Cadernos de Taizé 3 – Qual a especificidade da fé cristã?
«Jesus não chama a uma nova religião, mas à vida».
Se o Cristianismo possui indiscutivelmente elementos que podem ser denominados religiosos, uma vez que coloca os seus seguidores em relação com o Absoluto, e em alguns aspetos é vivido como uma espiritualidade pessoal, seria mais exato vê-lo como um modo de vida, mais precisamente uma vida em comum. O que impressionou os habitantes da bacia do Mediterrâneo que viviam lado a lado com os primeiros cristãos há dois mil anos, foi verem que pessoas de origens, de línguas e das classes sociais mais variadas se chamavam uns aos outros irmão e irmã e viviam juntos numa grande proximidade, «judeus e gregos, escravos e homens livres, homens e mulheres» (cf. Gálatas 3, 28). E ainda «Não se irá pôr mais a questão de ser ou não judeu, de estar circuncidado ou não, de ser ou não civilizado, estrangeiro, escravo ou livre…» (Colossenses 3, 11).
Apesar de algumas reflexões filosóficas acerca da unidade do género humano no mundo antigo, pela primeira vez o sonho de uma única família humana começava a tomar forma. E podemos dizer que foi esta realidade vivida, mais do que qualquer doutrina em particular, que deu ao Cristianismo nascente o seu poder de atração. No seu livro sobre os primeiros cristãos, os Atos dos Apóstolos, São Lucas dá-nos três vezes o resumo da vida dos primeiros cristãos. O primeiro destes textos encontra-se no fim do capítulo 2, depois do primeiro Pentecostes cristão:
Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fração do pão e às orações. Perante os inumeráveis prodígios e milagres realizados pelos Apóstolos, o temor dominava todos os espíritos. Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um. Como se tivessem uma só alma, frequentavam diariamente o templo, partiam o pão em suas casas e tomavam o alimento com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e tinham a simpatia de todo o povo. E o Senhor aumentava, todos os dias, o número dos que tinham entrado no caminho da salvação. (Atos 2, 42-47; cf. 4, 32-35; 5, 12-16)
O que vemos aqui é sobretudo uma comunidade viva no seio do povo judeu (e em breve chamada a sair das fronteiras da nação) e a partilhar a vida de dois modos complementares. Em primeiro lugar, com Deus, uma vida intensa de oração que inclui orações tradicionais e novas práticas, nomeadamente «a fração do pão», que se refere muito provavelmente à Eucaristia. E depois entre eles, uma partilha não só espiritual mas também material, a cada um segundo as suas necessidades.
Uma imagem quase idílica emerge deste quadro. Uma leitura mais aprofundada de todos os textos que dizem respeito aos primeiros cristãos mostra que a realidade está longe de ser assim tão perfeita, apesar do forte impulso dado pela morte e ressurreição de Cristo. No entanto, São Lucas não descreve a primeira comunidade cristã deste modo pelo gosto do romantismo ou da nostalgia mas justamente para responder à nossa questão sobre a especificidade da fé em Jesus Cristo. Esta especificidade não consistia tanto em ideias novas acerca de Deus mas numa vida partilhada. E segundo São Lucas era esta vida em comum que atraía as pessoas e que explicava o sucesso do novo movimento.
Um outro indício que, para Lucas, tem aqui a dimensão essencial da fé é o facto de situar este texto no final do capítulo 2. Já referimos que Jesus estava completamente enraizado no povo de Israel. Este povo considerava que tinha recebido uma vocação particular entre as nações da terra. O Deus que tinha formado este povo a partir de um grupo diverso de trabalhadores imigrantes no Egipto não era uma mera divindade tribal ou local, mas o Criador do universo e o Senhor da história. Consequentemente, o papel histórico do povo judeu era testemunhar pela sua vida este Deus único, para que um dia todas as nações da terra o pudessem reconhecer e assim viver em paz e harmonia(ver, por ex. Isaías 2, 2-4).
Esta vocação de Israel foi dificultada desde o início pelos caprichos da história. Por isso, muitos fiéis acreditavam que um novo começo era necessário para o realizar plenamente. Isto implicaria uma nova manifestação de Deus através da qual ele poderia finalmente realizar o seu desígnio original. Os primeiros discípulos de Cristo depois do aparente fracasso que foi a sua morte violenta, viam este novo começo na Boa Nova da ressurreição: a causa de Jesus não tinha terminado mas tinha apenas começado. Passava por uma nova efusão do Sopro de vida divina, o Espírito, que permitiria a Israel ser o que era na intenção de Deus desde o início: o núcleo de uma humanidade renovada e reconciliada. Por isso, São Lucas começa o seu segundo livro com Jesus, ressuscitado dos mortos, enviando o Espírito Santo sobre os discípulos para dar um novo ímpeto à sua missão após a interrupção da sua morte, e não é surpreendente que termine esta narrativa descrevendo uma comunidade onde esta missão assume uma forma concreta.
