Quaresma, um tempo que me habita

Mensagem para a Quaresma 2025

Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Iniciamos o tempo da Quaresma. Um tempo favorável para a desaceleração, para a escuta interior, para o autoconhecimento. Um tempo privilegiado para me perguntar quem sou neste corpo que me habita e quem quero ser neste ser que me é dado ser.

A Quaresma é um tempo que se faz presença em mim e onde eu escolho morar. Este caminho de preparação não se esgota numa tradição litúrgica, mas é antes uma experiência espiritual profunda, um convite à conversão, à reflexão e à renovação interior.

A cada ano, a Quaresma habita-nos como uma oportunidade de recomeço. É um deserto que se abre diante de mim. Mas este deserto não é vazio; ele é um espaço onde sou chamada a confrontar as minhas sombras, a reconhecer as minhas fragilidades e a abrir-me à graça divina. Aqui, cada silêncio fala, cada renúncia purifica, cada gesto de amor me aproxima de Deus e do próximo.

A espiritualidade quaresmal não é um exercício de tristeza ou privação sem sentido, mas um processo de esvaziamento para que algo novo possa florescer nesse espaço. Ao jejuar, não apenas abro mão de algo material, mas aprendo a libertar-me daquilo que me afasta do essencial. Na caridade, descubro que a verdadeira riqueza está no dar, no partilhar, no acolher. Na oração, encontro o refúgio onde a minha alma descansa e se fortalece.

Este tempo que me habita ensina-me a viver com mais consciência e autenticidade. Convida-me a estar atenta os sinais da presença de Deus no quotidiano. Ao longo deste caminho, percebo que tudo o que me é dado viver são oportunidades de crescimento abraçadas pelo Amor de Deus. Cada desafio vivido com fé transforma-se numa porta aberta para a graça. Por isso, preciso deixar que a Quaresma aconteça em mim, dando espaço à dor trabalhada, ao perdão que me abre ao futuro, à fragilidade reconstruída em força.

Quaresma. Quarenta dias que me atravessam, que se inscrevem na minha vida e me convidam a ser caminho. Quaresma. Quarenta dias que me habitam, que me constroem e que me preparam para chegar ao Dia Maior.

Estrada Quaresmal 2025

Percorram connosco a nossa Estrada Quaresmal deste ano, um tempo de oportunidade, de recomeços e de vida interior. A oração não mede a minha relação com Deus, mas é a minha relação com Deus. Que este tempo quaresmal seja propício para fazermos a descoberta desta relação única que cada um de nós tem com Deus através da meditação, da música e do silêncio.

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“Entra no teu quarto.
Entra dentro de ti, no teu coração.
Entra no teu quarto.

Toma consciência da tua vida, da qualidade da tua vida. Da qualidade espiritual, da qualidade de amor, da qualidade de generosidade, da qualidade ou não de misericórdia que tu vives.

Entra no teu quarto.
Escuta o teu coração e entra. Entra com esperança para olhares o Pai, para descobrires o Pai que te ama e que te estende a mão.

Entra no teu quarto e descobre, redescobre que Deus é teu Pai e que Deus é uma presença de amor. Ele assiste ao nosso parto, Ele assiste à reinvenção de nós mesmos, Ele assiste à transformação da nossa vida.

Celebrar o tempo da Quaresma é esperar a primavera que não está longe. Há a primavera que as árvores vão mostrando, mas há sobretudo uma primavera interior, um rejuvenescimento da alma, uma juventude de coração que cada um de nós pode ganhar.”

José Tolentino Mendonça

No nosso tempo

Reflexão para o mês de março de 2025

“É este o tempo favorável, é este o dia da salvação.” (da Carta aos Coríntios)

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Vivemos um tempo marcado paradoxalmente pela pressa e pelo adiamento. Corremos desenfreados de um lado para o outro, cumprindo as tarefas diárias, mas, tantas vezes do mesmo modo apressado, adiamos projetos ou decisões, relevando-as para um plano secundário, como se dispuséssemos de todo o tempo futuro para os concretizar. Julgamos sempre que haverá uma altura melhor, uma ocasião mais propícia, um tempo mais adequado. E vamos adiando, à espera das conjunturas mais favoráveis e até do alinhamento dos astros… E, outras tantas vezes, essa oportunidade perde-se porque nós não somos donos do tempo…

São Paulo, na sua carta aos Coríntios, exorta-nos com esta certeza inabalável: “É este o tempo favorável, é este o dia da salvação.” Esta afirmação é um convite à consciência do presente, à ação de Deus no momento presente, no agora que é o tempo que me pertence. Deus age no agora. Muitas vezes, olhamos para o passado com saudade ou arrependimento, lamentando os erros cometidos ou sonhando com tempos que parecem ter sido melhores. Outras vezes, projetamos tudo para o futuro: “um dia vou ter mais tempo para estar com os meus amigos”, “quando tiver mais disponibilidade, vou fazer voluntariado”, “quando a minha vida estiver mais tranquila, vou dedicar-me à minha comunidade”, “quando sentir que estou pronto, vou comprometer-me mais”. Mas estas palavras de São Paulo rasgam estes mesmos adiamentos e colocam-nos diante de uma verdade fundamental: o momento certo é este no qual eu vivo.

