Ofertório

Reflexão para o mês de novembro de 2025

“Todos esses deram do que lhes sobrava, mas ela, da sua pobreza, deu tudo o que possuía para viver.” (do Evangelho segundo São Lucas)

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Esta fotografia foi tirada ontem na celebração do V aniversário do falecimento do Jorge. Olho para nós e vejo futuro, vida e caminho. Cinco anos depois, continuamos a viver a nossa Ressurreição aqui na terra. Continuamos nesta festa eterna e a descobrir novas alegrias uns nos outros e uns com os outros. Continuamos a escolher sermos dádiva e a deixar que a gratidão seja sempre maior que qualquer tristeza ou desesperança.

Há momentos em que a vida se torna canção. Uma canção que nasce do amor e do tempo, da partilha e da fidelidade. Connosco estes momentos acontecem quando nos juntamos para rezar a cantar, em particular nas eucaristias em que cantamos. Ali, entre notas, alguns risos e silêncios, vivemos algo mais do que música: vivemos a oferenda. E o amor a fazer-se som coletivo. Ali, damos o que somos e deixamo-nos cantar uns com os outros, oferecendo a vida como quem oferece uma melodia — sabendo que não somos os únicos a compô-la. E assim fazemos da nossa existência um coro, uma oração que se oferece. Um encontro que faz da música oração, um diálogo de amor que se transforma em comunhão. Um ofertório.

Há um altar que se levanta dentro de cada um de nós. Não é de pedra, nem de ouro — mas de tempo, de silêncio e de desejo. E é aí, nesse espaço escondido e frágil, que se realiza o verdadeiro ofertório da vida. Cada vida tem o seu altar e cada gesto pode ser uma oferenda. Não são precisos grandes feitos, só um coração inteiro e disponível para se dar. Cada dia pode ser uma liturgia. Cada gesto, um altar. O sorriso que se oferece a quem já perdeu a esperança, a palavra que se cala para que o outro fale, o perdão que rasga o véu do orgulho, o tempo que demos a alguém — tudo isso é pão e vinho do coração, matéria sagrada que Deus acolhe e transforma.

Há muitos altares no nosso quotidiano: a cozinha onde se prepara uma refeição com cuidado, o quarto onde se vela uma noite de doença, a sala onde se escuta alguém sem pressa, o local de trabalho onde se procura ser justo e honesto. Em todos esses lugares, o Espírito celebra discretamente a sua liturgia. Por isso, ofertório não é apenas o momento em que o pão e o vinho são levados ao altar — é o movimento escondido de toda a vida que se oferece. É quando o coração, cansado ou confiante, se volta para Deus e diz: “Tudo o que tenho e tudo o que sou, é Teu.”

Ofertar é um exercício diário de confiança. É acreditar que, mesmo quando o que damos parece insignificante, Deus transforma-o e o multiplica-o. É viver com o coração aberto, sabendo que o amor nunca se perde, que a entrega nunca é em vão. O ofertório é o lugar onde deixamos de ser donos e nos tornamos filhos. Onde deixamos de controlar e aprendemos a confiar. Onde o nosso fazer se encontra com o fazer de Deus. O menino dos cinco pães e dois peixes não sabia que o seu pequeno gesto seria milagre. Ofereceu o pouco que tinha e Jesus multiplicou-o. Assim acontece connosco: o ofertório é o lugar onde o impossível se torna fecundo.

Por isso, o ofertório não é um ato isolado, mas uma forma de viver. É dar graças em cada manhã, é oferecer o trabalho como oração, é consolar como quem partilha o próprio coração, é carregar a cruz sem perder a esperança da ressurreição. E quando, no fim do dia, recolhermos o que resta — as alegrias, as falhas, os gestos pequenos —podemos voltar a dizer, como Maria: “Faça-se em mim segundo a Tua palavra.” Porque a vida cristã é, toda ela, um grande ofertório. E quem se oferece, deixa Deus fazer de si milagre.

