
Domingo
Coisas bonitas
Bonita é a casa habitada, o café com leite, a manteiga no pão, a partilha da luta quotidiana, o beijo do “até logo”.
Bonita a tenacidade dos que lutam.
Bonito o gato que te adota como mãe, o aninhar de uma criança num colo.
Bonito respirar, ouvir, andar, ver.
Bonita é a ascensão que dói, é ousar, relaxar os músculos no alto da montanha, depois de ter trepado até lá cima.
Bonito é saber que existe em nós uma força por descobrir, é ver o espanto das tempestades ao encontrarem-nos refeitos.
Bonito é escorregar e depois rir da queda.
Bonita a magia da linguagem, a força da imaginação.
Bonito, na terra, a indignação que pede justiça, o funeral das armas, o diálogo de verdades e direitos, o estreitar das mãos.
Bonita a amizade, as marés da memória, o reconhecer dum rosto através das coisas.
Bonitos os milagres íntimos.
Bonito o homem, carregado de dons e grandeza, dobrar-se como árvore generosa e humilde.
Bonita a colmeia dos nossos sonhos. Bonito é o bonito não caber em palavras.
Henrique Manuel S. Pereira in “Os paraísos são interiores”
Segunda-feira
A esperança cristã atreve-se a resistir e espera sempre
A celebração da Páscoa é uma esperança, um ato de fé na ressurreição interior do sentido, da descoberta reveladora do texto bíblico. A fé na ressurreição passa também por um atravessar a noite, o silêncio e o vazio, esperando a madrugada do sentido. Quando tudo parecia ter acabado na morte e num túmulo bem fechado, tudo recomeça no inesperado de uma manhã de primavera: «Não está aqui ressuscitou». O Vivente vai à vossa frente a rasgar os nossos caminhos de futuro.
Por isso, a esperança cristã ousa esperar «contra toda a esperança». Conhece os lugares da violência, do desespero, do luto, do vazio, da perda e da morte, mas não se rende à sua vitória final. Atreve-se a resistir, mesmo quando nada sabe, nada sente, nada vê diante de si. Sem rendição, sem desânimo, espera. Espera mesmo quando nos sentimos mais abatidos, quando as forças nos falham e o caminho torna-se mais duro e exigente.
Fazemos nossa a oração do Salmo: «não temerei nenhum mal, porque vós estais comigo». O Bom Pastor conduz-nos às fontes refrescantes da Páscoa, às pastagens da vida em abundância. Ainda que tenhamos de andar por vales tenebrosos. Descobrimos, espantosamente, que a própria Palavra de Deus põe na nossa boca as palavras certas para nos dizermos, para resistirmos ao não sentido. Descobrimos que a Palavra de Deus, feita oração, tem uma poderosa força ressuscitadora na noite: é luz para os nossos frágeis e hesitantes passos. É Palavra de ressurreição.
Padre António Martins in “Homilia no IV Domingo da Páscoa (03.05.2020)”
Terça-feira
O dom da gratuidade
Trazemos até ti o quotidiano pulsante, o tráfico atrapalhado dos nossos passos, a sirene urgente das necessidades a que hipotecamos tempo, preocupação e esforço. Por vezes, a vida lateja em nós sem margens, organiza-se sem pausas, com uma respiração repetida e férrea. Mas dentro de nós permanecemos sedentos. Acabada a atividade febril, descobrimo-nos nós próprios inacabados. Sentimos que nos falta um tempo que expresse, para lá da mera perseguição do necessário, a pura graça daquilo que não tem porquê.
Por isso te pedimos, Senhor, a ousadia de viver o gratuito: que hoje abramos uma janela não apenas para vistoriar o chão, mas para que os nossos olhos se percam na vastidão dos céus; que hoje dediquemos à vida em nosso redor um olhar largo, sem juízos precipitados, sem a sombra dos ressentimentos que sitiam. E que interpretemos a excedência do real como um chamamento a experimentar a prodigalidade do amor que repartes com as tuas criaturas, pois é o excesso do dom e não a egoística penúria que te espelha a cada instante.
José Tolentino Mendonça in “Rezar de olhos abertos”
Quarta-feira
Frutos da meditação
Quase todos os frutos da meditação se recebem fora da meditação. Alguns desses frutos são, por exemplo, uma maior aceitação da vida tal qual é, uma assunção mais cabal dos seus limites e dos seus achaques ou dores que se arrastam, uma maior benevolência para com os semelhantes, uma atenção mais cuidada às necessidades alheias, um superior apreço pelos animais e pela natureza, uma visão do mundo mais global e menos analítica, uma crescente abertura ao diferente, à humildade, à confiança em si mesmo, à serenidade.
Na prática constante da meditação comprova-se que, se lavraste conscientemente a tua consciência e te adubaste bem, tudo crescerá esplendidamente. Viver é preparar-se para a vida. Todo o esforço que se investe em si próprio dará fruto, mais cedo ou mais tarde. É claro que os frutos costumam demorar a ser colhidos, mas colhem-se! Que o digam os artistas que, depois de longos anos de formação, dão à luz, graciosamente, como se nada fosse, uma obra-prima. Não foi graciosamente, não foi como se tivesse saído do nada. O tronco tinha raiz, a fruta estava madura.