Há duas palavras gregas para “tempo”: “chronos” e “kairós”. “Chronos” refere-se ao tempo cronológico, aquele que medimos com o relógio e com o calendário. Já “kairós” é o tempo oportuno, o tempo da graça, o tempo de Deus. Quando São Paulo nos diz que “este é o tempo favorável”, ele fala-nos do “kairós”. Não se trata de um tempo qualquer, mas do tempo que Deus nos concede para que algo novo aconteça. E esse tempo “perfeito” é o tempo do agora com as suas circunstâncias e imperfeições. Deus prepara-nos, com o seu Amor, este tempo, este presente que nos é dado. E porque é um presente, só pode ser bom. E porque vem de Deus, só pode ser uma graça. Mesmo quando passamos por dificuldades, mesmo quando as circunstâncias parecem adversas, Deus pode fazer deste tempo um tempo favorável porque nos permite compreender a sua presença em nós.

E Deus fala-nos, neste nosso presente, de diversas formas: numa inspiração no coração, num encontro inesperado, numa dificuldade que nos ensina, numa Palavra que ouvimos. Mas, se estivermos distraídos ou sempre à espera de um “tempo melhor”, corremos o risco de perder a oportunidade de viver este presente que Deus nos quer ofertar. Por isso, a salvação não é algo distante, mas uma realidade que se inicia no hoje da nossa vida. Se precisamos de renovar o nosso interior, o momento de mudar é agora. Se precisamos de um compromisso mais forte, o momento de assumi-lo é agora. Deus está presente no agora, e é aqui que Ele quer encontrar-nos e cobrir-nos com o seu Amor.

Isso não significa que não devemos planear o futuro, mas sim que não devemos deixar de viver o hoje na plenitude da graça de Deus, na certeza da confiança de quem nos ama. Deus não nos pede que esperemos por um amanhã incerto, mas que vivamos com intensidade a Sua graça no presente. Ele está no presente, chamando-nos neste exato instante a uma vida renovada. Este “tempo favorável” também não significa que tudo será fácil ou perfeito, mas que acreditamos que Deus age nas nossas vidas no momento presente, independentemente das circunstâncias.

Muitas vezes, esperamos um momento ideal para agir, para transformar a nossa vida. Mas a verdade é que o tempo favorável não é quando as condições parecem perfeitas, mas sim o agora, com todas as suas dificuldades e desafios. Deus chama-nos a agir no presente, mesmo diante da incerteza. Deus convida-nos a viver plenamente o hoje, sem adiamentos.

O tempo favorável. A história do meu presente diário. A minha resposta diária ao amor de Deus por mim. Como estou a viver este meu agora? Tenho consciência da oportunidade que cada dia me traz de amar mais, de acolher mais, de ser mais? Será que estou sempre à espera de condições ideais para me comprometer mais? Será que estou a adiar mudanças que sei que preciso fazer? Será que estou realmente a aproveitar este tempo como um tempo de graça? Escutemos o que São Paulo nos diz: o tempo favorável é hoje; o dia da salvação é agora. O tempo presente é um ato de entrega e de confiança. Significa estar verdadeiramente onde estamos, sem distrações desnecessárias, praticando a atenção plena. Significa escutar com atenção, falar com verdade, amar sem reservas. Que possamos, então, abraçar o presente como o presente que é. Que saibamos saborear cada momento como uma bênção, uma nova oportunidade de sermos, simplesmente, felizes.

Estradas Partilhadas – Encontro 13

No passado dia 12 de janeiro, inauguramos o ano com o nosso encontro mensal Estradas Partilhadas. Desta vez, a responsabilidade do tema partilhado foi do Pedro que nos trouxe um texto seu, escrito a partir da sua reflexão após a leitura de “A Economia de Deus”, uma obra de João César das Neves. Economista de formação, o Pedro ajudou-nos a mergulhar nesta temática e a compreendê-la de um ponto de vista cristão. Tivemos a oportunidade de aprender conceitos novos (e que bom que é estarmos sempre dispostos à aprendizagem!) e de perceber de que forma pragmática estes mesmos conceitos podem ser lidos e vividos à luz da ideologia cristã. Ao longo da partilha, também visitamos as diversas encíclicas escritas pelos Papas acerca do modo como a economia se faz presente na vivência cristã e de que modo cada um de nós, no âmbito dos seus contextos pessoais, familiares, sociais e laborais, pode e deve fazer fluir e transparecer esta noção de Economia de Deus. Foi uma tarde de conversa, de partilha, de aprendizagem onde pusemos em comum as nossas experiências pessoais de trabalho e o modo como vivemos a nossa essência cristã num mundo, por vezes, tão frenético e competitivo como é o mundo laboral.


“Estradas Partilhadas”, o nosso espaço para termos espaço para vivermos com tempo o tempo que trazemos em nós, para como comunidade fortalecermos em nós uma dimensão orante e pensante e assim promovermos a atenção e a escuta ao(s) Outro(s).

“Estradas Partilhadas”, os nossos domingos de gratidão, os nossos primeiros dias da semana, os nossos caminhos para chegarmos juntos a casa, à Terra Prometida.

Dia da Vida Consagrada

Hoje celebramos a vida de todos aqueles que decidiram fazer da sua vida a presença de Deus em nós. Esta foi a nossa escolha, minha, da Beatriz e do Jorge há já muitos anos. Por isso, este dia vai ser sempre um dia celebrado e lembrado a três. Um dia em que cabem nele todos os dias em que escolhemos entregar aquilo que somos a este projeto de vida chamado Comunidade Estrada Clara, o nosso projeto de vida cristã inserido na grande família que é a Igreja.