O ofertório não é só dar, é também deixar-se dar. É permitir que a nossa vida se torne um dom, mesmo nas suas fragilidades. Porque o que é oferecido com amor nunca se perde. No fundo, é aí que se encontra o propósito: no gesto simples que se entrega, no sim repetido todos os dias, na alegria de saber que, quando nos damos, é o próprio Deus que passa por nós.

Jesus mostrou-nos o caminho: Ele que Se fez oferta total, corpo entregue e sangue derramado, ensinou-nos que o amor só é verdadeiro quando se faz entrega. A sua vida oferecida é a medida de todo o amor verdadeiro. E cada vez que participamos na Eucaristia, somos chamados a fazer o mesmo: a deixar que a nossa vida se transforme em dom, a permitir que o que somos se torne presença de Deus no mundo. E, como no final de cada Eucaristia, o amor que se dá não termina no cântico final – prolonga-se nos corações que o escutam. Assim também a vida: quando é vivida como oferenda, torna-se melodia que Deus reconhece como Sua. Porque o Amor, quando é oferecido, tem sempre um eco divino. O cristão é aquele que vive neste ofertório constante: entre o que recebe e dá, entre o dom e a resposta.

Voltemos à canção. Deus faz das nossas vidas uma partitura e convida-nos a tocá-la com o que somos. Cada um com o seu ritmo único, o seu instrumento pessoal. E o mais extraordinário é que, mesmo quando nos enganamos na nota, Ele continua a compor connosco, pacientemente, até que o nosso som se torne oração. E talvez aqui esteja a beleza da nossa criação: perceber que o ofertório é aquela nossa canção que não tem fim. Cada dia acrescenta um verso, cada pessoa um novo timbre. E Deus, silencioso maestro, recolhe tudo – o riso e o pranto, a alegria e a dor – e faz dele a sinfonia que somos. Que a possamos escutar com o coração que somos, sempre.

Cinco anos

“Mas primeiro tive de entender como pode o sol brilhar com este despudor amarelo sobre um mundo em que tu já não estás.” (Inês Pedrosa in Fazes-me falta)

Cinco anos. ✨

Hoje celebramos e agradecemos a vida toda, plena e inteira, do Jorge no meio de nós. Num exercício constante de ressurreição. Numa decisão permanente de continuarmos. Numa resolução constante de fazer as pazes com o que dói.

Sobreviver à morte de quem amamos não implica apenas resistir: impõe transformação. É deixar a ferida abrir espaço para a flor que teima em crescer entre as pedras. Viver depois de se experimentar esta dor não significa ficar à deriva: significa sim aprender a remar e seguir viagem. É decidir viver com um novo tipo de presença. Mais profunda, mais silenciosa. A presença da ausência do Jorge no meio de nós é um sinal de que a sua vida continua na nossa. E esta saudade, sendo partilhada, custa menos.

Há coisas que só quem ama entende: a ausência torna-se presença e aquilo que é o fim pode, afinal, ser o princípio de outra coisa maior que nós. Hoje há novos projetos, novos sonhos, novas mãos a construir o que começou com ele. E o Jorge continua vivo em tudo o que é luz, em cada gargalhada, em cada cântico, em cada passo que continuamos a dar em comunidade.

Jorge. O inventor de futuros. O que ria antes de reclamar, o que rezava antes de escolher, o que confiava no que estava por vir. E é nestas memórias que encontro a eternidade: no riso que fica, na bondade que deu fruto, na fé elevada.

Gosto muito de pensar que o Jorge já percebeu todos os mistérios que nós ainda tentamos decifrar. E que se ri de nós, lá do alto, com aquele ar de quem soube e sabe sempre mais do que devia. Um dia, nesse lugar onde o tempo não conta e o amor não tem pressa, voltar-nos-emos a ver. Para escrever as letras que faltam para as músicas que fizeste. Para pensar em novos temas para o retiro em Soutelo ou para o encontro em Caminha. Para ir comprar terra para os teus vasos ou os ingredientes para o bolo de cenoura. Para pegar no carro e ir até Paray ou Taizé. Para cantar as músicas da Betânia. Para ir “esplanar”. Para ler Virgílio Ferreira.