Pablo d’Ors in “A biografia do silêncio – breve ensaio sobre meditação”
Quinta-feira
Proclamação
Atualmente, o profeta – frente a um mundo onde reina um individualismo feroz e em que aqueles que não conseguem prover às suas necessidades são facilmente esquecidos – tem de fazer mais do que limitar-se a servir. Deve conduzir este mundo para lá das divisões presentes de raça e de género, de identidade nacional e de classe económica. Sim, o profeta está sempre desajustado em relação à resposta comum à dor, à carência, à perda ou à opressão. Os profetas são sempre incomodamente diferentes, desafiando sempre a consciência dos que ficam para trás, fazendo sempre frente a um mundo que lhes levanta obstáculos, sempre a caminho do Reino, e não do palácio.
Hoje, o apelo é a que todos nós percebamos que a tradição profética foi transmitida para que cada um de nós a pudesse reivindicar. O mundo precisa que todos nós, que cada um de nós, agora, tome o seu lugar com Jesus no caminho da Galileia para Jerusalém, de tal modo que as necessidades e a dor de ninguém sejam ignoradas ao longo da caminhada.
Joan Chittister in “O tempo é agora – um chamamento para uma coragem invulgar”
Sexta-feira
Só és no amor e és de quem amas
Não és só mais um na orquestra. A tua vida é vivida em conjunto com outros. Mais do que vivermos, convivemos. Numa orquestra todos têm uma missão específica a desempenhar, ninguém está a mais, e não há mais nem menos importantes. Formam um corpo onde a harmonia significa beleza. Se cada um cumprir o seu papel, todos ganham de forma igual. Nenhuma sinfonia pode ser interpretada por uma só pessoa, por mais hábil e talentosa que seja.
Amar é encontrar espaço para o outro poder ser quem é, mas nunca demasiado próximo. E tempo para se aperfeiçoar, sem nunca deixar de acreditar que ele é capaz, por mais que os fracassos se sucedam.
Eu preciso do outro para ser eu! A solidão que não se escolhe é uma condenação a não-ser. Somos importantes e essenciais, mas nunca apenas dentro de nós. O isolamento involuntário corta-nos os caminhos para o bem.
Só serei feliz se alguém o chegar a ser por minha causa! Cada um de nós é convidado a colocar a sua vida ao serviço de outros, entregando-se de forma mais ou menos profunda para que se alcancem objetivos que ninguém consegue sozinho.
O melhor de mim não é para mim. O amor leva-nos ao outro e permite que nos realizemos. Somos de quem amamos, porque decidimos que assim é, fazendo o que for necessário para que assim seja. O amor não é um gesto, é uma vida inteira.
José Luís Nunes Martins in “agencia.ecclesia.pt”
Sábado
Coração de pedra, a doença mais temida
Jesus era certo de ser encontrado nos problemas de fronteira do ser humano, à escuta do grito da Terra, no encontro com os últimos, atravessando com eles os territórios das lágrimas e da doença. Onde chegava, em aldeias, cidades ou no campo, traziam-lhe os enfermos e suplicavam-lhe que ao menos lhes deixasse tocar a bainha da sua capa. E quantos o tocavam eram salvos. Daqui vinha Jesus, trazia nos olhos a dor de corpos e das almas, a alegria irreprimível dos curados. Agora, fariseus e escribas queriam prendê-lo em frivolidades, como mãos lavadas ou não, questões de loiça e de objetos! Compreende-se como a réplica de Jesus é dura para eles: hipócritas! Tendes o coração distante! Distante de Deus e do ser humano. O grande perigo, para os crentes de todos os tempos, é viver uma religião de coração distante e ausente, nutrido por práticas exteriores, fórmulas e ritos; que se compraz com o incenso, a música, as horas das liturgias, mas não sabe socorrer os mais necessitados. O coração de pedra, o coração distante insensível ao ser humano, é a doença que o Senhor mais teme. «O verdadeiro pecado é, antes de tudo, a recusa de participar na dor do outro» ( J. B. Metz).
O que Ele propõe é o regresso ao coração, uma religião da interioridade: não há nada fora do ser humano que, entrando nele, o pode tornar impuro; são, pelo contrário, as coisas que saem do coração do ser humano. Jesus desconstrói todos os preconceitos sobre o puro e o impuro, esses preconceitos tão difíceis de morrer. Cada coisa é pura: o céu, a Terra, todo o alimento, o corpo do homem e da mulher. Como está escrito, Deus viu e tudo era bom. Cada coisa é iluminada. Jesus abençoa de novo a vida e atribui ao coração, e só ao coração, a possibilidade de tornar as coisas puras ou impuras, de as sujar ou de as iluminar. A mensagem festiva de Jesus, tão atual, é que o mundo é bom, que todas as coisas são boas, «repletas de palavras de amor». É uma mensagem que diz que deves proteger com todo o cuidado o teu coração, para que, por sua vez, seja protetor da luz das coisas. Fora as superestruturas, os formalismos vazios. Livre e novo regresse o Evangelho, libertador e renovador, uma lufada de ar fresco dentro do calor pesado dos discursos óbvios e habituais. Percorre o Evangelho e aflora-te o toque de um vento criador que te regenera, porque chegaste, porque regressaste ao coração feliz da vida.
Ermes Ronchi in “Avvenire”