Temos sido muito felizes com esta nossa escolha. Costumo dizer que se todas as pessoas fossem felizes com as suas escolhas de vida como eu sou com a minha, sentir-se-iam plenamente realizadas como eu me sinto. Porque o que realmente importa é escolhermos aquilo que nos completa, que nos faz sair de nós mesmos e crescer em graça e em sabedoria, aquilo que vai ao encontro da melhor versão de nós mesmos. E nós encontramos a nossa melhor versão nesta vida comunitária cheia de alegrias e desafios, de perguntas e de certezas, de contemplação e de ação. Encontramo-nos porque decidimos partir à descoberta e fomos confiando no que Deus ia colocando no nosso caminho, sempre respeitando a nossa liberdade e o nosso tempo.

“A vida toda para toda a vida” foi o que prometemos os três num dia bonito de verão há mais de vinte anos. E assim foi e assim tem sido. Escolher a vida que faz vida em nós para sermos vida para que a vida dos outros seja sempre a vida do Outro. Eu e a Beatriz celebramos este dia nesta gratidão profunda de termos vivido este compromisso com o Jorge e também celebramos neste dia a alegria e a esperança de continuarmos a viver a nossa escolha na nossa comunidade, nos nossos projetos, na nossa Igreja.

Um feliz Dia dos Consagrados para todos os que vivem este compromisso e para todos aqueles que acompanham quem vive neste compromisso de vida!

Ana

📷nós os três numa noite fria de verão, em São João D’Arga, em julho de 2012.

A gramática da Bondade

Reflexão para o mês de fevereiro

“E não nos cansemos de fazer bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não houvermos desfalecido (da Carta aos Gálatas 6, 9)

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

“A gramática da Bondade”. Há dias deparei-me com esta expressão sublime num manual de Português do 12.º ano. É da autoria do Cardeal José Tolentino Mendonça e nela se resume todo o plano da vivência cristã. De facto, a bondade não é apenas um valor ou um comportamento ocasional, mas sim um elemento estrutural essencial dentro da fé cristã. A bondade permeia todas as áreas da vida cristã, moldando relacionamentos, atitudes e a maneira como os cristãos interagem com o mundo ao seu redor.

Ser bondoso, na identidade cristã, significa viver de acordo com essa gramática, onde cada ação, palavra e intenção se alinham com a vontade de Deus. E isto manifesta-se no perdão, na caridade, na paciência e no compromisso com a justiça e a verdade. Portanto, a bondade cristã não é apenas um princípio ético, mas uma resposta ao amor de Deus, moldando a vida de quem crê ao plano de salvação que Deus tem para cada um de nós. É o amor a Deus que nos faz sempre reconhecer no outro o próximo, o irmão ou a irmã a ser amado. E isso requer compromisso pessoal, decisões e escolhas de vida.

A bondade é ativada pela escuta genuína da Palavra de Deus que nos impele a viver de modo pleno a totalidade do Amor divino. Quando verdadeiramente conhecemos e nos deixamos orientar pela mensagem de Jesus, percebemos que os nossos esquemas mentais têm de ser alterados. Compreendemos que temos de investir mais nas relações, que temos de praticar mais a atenção para com o outro. E se assim nos deixarmos ir, na base da confiança e da esperança, há todo um mundo novo que vem até nós. Um cristão é um agente de mudança, é uma luz que ilumina a escuridão, é um desafiador de lógicas e julgamentos.

Como podemos nós, nos nossos contextos e histórias diárias, concretizar este mistério da bondade? A resposta a esta questão encontrámo-la sempre na ordem da simplicidade. A bondade está sempre ao alcance de todos porque todos nós fomos feitos à imagem de um Deus que só nos ama e que, sendo Ele próprio um mistério de bondade insondável, só espera de nós a concretização desta mesma bondade. A grande novidade que o Evangelho anuncia não é tanto o facto de que Deus é fonte de bondade, mas que todos os homens podem e devem agir à imagem do seu Criador. Por isso, o mais pequeno gesto de bondade tem um valor incalculavelmente maior do que muitas teorias, belas palavras ou boas intenções. Pessoalmente, não consigo deixar de acreditar na perseverança da bondade. Se a procurarmos à nossa volta, vamos encontrá-la, pelo que concluo que o que é verdadeiramente humano e revolucionário é isto mesmo, esta necessidade de acolher o outro, de fazer o bem, de personalizar este mesmo bem. A bondade é como uma chama que pode estar momentaneamente oculta, mas nunca se extingue definitivamente ou como uma semente debaixo da terra que, mais tarde ou mais cedo, vai brotar e dar fruto. Nem sempre a bondade é notória e evidente, mas ela existe e torna-se real se nela escolhermos investir. E o que investimos ser-nos-á devolvido, conforme a promessa do Senhor.

Na missa inaugural do seu pontificado, o Papa Francisco deixou-nos esta imagem fortíssima: “Não devemos ter medo da bondade.” Parece ser algo contraditório, mas acaba por ser a fotografia de uma certa realidade que nos envolve. A bondade não é virtude dos fracos, antes, pelo contrário, denota fortaleza de ânimo e capacidade de solitude, de compaixão, de verdadeira abertura ao outro. Bondade implica ação, envolvimento, ousadia em contrariar a lógica mercantilista das relações humanas. Anos mais tarde, o Papa voltou a repetir a que talvez seja uma das suas declarações políticas mais forte: “Que a vossa bondade seja revolucionária.” Porque viver a bondade numa sociedade que idolatra o umbiguismo, a competição e o sucesso desenfreado é ir contra a corrente, é assumir um cariz revolucionário. Bondade gera bondade. Alegria provoca alegria. Afeto multiplica afeto. Não há contagens negativas nem cálculos premeditados. É a lógica do Amor de Deus que vai contra todos os cálculos, previsões e estimativas humanas.