Cinco anos. E uma vida toda para toda a vida. Sempre.

Ana

O primeiro dia do resto de um novo ano!

Ontem, iniciamos o 5.º grupo da nossa Formação Cristã de Adultos. E é sempre uma alegria abençoada quando novos formandos chegam até nós! Começar uma etapa nova a cada ano traz a esperança de novos caminhos e a perspetiva de horizontes a alcançar. Há sempre tanto de bonito nestes inícios — aquele misto de timidez e curiosidade, de quem chega sem saber bem o que vai encontrar, mas sente que precisa de estar ali.

Cada rosto trouxe consigo uma história, um caminho feito, uma busca que continua. Cada um destes novos formandos trouxe também um bem essencial – um coração aberto à escuta e disponível para se deixar envolver neste percurso de espiritualidade e conhecimento.

E uma alegria imensa enche-nos o coração por sabermos que vamos caminhar juntos, que podemos proporcionar em cada encontro um lugar de caminho onde a fé se vai desdobrando em gestos simples e onde o que somos se encontra com o que acreditamos poder ser. É uma experiência de crescimento interior, de reaprendizagem da confiança, de descoberta de Deus no meio da vida quotidiana.

Que este novo grupo seja um lugar de escuta, de encontro e de transformação. Que cada semana traga um passo novo, um olhar mais leve, uma fé mais vivida. Porque quando nos reunimos em nome do Amor, é Ele que está no meio de nós — discretamente, mas com uma força que muda tudo em todos.

O que ontem começou é semente; e, nas mãos de Deus, toda a semente traz consigo a promessa de fruto. Com gratidão pelo que vivemos e confiança plena no que virá, seguimos, com alegria, sempre juntos na claridade da nossa Estrada.

Queridos novos formandos, sejam bem-vindos! Obrigada pela vossa escolha!

Eucaristias 2025/2026

O canto na liturgia e na oração tem um significado profundo para os elementos da nossa Comunidade e esta animação litúrgica está associada ao nosso modo de viver a Igreja na Igreja. Não somos só um grupo coral, mas sim uma Comunidade que se junta para rezar e viver a liturgia através do canto e da música. Alguns dos elementos da Comunidade Estrada Clara têm formação musical em canto e em instrumentos (piano, guitarra clássica, saxofone, entre outros). Muitos de nós já cantamos juntos desde muito novos, há já quase trinta anos. Muitos dos cânticos que cantamos nas Eucaristias são da nossa autoria, precisamente porque são o fruto do nosso modo de rezar, de louvar, de anunciar, através das palavras e da música, este Deus que nos ressuscita todos os dias. A nossa música, os nossos cânticos, os nossos silêncios musicais são parte da nossa identidade como comunidade. Hoje em dia, gerindo disponibilidades e agendas, famílias, responsabilidades profissionais, idas e vindas, ensaios e outras combinações, vamos mantendo este compromisso mensal de nos juntarmos, na nossa comunidade paroquial, para cantar este Deus que nos une e que fez e faz de nós uma irmandade com tempo e espaço para descobrirmos em nós a alegria de vivermos juntos!

𝐀 𝐂𝐨𝐦𝐮𝐧𝐢𝐝𝐚𝐝𝐞 𝐄𝐬𝐭𝐫𝐚𝐝𝐚 𝐂𝐥𝐚𝐫𝐚 𝐞́ 𝐫𝐞𝐬𝐩𝐨𝐧𝐬𝐚́𝐯𝐞𝐥 𝐩𝐞𝐥𝐚 𝐚𝐧𝐢𝐦𝐚𝐜̧𝐚̃𝐨 𝐝𝐨 𝐜𝐚𝐧𝐭𝐨 𝐧𝐚 𝐄𝐮𝐜𝐚𝐫𝐢𝐬𝐭𝐢𝐚 𝐝𝐨 𝟏.𝐨 𝐝𝐨𝐦𝐢𝐧𝐠𝐨 𝐝𝐞 𝐜𝐚𝐝𝐚 𝐦𝐞̂𝐬, 𝐚̀𝐬 𝟏𝟗𝐡, 𝐧𝐚 𝐩𝐚𝐫𝐨́𝐪𝐮𝐢𝐚 𝐝𝐞 𝐍𝐨𝐬𝐬𝐚 𝐒𝐞𝐧𝐡𝐨𝐫𝐚 𝐝𝐚 𝐂𝐨𝐧𝐜𝐞𝐢𝐜̧𝐚̃𝐨 (𝐌𝐚𝐭𝐫𝐢𝐳), 𝐏𝐨́𝐯𝐨𝐚 𝐝𝐞 𝐕𝐚𝐫𝐳𝐢𝐦.