De facto, a estrutura dos Atos dos Apóstolos baseia-se em dois movimentos complementares. Por um lado, os discípulos de Cristo são enviados pelos caminhos do mundo para anunciar a Boa Nova aos quatros cantos da terra e criar laços entre os que respondem ao chamamento, por outro lado, encontram-se à Mesa do Senhor, exprimindo através da sua unidade o significado e a finalidade desta missão. «Vede como é bom e agradável que os irmãos vivam unidos!» (Salmo 133, 1).
É esclarecedor sobrepor estes dois movimentos característicos dos primeiros cristãos à situação das Igrejas atuais. O movimento de expansão para o exterior trouxe frutos em abundância. Um forte impulso a esta expansão surgiu do facto de no séc. IV da nossa era a Igreja cristã ter passado duma seita desdenhada e perseguida ao culto oficial do Império Romano. Paralelamente, os missionários cristãos levaram a mensagem a todo o lado, muitas vezes com o sacrifício da própria vida. Assim, o Cristianismo tornou-se um fenómeno mundial.
Se as principais confissões cristãs, a começar pela Igreja católica, cresceram atingindo dimensões planetárias, tem de se reconhecer que o aspeto da sua união não teve o mesmo sucesso. Em primeiro lugar, porque ao longo dos séculos a Igreja de Jesus Cristo se dividiu em segmentos indiferentes e até hostis entre si. Além disso, porque a progressão numérica e geográfica do Cristianismo parece ter andado a par com uma diminuição da intensidade da sua vida. Ao dissolver-se na massa, o sal do Evangelho perdeu, por vezes, a capacidade de salgar, ou utilizando outra metáfora, o fermento parece ter-se perdido na massa, pelo menos provisoriamente. Para encontrar exemplos de comunidades com uma intensa vida de oração e de entreajuda, temos de procurar entre as pequenas confissões evangélicas ou pentecostais ou em grupos dentro das grandes Igrejas históricas, por exemplo as chamadas comunidades monásticas ou religiosas, ou no que denominamos os novos movimentos eclesiásticos. E mesmo aí, estes grupos nem sempre reúnem pessoas de origens muito diversas. É, obviamente, muito difícil, humanamente falando, unir na prática universalidade e intimidade. Contudo, no retrato dos primeiros cristãos transmitido no Novo Testamento, descobrimos justamente isto e desde a primeira hora. Vemos grupos de pessoas que por causa da sua fé em Cristo morto e ressuscitado, partilham plenamente a sua vida entre eles, permanecendo abertos a pessoas de uma grande diversidade de origens. Estes grupos mantinham uma vida de solidariedade intensa sem se tornarem minimamente sectários porque tinham a convicção de que não existiam para si próprios mas tinham recebido uma vocação que dizia respeito a todo o género humano: a de ser fermento de reconciliação e paz. Em resumo, estas comunidades conciliavam uma vida em comum com uma perspetiva universal.
O termo clássico para esta partilha de vida é o vocábulo grego koinônia, traduzido geralmente por «comunhão». No Novo Testamento, o prólogo da primeira carta de São João ajuda-nos a compreender melhor o seu significado. Dirigindo-se aqueles que entraram na comunidade cristã depois dos da primeira geração, o autor começa por falar de Jesus Cristo não como de um indivíduo entre outros mas como «a Vida», «a Palavra de Vida» ou «a Vida eterna». Por outras palavras, Nele, a própria Vida de Deus entrou de modo muito concreto na história humana. E continua:
O que nós vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós estejais em [koinônia] comunhão connosco. E nós estamos em [koinônia] comunhão com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo. Escrevemo-vos isto para que a nossa alegria seja completa. (1 João 1, 3-4)
Esta Palavra de Vida comunicada cria uma koinônia –uma partilha de vida, uma solidariedade – entre aqueles que a recebem. E esta vida partilhada, não é apenas uma realidade humana, uma vez que não está baseada nos sentimentos ou na boa vontade das mulheres e dos homens a quem diz respeito. Não. É a participação na própria Vida de Deus, na comunhão que une Cristo com Aquele a quem chama Abba, Pai, na unidade de um mesmo Espírito. E, finalmente, São João diz que esta vida partilhada entre os crentes e com Deus é uma fonte de alegria verdadeira e perfeita. Se for este o caso, não será porque responde ao desejo mais profundo do coração humano de ser amado e amar sem restrições no espaço e no tempo? (…)