Precisamos de espaços onde praticar a bondade. Precisamos de pessoas que exijam de nós essa prática da bondade. Precisamos de nos descentralizarmos e de olharmos para o Outro nos outros. Precisamos de procurar ativamente a bondade, de nos deixarmos guiar pela empatia, de provocarmos generosidade em quem nos rodeia. Precisamos de ver com o coração que limpa a negrura dos dias, que abraça as dores partilhadas, que nos ergue sempre em esperança. A escolha é nossa. A de procurar ativamente esta bondade que existe. A de criar gestos de bondade para multiplicar essa bondade. A de salvar o nosso mundo. A de fazer da palavra bondade um verbo na voz ativa e conjugado no presente do Indicativo. Peçamos ao Senhor a graça de contemplar a vida através da beleza da bondade: “Ensina-nos, Senhor, o que significa bondade, esta forma afetuosa de conduzir a realidade e as relações.”

A Fé é um superpoder

Reflexão para o mês de janeiro

«Coragem, minha filha! A tua fé te salvou!» (do Evangelho de São Mateus 9, 22)

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

Feliz Ano Novo! Felizes 365 dias que nos serão dados viver!

O início de um novo ano pede-nos sempre uma reflexão acerca do ano que passou. Gosto de fazer este exercício de análise e, quando olho para trás, em particular para estes últimos quatro anos, só me consigo sentir grata. E motivo é muito simples: a minha escolha de vida, a minha Fé e o modo como a tenho vivido. A minha escolha de Fé trouxe-me até à pessoa do presente que sou hoje e com as pessoas que são o meu presente. E esta minha escolha pode não responder às minhas perguntas de por que razão a morte nos aconteceu há quatro anos, mas olhar para o que nos tem acontecido com olhos de Fé e de Esperança traz-me uma grande paz e uma imensa gratidão. Creio ser esta uma das mais importantes dádivas de se viver em Fé: experimentar a gratidão, saborear a bondade, viver a paz mesmo que, aos olhos do mundo, tal pareça impossível. E, acima de tudo, a Fé ajuda-nos a compreender como é que da morte renasce sempre a Vida. Sempre!

A Fé é uma construção pessoal. Primeiro, é sempre um desejo, uma vontade, um querer. Tem de existir esta disponibilidade, não pode ser imposta. Eu desejo conhecer Deus que me ama, mas que ainda não conheço, portanto, muitas vezes, é-me difícil retribuir esse mesmo amor. Eu tenho vontade de experimentar quem este Deus é, como é que Ele se manifesta, como é que Ele vive nas suas testemunhas. Eu quero fazer este caminho de busca e de construção. Este será assim o primeiro passo a dar numa caminhada de Fé. Por isso, a Fé implica uma relação pessoal, uma adesão. É um ato de confiança, é um caminhar sem garantias que implica a entrega das minhas fragilidades a um Deus as acolhe. A Fé é um processo que cresce com o risco, abrindo-nos caminho que é a nossa vida toda.

A gramática da Fé pede a sua conjugação no plural. O caminho que a fé nos mostra é sempre comunitário. Uma Fé genuinamente vivida só existe quando é partilhada, quando é espaço de bem comum com os outros e para os outros. A Fé implica relação, contacto, aliança. A Fé, para crescer, precisa de ser alimentada, nutrida, cuidada, caso contrário, ela torna-se mais vulnerável, mais frágil, mais sujeita à erosão do tempo e das incertezas. A Fé alimenta-se na oração, no quotidiano, na relação com os outros meus irmãos que são sempre o melhor reflexo de Deus.

Uma vida de Fé exige muita coragem e ousadia. Isso significa esforçarmo‐nos para não ficarmos paralisados pela presença da morte e da destruição que nos cercam hoje. Assim, ter Fé é deixarmo-nos ser socorridos. É não termos receio de nos entregarmos totalmente, tal como somos, com tudo o que somos. A Fé não é uma garantia, não é uma apólice de seguro. Ter fé não me vai impedir de assistir à morte daqueles que amo. Ter fé não me vai proteger de uma doença ou de um desaire profissional. Ter fé não me vai pagar as contas no final do mês. Mas ter Fé ajuda-me a superar todas estas dificuldades, a abraçá-las e a vivê-las de uma forma, a caminhar por entre vales tenebrosos guiada pela confiança que a Terra Prometida nos traz, acreditando que as dificuldades, as dores, os obstáculos não são o ponto final.