Encontro em TI 2025/2026

“Encontro em Ti” é o nosso momento de oração mensal, na igreja Matriz e alargado a toda a comunidade paroquial. Acontece nas primeiras quintas-feiras de cada mês e, durante uma hora, diante de Jesus Eucaristia, rezamos a vida e a comunidade que somos. Uma experiência de partilha com quem vem meditar connosco e assim fazer memória e presença de um Deus que vem sempre ao nosso encontro.

A oração é a base primordial na identidade da Comunidade Estrada Clara. Desde sempre que, como qualquer grupo cristão, privilegiamos estes momentos de meditação e de silêncio, num encontro com Ele e connosco próprios. A oração na Comunidade Estrada Clara surge como compromisso comunitário. O esquema da nossa oração baseia-se na Liturgia das Horas, a oração pública e comunitária oficial da Igreja. A esta liturgia juntamos os cânticos, as nossas reflexões e o silêncio. Sempre o silêncio. Tão importante numa sociedade em que parece que o mais valioso é sempre o barulho, o ruído, o que fala mais alto. Há muito que descobrimos que é no silêncio e na serenidade que vamos sendo mais pessoas, que vamos conhecendo mais a nossa luz, que nos vamos tornando embaixadores do divino que vive em nós e assim construindo uma comunidade pensante e orante.

“𝐄𝐧𝐜𝐨𝐧𝐭𝐫𝐨 𝐞𝐦 𝐓𝐈” – 𝐧𝐚 𝟏.𝐚 𝐪𝐮𝐢𝐧𝐭𝐚-𝐟𝐞𝐢𝐫𝐚 𝐝𝐞 𝐜𝐚𝐝𝐚 𝐦𝐞̂𝐬, 𝐧𝐚 𝐈𝐠𝐫𝐞𝐣𝐚 𝐌𝐚𝐭𝐫𝐢𝐳 𝐝𝐚 𝐏𝐨́𝐯𝐨𝐚 𝐝𝐞 𝐕𝐚𝐫𝐳𝐢𝐦, 𝐝𝐚𝐬 𝟐𝟎𝐡 𝐚̀𝐬 𝟐𝟏𝐡

Saber amar

Reflexão para o mês de outubro de 2025

“Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.” (do Evangelho segundo São João)

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Há frases de Jesus que soam como uma chave de leitura para toda a vida cristã. Esta é uma delas. Este versículo surge num contexto muito particular do Evangelho de João. Jesus está reunido com os seus discípulos, a poucas horas da sua Paixão. O ambiente é denso, íntimo, carregado de despedida e, ao mesmo tempo, de revelação. É neste momento que Ele deixa aos seus discípulos o que chamamos de “testamento espiritual”: o mandamento novo do saber amar. Ser discípulo de Jesus é ser reconhecido pelo amor com que se vive. Jesus escolhe o amor como sinal de pertença, não o conhecimento, não o poder, não a prática exterior. O amor é a marca deixada em quem permanece n’Ele.

