busquemos nós, em cada dia, este grande tesouro da simplicidade. Larguemos os pesos da apatia, da indiferença, da superioridade, do materialismo. Saibamos cultivar aquela alegria das crianças com os olhos cheios de espanto e de gratidão pela vida. Escolhamos a pequenez que reside na beleza que nos rodeia e que, tantas vezes, não se mede em cálculos e valores. Abraçamos a felicidade que a simples vida em comunidade de vidas nos traz e nos enche de significados. E que possamos ser sempre como as crianças para, juntos, vivermos esse Reino prometido.