Então, como é que a Fé nos salva? De forma, de que modo ter Fé é garantia de salvação? A Fé salva-me na medida e que eu escolho que a minha Fé me salve. E a Fé que me salva depende de mim, isto é, da minha vontade em querer ser salva a partir da Fé que me salvará. Se não fosse a minha escolha de vida em Fé e pela Fé, não sei quem seria. Obviamente, é possível viver sem Fé, mas a minha história de vida tem um saldo inegavelmente feliz por causa da minha Fé. Sou uma pessoa melhor porque acredito que há uma Vida que nos espera não só aqui, mas sobretudo na Eternidade. Aceito com paz as minhas fragilidades porque sei que há um Deus que as acolhe. Sinto-me mais serena perante os obstáculos porque sei que são passageiros. Ter Fé ajuda-me a queixar-me menos do que me acontece e a desprezar qualquer revolta ou raiva que com facilidade se apegam ao coração humano. A minha Fé faz-me saber o que não é verificável pela racionalidade e ajuda-me a saber viver com isso. A Fé é simultaneamente entendimento e mistério, mistério e entendimento. Quando a razão já não consegue explicar os acontecimentos, então é nesse espaço que a minha Fé atua e me faz viver. Ter Fé ensina-me que é possível viver numa Irmandade feliz, que há uma mão que nos segura, que há sempre uma Voz que canta contigo a tua canção.

Quem mergulha numa vida de Fé, nunca mais deseja voltar ao superficial. Foi o que aconteceu comigo… Quem se deixa levar pela perspetiva de ler a vida como dom, nunca mais se deixa contaminar pela ingratidão e pela futilidade. A Fé é o meu superpoder! Reveste-me de fortaleza, aumenta a minha imunidade, protege-me do caos e do egoísmo. Mesmo quando ela brilha de forma muito ténue na escuridão, muito frágil e, muitas vezes, prestes a apagar-se…

O meu desejo para este Ano novo cheio de dias por inaugurar é que a minha vida possa ser sempre um testemunho deste meu superpoder. Que através das minhas palavras, ações, escolhas e comportamentos, eu seja capaz de personificar aquilo em que acredito. Que a minha fé seja sempre “uma boa notícia”, que é o sentido literal da palavra “Evangelho”. Que de mim se possam lembrar como uma mulher de Fé. Que eu possa anunciar com a minha vida como sou feliz com as minhas escolhas. “Seja o que for, será bom. É tudo.” Termino com estes versos do poeta maior, Daniel Faria. São o espelho do que é viver em Fé e pela Fé todos os dias. Que seja este o nosso mantra diário ao longo deste novo ano!

Um Menino nos foi dado

Mensagem de Natal da Comunidade Estrada Clara

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

“Porque um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado.” (Is 9,5)

Um Menino nos foi dado. Um Menino foi-nos entregue para nossa salvação. Um Menino que nasce para que eu possa viver. Um Menino que nos lembra que é na pobreza que encontramos a riqueza, é na fragilidade que conhecemos a fortaleza, é na pequenez que nos tornamos grandes.

Um Menino nos foi dado. Deus escolheu fazer nascer o seu filho não num majestoso palácio, mas num simples estábulo. Deus quis que o seu filho nascesse não numa família de imperadores e reis, mas num humilde lar. Deus quis que o seu filho fosse primeiramente visitado não pelas mais elevadas autoridades do Império, mas por um grupo de pobres pastores.

Um Menino nos foi dado. Para que O procuremos não nos grandiosos acontecimentos humanos, mas nas aparentes banalidades do quotidiano. Para que O reconheçamos naquilo que o mundo rejeita, para que acreditemos na força da debilidade, para que ousemos trazer a Luz à escuridão.

Um Menino nos foi dado. E com este Menino nascemos nós, sempre, cada vez que aceitamos a renovação, cada vez que escolhemos começar de novo, cada vez que damos espaço à disponibilidade.

Um Menino nos foi dado. E Deus ofereceu-nos, a cada Natal, o seu próprio filho, querendo verbalizar na nossa Humanidade todo o Amor com que somos feitos. Deus colocou nos nossos braços um Menino para nos revelar que é com um coração puro que conseguimos ver a beleza, que é com o olhar disponível que somos capazes de eliminar a indiferença e a brutalidade.

Um Menino nos foi dado. A toda a Humanidade. A cada um de nós. Este Menino que é sempre criança nos nossos presépios, sem idade e com Eternidade.

Um Santo Natal para todos vós que connosco seguis na nossa Estrada Clara! Um abraço sempre amigo e natalício.

Ana

Adventar

Reflexão para o mês de dezembro

“Espera no Senhor. Sê forte e corajoso e espera no Senhor.” (Salmo 27)

Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara

A história da fotografia que acompanha este texto é muito simples. Colónia, Alemanha. JMJ 2005. Em agosto, num dia particularmente quente com temperaturas invulgares para aquela cidade. Durante mais de cinco horas, estivemos na praça em frente à majestosa catedral de Colónia à espera que o Papa Bento XVI chegasse para saudar os peregrinos. As expectativas eram grandes. As horas iam passando, o calor aumentando, as conversas fluíam, os risos intensificavam-se. Estávamos ativamente à espera. Numa espera comunitária, sem pressas nem ansiedades porque sabíamos que o Papa estava a chegar. Quem já fez a experiência de participar numas JMJ sabe que uma das atividades previstas é mesmo esta… estar à espera do Papa! Percorrem-se lugares, escolhem-se os melhores sítios, combinam-se estratégias. Tudo para, simplesmente, ver o Papa. Para quem está de fora deste tipo de eventos religiosos, isto pode parecer algo “estranho” e uma perda de tempo, mas para nós cristãos esta espera é sempre significativa. Esperamos aquele que para nós é o representante de Jesus no meio de nós.

Ao deparar-me de novo com esta fotografia que representa a nossa espera, veio-me à ideia este conceito de espera cristã, conceito este que marca de forma evidente este período que hoje iniciamos – o Advento. O tempo do Advento é, por excelência, o tempo da espera. É o tempo privilegiado da preparação, do cuidado, da atenção. É o tempo do silêncio que fecunda, do olhar que procura a beleza, da paciência que se torna ação. Nestes dias que antecedem o Natal, a função do cristão é essa mesma – a de adventar.