Ao declarar que a marca distintiva dos seus discípulos seria o amor, Jesus desloca a questão do ser para a questão do relacionar-se. Não sou discípulo por aquilo que possuo ou sei, mas pela qualidade das minhas relações. É no espaço entre mim e o outro que se joga a autenticidade da fé. Jesus não diz que o amor é apenas um caminho interior, fechado em cada um. Ele afirma que é algo visível, reconhecível: “todos conhecerão”. O amor é o critério público, aquilo que pode ser visto e tocado. Não há como esconder ou disfarçar. Amar é tornar-se testemunha. O amor é o sinal pelo qual nos damos a conhecer como cristãos. E é importante perceber que não se trata de um amor sentimental, reduzido a afeto ou simpatia. É antes um amor que compromete, que se faz serviço, que desce às feridas do outro. É um amor que lava os pés, que perdoa o parece ser imperdoável, que carrega a cruz que nos pesa. É um amor que é tantas vezes acontecido no silêncio e vivido na confiança. É um amor que implica aceitação e perdão do que se foi para se construir o novo que há-de vir.

O Evangelho ganha carne nos gestos simples e quotidianos, onde se faz a diferença. Às vezes, julgamos que amar como Jesus está reservado apenas aos santos, aos gestos grandiosos e heroicos, que não está ao nosso alcance. Mas a verdade é que esse amor se constrói no dia-a-dia. É amor quando, depois de um dia cansativo, resisto à tentação de me fechar em mim e vou ao encontro de quem está sozinho. É amor quando, no meio do trânsito, escolho a paciência em vez da buzina. É amor quando, no trabalho, evito a palavra que podia ferir e escolho a palavra que constrói. É amor quando acolho a diferença sem medo e abro espaço para a compreensão.

Amar assim é sempre exigente. É fácil falar de amor em abstrato, difícil é praticá-lo quando a vida se torna áspera: quando alguém nos fere, quando somos incompreendidos, quando o outro não corresponde. É precisamente aí que o Evangelho ganha força — porque não se trata de amar “quando dá jeito”, mas de amar “como Eu vos amei” (Jo 13,34). Um amor sem cálculo, sem condições, sem reservas.

Quando Jesus fala de “todos”, aponta para algo que vai além da comunidade cristã. Muitas vezes, a Igreja e as suas comunidades são vistas mais pelas divisões internas, pela rigidez ou pela indiferença do que pela capacidade de amar. Este versículo do evangelho de João soa, então, como um apelo urgente à conversão e é profundamente desconcertante porque nos coloca perante o essencial: ou somos discípulos de Jesus no amor ou corremos o risco de sermos apenas seus admiradores. O mundo só acreditará que o Evangelho é vida se a vida dos cristãos for esse mesmo Evangelho vivo. O mundo só nos conhecerá se os nossos gestos refletirem um estilo de vida verdadeiramente cristão. E esta identidade constrói-se, escolhe-se, molda-se no dia-a-dia, nas escolhas que fazemos, na autenticidade que vamos privilegiando. É o amor que evangeliza, que anuncia sem palavras. É o amor que provoca espanto, que cria vontade de permanecer onde ele está. Por isso, ser discípulo de Jesus não é uma identidade abstrata, é deixar que o amor nos aconteça e nos molde. E este amor, quando é assumido e vivido em permanente ressurreição, torna-se luz para o mundo, chama que aquece os nossos corações, sinal vivo da presença em nós de um Deus presente. E talvez seja este o maior desafio dos cristãos: deixarmo-nos reconhecer como discípulos não porque somos cristãos, mas porque o amor, traduzido em atenção, em escuta, em perdão e em serviço, transparece. É um caminho exigente, mas profundamente libertador. O amor vivido em comunidade torna-se farol – não para mostrarmos que somos melhores, mas para revelar a presença de Deus que se faz próxima através de nós.

Amar desta forma não é possível apenas pelas nossas forças. O amor humano é limitado, facilmente cansa e se fecha em si e impõe condições e trocas. Por isso, só permanecendo em Deus, só deixando que seja Ele a amar em nós, podemos ser capazes de viver o seu modo de amar. Deus não nos pede nunca um esforço sobre-humano; pede-nos apenas que nos deixemos transformar por Ele. Que nos permitamos acolher o seu amor primeiro, porque só quem se sabe amado até ao fim consegue amar assim. E será sempre este o nosso maior testemunho: quando, no meio das nossas fragilidades e incoerências, deixamos transparecer algo de um amor que não é só nosso. Quando alguém olha para nós e percebe que não caminhamos sozinhos, mas com Ele e por Ele.