Adventar. Adventar é esperar o que se anuncia, aguardar, com fé e esperança, o que está para vir e ver. Somos pessoas em advento, em preparação, em caminho. A nossa vida é uma espera contínua, daquilo que há de vir, do que há de acontecer, do que viveremos na Terra que nos está prometida para toda a Eternidade.

Muitas vezes, associamos esta espera a algo que nos é difícil de suportar, um vazio que se instala, uma ausência que corrói. Mas o tempo do Advento que nos é dado viver ressignifica esta noção de espera. É este o papel de Deus nas nossas vidas. Dar um novo significado à nossa história, ao que nos acontece. Dar uma nova possibilidade de caminho às nossas inquietações e incompreensões.

Adventar é esperar. E esperar não é passividade, não é impaciência, não é ansiedade. Esperar em Deus é dispormos do tempo propício para a profundidade, para abandonar a superficialidade, o imediato que tantas vezes nos faz viver de forma incompleta. Há uma dinâmica própria na espera cristã que não se enquadra nas dinâmicas deste mundo. Por isso, o esperar de um cristão é, muitas vezes, mal entendido e aceite. Esta espera cristã só é plenamente compreendida na disponibilidade interior e na confiança. Esta espera enche-se da riqueza maior que é Deus que vem até nós. Aquele que nos ama, ele próprio já nos espera. E sabermo-nos esperados por ele dá-nos a paz de que precisamos. Por isso, esta espera cristã fortalece-nos, torna-nos mais comprometidos com a vida que nos vai acontecendo, estimula a nossa criatividade, promove a nossa empatia, alarga-nos horizontes, liberta-nos do peso do que é concreto.

Neste Advento que hoje iniciamos, desafiemo-nos a aprender a esperar mais e melhor. Esperar implica confiança. No que nos espera. Nos que amamos. No desconhecido. No inesperado. No que não controlamos. Mas saber que há um Deus que nos espera é saber que essa espera vem de Deus. A nossa vida faz-se de esperas. A nossa vida está cheia de “adventos”. Precisamos do exercício da espera, escolhendo boicotar a ideologia da pressa, da inquietação, do utilitarismo.

Adventar não é passividade nem desistência. É ação, procura, entendimento. Esperamos na alegria e na vigilância. Esperamos com abertura e disponibilidade.

Na palavra “esperança” encontramos a palavra “espera”. E isto não é um mero acaso linguístico. Quem espera, tem de esperar com esperança. Porque esperar é sempre desejar o que está para vir. Esperar confirma a nossa esperança. Quem espera, alcança porque se deixa acreditar. Num futuro maior, numa alegria multiplicada, num fruto nascido de uma semente planta. Exercitamos a esperança quando escolhemos esperar e, assim, passamos a olhar o presente e o futuro com outra certeza no meio das incertezas.

Advento. Há uma festa que estamos todos a preparar. Uma festa a ser vivida já na antecipação de um nascimento feliz. Diz a sabedoria popular que o melhor da festa é esperar por ela. Pois é este o caminho que nós cristãos somos convidados a percorrer. Adventar. Saber esperar. Saber preparar aquela festa que nasce em mim com o nascimento d’Aquele que faz ser Luz. Adventar. Que saibamos conjugar este verbo nas ações dos nossos dias. Que nos assumamos como cristãos de advento, comprometidos com o caminho, empáticos com os irmãos, anunciadores de esperança.

XXXIX Jornada Mundial da Juventude 2024

Mensagem do Papa Francisco

Aqueles que esperam no Senhor, caminham sem se cansar (cf. Is 40,31)

Caros jovens!

No ano passado, começamos a percorrer o caminho da esperança rumo ao Grande Jubileu, refletindo sobre a expressão paulina “Alegres na esperança” (Rm 12, 12). Precisamente para nos prepararmos para a peregrinação jubilar de2025, este ano deixamo-nos inspirar pelo profeta Isaías, que diz: “Os que esperam no Senhor […] caminham sem se cansar” (Is 40, 31). Esta expressão é retirada do chamado Livro da Consolação (Is 40-55), que anuncia o fim do exílio de Israel na Babilônia e o início de uma nova fase de esperança e de renascimento para o povo de Deus, que pode regressar à sua pátria graças a um novo “caminho” que, na história, o Senhor abre aos seus filhos (cf. Is 40, 3).

Também nós vivemos hoje tempos marcados por situações dramáticas que geram desespero e nos impedem de olhar para o futuro com espírito sereno: a tragédia da guerra, as injustiças sociais, as desigualdades, a fome, a exploração do ser humano e da criação. Muitas vezes, quem paga o preço mais alto sois vós, jovens, que sentis a incerteza do futuro e não vislumbrais perspetivas seguras para os vossos sonhos, correndo assim o risco de viver sem esperança, prisioneiros do tédio e da melancolia, por vezes arrastados para a ilusão da transgressão e das realidades destrutivas (cf. Bula Spes non confundit, 12). Por isso, queridos amigos, gostaria que, como aconteceu ao povo de Israel na Babilônia, chegasse também a vós o anúncio da esperança: hoje o Senhor abre diante de vós um caminho e convida-vos a percorrê-lo com alegria e esperança.