No século II, Tertuliano, um autor das primeiras fases do Cristianismo, testemunhou que os primeiros cristãos levavam as palavras de Jesus tão a sério que os pagãos, admirados, exclamavam: “Vede como eles se amam!” Este testemunho atravessa os séculos e chega-nos como uma pergunta viva: será que ainda hoje podem dizer o mesmo de nós? O mundo continua sedento de um amor verdadeiro — não de amores descartáveis, utilitários, superficiais — mas de um amor que permanece, que cuida, que se doa, que abraça até às feridas. Quando os cristãos se tornam imagem viva deste amor, quando cada comunidade é lugar de acolhimento, de perdão e de serviço, a luz do Evangelho permanece acesa e não pode ser escondida. A medida deste amor que desejamos é o próprio Jesus. É este amor que somos chamados a aprender, a encarnar, a oferecer ao mundo. Por isso, peçamos-lhe, hoje, esta graça: que cada um de nós possa ser reconhecido pelo amor que vive — um amor que mostra ao mundo o rosto de Cristo, que nunca deixa de amar.

Palavras de vida

Reflexão para o mês de setembro de 2025

“Senhor, a quem iremos? Só tu tens palavras de vida eterna.” (do Evangelho segundo São João)

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Para onde vamos? Para onde seguimos? Para quem vamos? Quem nunca se colocou estas questões? Questões estas que urgem cada vez mais nestes tempos que correm velozes, sem piedade. Tempos desenfreados, acelerados que nos colocam uma emergência voraz que nos impele a correr, a seguir, a ir. Para onde vamos? Para onde caminhamos? A quem queremos chegar? Que quotidiano é este que nos impõe velocidade ilimitada? Que dia-a-dia é este que nos faz estar quase sempre atrasados, preocupados, assoberbados? Colocam-se perguntas, procuram-se respostas. Também há dois mil anos, os amigos de Jesus sentiam esta inquietação. Tanto a acontecer à sua volta, tanta novidade a nascer entrelaçada com imensas dúvidas a pairar no ar. O que fazer? O que sentir? Para onde ir? Como ir? Para quem ir? As mesmas questões de hoje, nossas, partilhadas, vividas.

“Senhor, a quem iremos?” Pedro coloca esta questão num tempo de crise, depois de muitos terem abandonado Jesus. Tinham ficado escandalizados com a linguagem exigente do Mestre, com a proposta do Pão da Vida, com a radicalidade do seu amor. Queriam um Messias que confortasse, mas não que desafiasse. Um Jesus que curasse, mas que não os chamasse à conversão. E quando perceberam que segui-lo implicava mudar de vida, foram-se embora. Porque é exigente acreditar num Deus que se faz tão próximo, tão humano, tão vulnerável ao ponto de se oferecer como alimento…

Jesus não os impede. Não suaviza o discurso, não adapta a mensagem para agradar. Apenas olha os que ficam e pergunta: “Também vós quereis ir embora?” É uma pergunta livre, corajosa. Não há chantagem, nem medo de ficar só. Apenas o amor que se oferece e espera uma resposta verdadeira. É uma pergunta que continua viva hoje. Todos nós a escutamos, em algum momento: quando a fé se torna pesada, quando Deus nos parece distante, quando o coração sente vontade de desistir.

Pedro, no seu jeito impulsivo, mas sincero, responde com aquilo que o coração sabe: “Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna.” Estas palavras são uma profissão de fé humilde. Pedro não diz que entende tudo o que Jesus diz. Não afirma que não tem dúvidas. Mas reconhece que, mesmo sem respostas fáceis, ninguém fala como Jesus. Só nas Suas palavras há qualquer coisa que o salva por dentro. Pedro não tem certezas — tem confiança. Não tem mapa — tem o Rosto. Não tem garantias — tem o coração ancorado n’Aquele que é Vida. A resposta de Pedro não é uma certeza teológica. É uma confissão de amor. Pedro viu, ouviu, experimentou e confiou.

Vivemos rodeados de palavras. Palavras que enchem os nossos dias, que nos atravessam as rotinas, que nos distraem. Palavras que prometem felicidade, sucesso, plenitude — mas que não chegam ao mais íntimo de nós. Há palavras que passam. Palavras que seduzem por um instante, que enchem os ouvidos mas não enraízam nada. Palavras que agradam, mas não salvam. Palavras que se gastam, como promessas vãs, como ecos que se dissipam ao primeiro sopro de dor.

E depois… há as palavras de Jesus. Palavras que não se esgotam na superfície. Palavras que tocam lugares que nem sabíamos que existiam. Palavras que ardem, que nos curam, que permanecem. Palavras que nos revelam a nós mesmos, que nos levantam, que nos chamam por dentro, que nos despertam para um dia sempre maior. Palavras cheias de uma vida inteira que não depende do tempo, nem do humor, nem das meras circunstâncias. Palavras que não mudam com as marés, que não se ajustam para agradar, mas que têm a ousadia de dizer a Verdade. Palavras que transformam e que dizem não o que queremos ouvir, mas o que precisamos para viver.

“Só Tu tens palavras de vida eterna.” E porque é eterna, a Palavra de Jesus resiste. Resiste ao tempo, à dor, à solidão, à morte. Resiste em nós quando tudo parece desabar. Estas palavras de vida eterna não prometem apenas um futuro depois da morte. Prometem um presente transformado – uma vida eterna que já começa aqui: uma vida que se descobre amada, que encontra sentido no meio das perguntas, que se deixa guiar por uma esperança maior do que qualquer escuridão. Só Ele tem palavras que tocam a vida inteira — as alegrias, as feridas, os medos, as esperanças. Por isso, ouvir Jesus não é apenas escutar uma mensagem. É deixar que a própria Vida fale dentro de nós. É acolher palavras que não se gastam nem se esgotam. Palavras que ensinam a amar sem medidas, a perdoar onde parecia impossível, a confiar mesmo no meio das incertezas.

Por isso, o Evangelho não é uma fala ou um mero aglomerado de acontecimentos. O Evangelho é uma vida. Uma vida que se espelha na vida de quem se assume cristão. Uma vida que reflete a eternidade das Palavras de vida eterna. E estas palavras leem-se no modo como amamos, na forma como gerimos o que Deus nos confiou, nas escolhas que fazemos. A nossa vida precisa ser esse evangelho vivo. Ou então não é evangelho nenhum. Peçamos a graça de nos deixarmos conduzir por estas palavras de eternidade e que elas se infiltrem no nosso quotidiano em cada dia que nos é dado viver.

Cumbíbio para Cumbiber 2024

Há um ano, juntamo-nos (quase todos!) para simplesmente estarmos uns com os outros, com tempo e com espaço, sem tarefas definidas, para aquilo que chamamos “Cumbíbio para Cumbiber”. Quem partilha vida connosco e já nos conhece bem, sabe que gostamos muito de arranjar nomes, digamos assim, pomposos para as nossas atividades várias e variadas. E este nome resulta da necessidade de nos encontrarmos, livres de atividades e responsabilidades, e com disponibilidade para o que mais importa – estarmos uns com os outros, por a conversa e o riso em dia. E houve tempo para cantar, lembrar, projetar, agradecer, rir, sonhar, ouvir.