1. A peregrinação da vida e os seus desafios

Isaías profetiza um “caminhar sem cansaço”. Reflitamos então sobre estes dois aspetos: o caminhar o cansaço.

A nossa vida é uma peregrinação, uma jornada que nos empurra para além de nós mesmos, um caminho em busca da felicidade; e a vida cristã, em particular, é uma peregrinação em direção a Deus, à nossa salvação e à plenitude de todo o bem. As realizações, as conquistas e os sucessos do caminho, se forem apenas materiais, depois de um primeiro momento de satisfação, deixam-nos ainda com fome, desejosos de um sentido mais profundo; em verdade, não satisfazem completamente a nossa alma, porque fomos criados por Aquele que é infinito e, por isso, em nós habita o desejo de transcendência, a inquietação contínua para a realização de aspirações maiores, para um “algo a mais”. É por isso que, como já vos disse tantas vezes, “olhar a vida da varanda” não é suficiente para vós, jovens.

No entanto, é normal que, apesar de começarmos as nossas jornadas com entusiasmo, mais cedo ou mais tarde comecemos a sentir cansaço. Nalguns casos, o que provoca ansiedade e cansaço interior são as pressões sociais para atingir determinados padrões de sucesso nos estudos, no trabalho e na vida pessoal. Isto produz tristeza, pois vivemos no afã de um ativismo vazio que nos leva a preencher os nossos dias com mil coisas e, apesar disso, a sentir que nunca conseguimos fazer o suficiente e que nunca estamos à altura. Este cansaço é muitas vezes acompanhado pelo tédio. É o estado de apatia e de insatisfação de quem não se põe a caminho, não decide, não escolhe, nunca arrisca e prefere ficar na sua zona de conforto, fechado em si mesmo, vendo e julgando o mundo por detrás de uma tela, sem nunca “sujar as mãos” com os problemas, com os outros, com a vida. Este tipo de cansaço é como um cimento no qual mergulhamos os pés, e que acaba por endurecer, pesar, paralisar e impedir-nos de avançar. Prefiro o cansaço dos que estão a caminho do que o tédio dos que estão parados e não têm vontade de andar!

A solução para o cansaço, paradoxalmente, não é ficar parado para descansar. É, pelo contrário, pôr-se a caminho e tornar-se peregrino da esperança. Este é o convite que vos faço: caminhai na esperança! A esperança vence todo o cansaço, toda a crise e toda a ansiedade, dando-nos uma forte motivação para avançar, porque é um dom que recebemos do próprio Deus: Ele enche o nosso tempo de sentido, ilumina-nos o caminho, indica-nos a direção e a meta da vida. O apóstolo Paulo utilizou a imagem do atleta no estádio, que corre para receber o prémio da vitória (cf. 1 Cor 9, 24). Quem já participou numa competição desportiva – não como espectador, mas como protagonista – conhece bem a força interior que é necessária para chegar à meta. A esperança é precisamente uma força nova, que Deus infunde em nós, que nos permite perseverar na corrida, que nos dá uma “visão de longo alcance”, que ultrapassa as dificuldades do presente e nos orienta para uma meta concreta: a comunhão com Deus e a plenitude da vida eterna. Se há uma bela meta, se a vida não se dirige para o vazio, se nada daquilo que sonho, projeto e realizo se perde, então vale a pena caminhar e suar, suportar os obstáculos e enfrentar o cansaço, porque a recompensa final é maravilhosa!

2. Peregrinos no deserto

Na peregrinação da vida, haverá inevitavelmente desafios a enfrentar. Nos tempos antigos, durante as peregrinações mais longas, era preciso enfrentar as mudanças de estação e de clima; atravessar prados agradáveis e bosques refrescantes, mas também montanhas cobertas de neve e desertos tórridos. Assim, a peregrinação de uma vida e a viagem para um destino longínquo não deixam de ser cansativas também para quem crê, tal como o foi para o povo de Israel a viagem pelo deserto até à Terra Prometida.

Assim é para todos vós. Mesmo para aqueles que receberam o dom da fé, houve momentos felizes em que Deus esteve presente e o sentistes próximo, e outros momentos em que experimentastes o deserto. Pode acontecer que o entusiasmo inicial nos estudos ou no trabalho, ou o impulso para seguir Cristo – tanto no matrimônio, como no sacerdócio ou na vida consagrada – sejam seguidos por momentos de crise, que fazem com que a vida pareça uma difícil caminhada no deserto. Estes momentos de crise, porém, não são tempos perdidos ou inúteis, mas podem revelar-se importantes oportunidades de crescimento. São tempos de purificação da esperança! Com efeito, durante as crises são desfeitas muitas “esperanças” falsas, demasiado pequenas para o nosso coração; são desmascaradas e, assim, ficamos nus diante de nós próprios e das questões fundamentais da vida, para além de qualquer ilusão. E, nesse momento, cada um de nós pode perguntar-se: em que esperanças baseio a minha vida? São esperanças verdadeiras ou são ilusões?