Ficam aqui as memórias desse encontro de 2024, num resumo daquilo que somos e do que vivemos em comunidade. Este encontro passado que guardamos com especial carinho por tantos motivos, mas também por ter sido nesse dia que o André e a Andreia distribuíram os seus convites de casamento (e do batizado da Clarinha!). Quem sabe não se começou aqui uma tradição e amanhã haja uma nova surpresa…

Amanhã, estaremos novamente juntos para simplesmente estarmos juntos. Nesta irmandade que já perdura, para alguns, há mais de 30 anos! Nesta irmandade que persiste e atravessa os tempos e as circunstâncias porque há uma razão que nos acomuna e nos faz seguir nesta Estrada: Deus. Este Deus que se alimenta na nossa amizade com Ele através da amizade que vivemos uns com os outros. Esta irmandade que procura, mesmo nos momentos mais desafiantes, a alegria que vem de nos sentirmos amados por Ele através de cada um de nós. E é esta alegria que se fortaleça sempre que estamos juntos que nos faz ser portadores de alegria para todos os que caminham connosco.

Por tudo isto, amanhã, é dia de festa! Vamos!

Testemunhos 2024/2025

Enquanto estamos já a preparar o novo ano de formação, deixamos aqui registados os testemunhos da Joana, do Pedro, da Inês, do Douglas, do Caio e da Tânia, que fizeram connosco este percurso de educação e de partilha na fé. De outubro de 2024 a junho de 2025, às sextas-feiras, das 21h30 às 23h, na paróquia da Matriz (Póvoa de Varzim), estes jovens adultos fizeram parte de um grupo de treze elementos que foi fazendo o seu percurso na descoberta de um Deus que está sempre disponível para quem o quer acolher, construindo assim o início de uma fé adulta, pensada e experimentada, concreta, vivida em ações, participada no quotidiano e celebrada sempre em comunidade.

Com estes testemunhos verdadeiros e genuínos, queremos partilhar convosco a alegria que é para nós, Comunidade Estrada Clara, sabermos que este desejo de Deus tão próprio do ser humano está e continua presente em quem O procura e nós, Comunidade, somos infinitamente mais felizes por podermos proporcionar este tempo e este espaço de partilha, de descoberta e de interiorização. 

Um bem-haja a todo este grupo por tudo o que podemos partilhar, viver, descobrir em conjunto. ⭐

I Encontro de Formação – Lugar Teu

 I Encontro de Formação “Lugar Teu”: Um tempo e um espaço de escuta, de interioridade e de descoberta da presença de Deus em nós

Numa parceria da Comunidade Estrada Clara com a paróquia de Nossa Senhora da Conceição (Matriz), entre os dias 28 de fevereiro e 1 de março, realizou-se o I Encontro de formação para animadores de adolescentes e jovens, sob o nome “Lugar Teu”. Este retiro foi inspirado nas palavras do profeta Jeremias: “Eu conheço bem os planos que tenho para vós – diz o Senhor. Planos de paz e não de calamidade, para vos garantir um futuro e uma esperança.” (Jer 29,11).

Reunidos com o coração disponível e atento, os animadores presentes mergulharam num tempo de reflexão, silêncio, descoberta, histórias de vida, partilha e Palavra. Ao longo deste encontro, falámos sobre os planos de Deus em nós e para nós, questionamos se Ele tem (ou não) planos B, pensamos acerca dos imprevistos da vida e da forma como lidamos com eles e aprofundamos, por meio de algumas passagens bíblicas a forma como Jesus nos vai revelando esses planos de Deus nas nossas próprias circunstâncias de vida. Houve momentos de oração individual e coletiva, grupos de partilhas, celebração eucarística, apresentação de temas e trabalhos individuais, tendo sempre como pano de fundo o tema do encontro – os planos de Deus para nós e a história de cada um com Deus.

Na conclusão final deste encontro, selada com um simbólico abraço da paz e pela paz entre todos, ficaram as orientações a levar para a vida que vai seguindo: o desafio pessoal e coletivo de continuar a escutar os planos de Deus com confiança; o compromisso de ser presença significativa na vida dos adolescentes e jovens dos quais somos responsáveis; a alegria de saber que há sempre um “Lugar Teu” que nos pertence e que Deus preparou para nós.

Queridos jovens, obrigada por este encontro tão luminoso, partilhado e feliz. Obrigada pela vossa confiança plena em nós e por se deixarem caminhar connosco nesta Estrada que também é totalmente vossa! Seguimos juntos para o próximo “Lugar Teu”!