Nestes momentos, o Senhor não nos abandona; aproxima-se com a sua paternidade e dá-nos sempre o pão que revigora as nossas forças e nos põe de novo a caminho. Recordemos que ao povo no deserto deu o maná (cf. Ex 16) e ao profeta Elias, cansado e desanimado, ofereceu duas vezes um pão achatado e água para que pudesse caminhar “quarenta dias e quarenta noites até chegar ao Horeb, o monte de Deus” (cf. 1 Rs 19, 3-8). Nestas histórias bíblicas, a fé da Igreja viu prefigurações do dom precioso da Eucaristia, verdadeiro maná e verdadeiro viático, que Deus nos dá para nos sustentar no nosso caminho. Como dizia o Beato Carlo Acutis, a Eucaristia é a autoestrada para o céu. Um jovem que fez da Eucaristia o seu compromisso quotidiano mais importante! Assim, intimamente unidos ao Senhor, caminhamos sem nos cansarmos, porque Ele caminha junto a nós (cf. Mt 28,20). Convido-vos a redescobrir o grande dom da Eucaristia!

Nos inevitáveis momentos de cansaço da nossa peregrinação neste mundo, aprendamos então a descansar como Jesus em Jesus. Ele, que recomenda aos discípulos que repousem depois de regressarem da sua missão (cf. Mc 6, 31), reconhece a vossa necessidade de repouso do corpo, de tempo para o lazer, para gozar a companhia dos amigos, para o desporto e até para o sono. Mas há um repouso mais profundo, o repouso da alma, que muitos procuram e poucos encontram, e que só pode ser encontrado em Cristo. Sabei que todo o cansaço interior pode encontrar alívio no Senhor, que vos diz: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e oprimidos, e eu hei de aliviar-vos” (Mt 11, 28). Quando o cansaço do caminho vos pesar, voltai para Jesus, aprendei a descansar n’Ele e a permanecer n’Ele, pois “aqueles que esperam no Senhor […] caminham sem se cansar” (Is 40,31).

3. De turistas a peregrinos

Queridos jovens, o convite que vos faço é para que vos coloqueis a caminho, para descobrir a vida, nas pegadas do amor, em busca do rosto de Deus. Mas o que vos recomendo é o seguinte: não partam como meros turistas, mas como peregrinos. Isto é, que a vossa caminhada não seja apenas uma passagem pelos lugares da vida de forma superficial, sem captar a beleza do que encontrais, sem descobrir o sentido dos caminhos percorridos, captando só breves momentos, experiências fugazes registradas numa selfie. O turista faz isso. O peregrino, pelo contrário, mergulha de alma e coração nos lugares que encontra, fá-los falar, torna-os parte da sua busca de felicidade. A peregrinação jubilar quer, portanto, tornar-se o sinal do caminho interior que todos somos chamados a fazer para chegar ao destino final.

Com estas atitudes, todos nos preparamos para o Ano Jubilar. Espero que para muitos de vós seja possível vir a Roma em peregrinação para atravessar as Portas Santas. Para todos, em todo o caso, haverá a possibilidade de fazer esta peregrinação também nas Igrejas particulares, para redescobrir os numerosos santuários locais que guardam a fé e a piedade do povo santo e fiel de Deus. E faço votos de que esta peregrinação jubilar se torne para cada um de nós “um momento de encontro vivo e pessoal com o Senhor Jesus, ‘porta’ de salvação” (Bula Spes non confundit, 1). Exorto-vos a vivê-la com três atitudes fundamentais: a ação de graças, para que o vosso coração se abra ao louvor pelos dons recebidos, principalmente o dom da vida; a procura, para que o caminho exprima o desejo constante de procurar o Senhor e de não deixar apagar a sede do coração; e, por fim, o arrependimento, que nos ajuda a olhar para dentro de nós mesmos, a reconhecer os caminhos e as opções erradas que por vezes tomamos e, assim, a poder converter-nos ao Senhor e à luz do seu Evangelho.

4. Peregrinos de esperança para a missão

Deixo-vos mais uma imagem sugestiva para a vossa viagem. Ao chegar à Basílica de São Pedro, em Roma, atravessa-se a praça que está rodeada pela colunata criada pelo grande arquiteto e escultor Gian Lorenzo BerniniA colunata, no seu conjunto, parece um grande abraço: são os dois braços abertos da Igreja, nossa mãe, que acolhe todos os seus filhos! Neste próximo Ano Santo da Esperança, convido-vos a todos a experimentar o abraço do Deus misericordioso, a experimentar o seu perdão, a remissão de todas as nossas “dívidas interiores”, como era tradição nos jubileus bíblicos. E assim, acolhidos por Deus e renascidos n’Ele, também vós vos tornais braços abertos para tantos dos vossos amigos e colegas que precisam de sentir, através do vosso acolhimento, o amor de Deus Pai. Cada um de vós ofereça “ao menos um sorriso, um gesto de amizade, um olhar fraterno, uma escuta sincera, um serviço gratuito, sabendo que, no Espírito de Jesus, isso pode tornar-se uma semente fecunda de esperança para quem o recebe” (ibid., 18), e assim vos tornareis incansáveis missionários da alegria.

Enquanto caminhamos, levantemos o olhar, com os olhos da fé, para os santos que nos precederam na caminhada, que chegaram à meta e nos dão o seu testemunho encorajador: “Combati o bom combate, terminei a corrida, permaneci fiel. A partir de agora, já me aguarda a merecida coroa, que me entregará, naquele dia, o Senhor, justo juiz, e não somente a mim, mas a todos os que anseiam pela sua vinda” (2Tm 4,7-8). O exemplo dos homens e das mulheres santos atrai-nos e sustenta-nos.

Coragem! Trago-vos a todos no meu coração e confio o caminho de cada um de vós à Virgem Maria, para que, seguindo o seu exemplo, saibais esperar com paciência e confiança aquilo que esperais, permanecendo no vosso caminho como peregrinos da esperança e do amor.