Habituamo-nos a chamar-te assim porque te soubeste fazer próximo, porque nos mostraste o que é ser abraço em forma humana, porque oferecias sorrisos para enfrentar a frieza que tantas vezes domina este mundo estranho.
Escrevo-te hoje quando acordei com a notícia da tua partida. Agora que já deves saber que escrever ajuda-me a ver a vida e tudo o que nela acontece, terei muito para te dizer ao longo destes dias…
Eis que hoje o mundo parou por um instante. E no meu peito também tudo parou, como se o ar ficasse mais pesado e o tempo mais lento. E mesmo sabendo que o céu hoje te recebe com toda a alegria que mereces, aqui na terra há um silêncio que nos atravessa. Este silêncio que impera, é mais forte do que a agitação natural do dia-a-dia. Mas também este silêncio cria espaço e disponibilidade para ouvir o coração e a razão. Penso no dia de ontem e no que acontece hoje. Tantos sinais da presença deste nosso Deus! Ele só quis o teu regresso à Sua Casa depois de celebrarmos juntos, em família cristã, esse dia maior que foi a Páscoa. Estiveste connosco e abençoaste o mundo! Que belo dia, o de ontem! Festa, luzes, palavras de vida maior, cânticos, palmas, pandeiretas e tantos instrumentos musicais, vozes de júbilo… Tenho a certeza que Ele também estava a ganhar tempo para te preparar uma grande festa como só tu és merecedor. Claro que até o próprio Deus precisava de se inspirar no que de maravilhoso nós os cristãos vivemos ontem!
Hoje, queria dizer-te, antes de mais, obrigada. Obrigada por teres sido Papa com os pés na terra e o coração no Evangelho. Obrigada por nos mostrares que o amor de Deus tem mãos calejadas e que a fé pode cheirar a pão quente, a lágrimas enxutas, a abraço de mãe. Obrigada pela tua voz tantas vezes incómoda para quem não conjuga o verbo amar. Obrigada pela tua vida, verdadeiro hino à misericórdia, à graça, à presença de Deus entre nós. Obrigada por sonhares e edificares uma Igreja pobre para os pobres e aberta como os braços de Jesus na cruz que a todos nos abraça neste momento de dor.
Na madrugada do terceiro dia, a eternidade anunciou-se em silêncio: o túmulo estava vazio. Mas não era ausência — era plenitude. Não era roubo — era promessa cumprida. Não era fim — era começo. Escuta-se o eco do Nome que a morte não conseguiu calar. Ele ressuscitou. Ele venceu. Ele está aqui!
A Páscoa não é apenas uma alegria. É, sobretudo, uma reviravolta. É Deus a dizer-nos que nada está perdido, que o amor é mais forte do que o túmulo, que a dor pode ser sempre cuidada. Com Ele, ressuscitam também as esperanças adormecidas, os corações cansados e os sonhos esquecidos.
A Páscoa é esta feliz notícia que não envelhece, não é antiga, não é desmentida com o tempo. Esta feliz notícia transforma tudo: o medo, em confiança; a culpa, em graça; a cruz, em árvore de vida. Esta feliz notícia não se lê, experimenta-se; não se guarda, anuncia-se; não se explica, vive-se com fé. E hoje, como naquela madrugada, ela continua a ser sussurrada aos corações despertos: “Ele está vivo. Ele venceu. E caminha contigo.”
É esta a feliz notícia: há um Deus que entra nos nossos túmulos interiores e, com a força mansa do Seu amor, chama-nos pelo nosso nome e diz-nos: “Levanta-te. Vive. Recomeça.” É o Deus que se fez homem e atravessou a noite da morte para nos abrir o dia da graça eterna. Há uma promessa que se inscreveu na nossa história coletiva: onde Ele passou, a vida renasceu. Com Ele, a morte muda de nome: agora chama-se vida em abundância. O túmulo ficou vazio… para que a nossa vida fique cheia.
Uma feliz notícia! Anunciemo-la com a nossa vida! Cantemo-la com as nossas vozes! Hoje é Páscoa! Que felizes somos porque fomos escolhidos por Ele para com Ele voltarmos à Vida! Aleluia! Ele está vivo! Aleluia!
Uma Feliz e Luminosa Páscoa para todos vós neste caminho sempre pascal em que, juntos, fazemos e somos comunidade!
Fui ao sepulcro antes do nascer do sol. O coração pesado. Os olhos cansados de tanto chorar. Levei perfumes e óleos, pois queria cuidar do corpo d’Aquele que me devolveu a vida. Era o mínimo que podia fazer, depois de tudo o que Ele fez por mim. Depois de me levantar do abismo da vergonha, da solidão, do preconceito…
Acompanhavam-me Maria e Joana. Mas ao chegar, a pedra… não estava lá! O túmulo… vazio! Corri, chamei, chorei. O desespero tomou conta de mim. Pensei que O tinham levado. Roubaram o corpo? Porquê? Já não Lhe bastava a cruz? Então, dois homens em vestes brilhantes apareceram. Tremi. Mas, então ouvi as palavras que mudariam tudo: “Porque buscais entre os mortos Aquele que está vivo?”
Vivo? No início, o coração recusava acreditar. Mas aquela pergunta… ecoava dentro de mim como um novo sopro. Aquelas palavras não foram apenas anúncio. Foram luz. Luz para os corações que tinham amado sem reservas. Luz para nós que ficamos quando tantos fugiram. As palavras d’Ele voltaram ao meu coração. E o medo transformou-se em certeza.
Corremos para anunciar aos discípulos, mas eles não acreditaram em nós. Disseram que era delírio… Nós, que tínhamos ficado aos pés da cruz. Nós, que estávamos ali naquela manhã enquanto muitos ainda dormiam. Mas não nos importou. A verdade já ardia em nós: o Senhor está vivo. E ninguém nos poderia tirar essa certeza.
Naquela madrugada, não foi apenas a pedra do sepulcro que foi removida. Foi a pedra da tristeza, do desespero, da morte que pesava no meu coração. Foi a pedra da dúvida, do pessimismo, do negativismo. Procurei-O entre os mortos… e encontrei-O na Vida. Hoje, entendo: Ele não está no passado, na saudade, na culpa. Ele está no agora. No teu coração. Porque o amor nunca fica no túmulo. O amor, quando é fiel, vê o impossível tornar-se realidade.
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
Ainda ouço as vozes da multidão a gritar, os chefes religiosos a pressionar, aquele nome a repetir-se como um peso: Jesus de Nazaré. Trouxeram-nO diante de mim como um malfeitor, mas não vi crime nem maldade. Vi um homem ferido, mas sereno e com um olhar que logo me desarmou. Nunca ninguém olhou assim para mim — sem medo, sem ódio e como se me conhecesse melhor do que eu a mim mesmo.
“És tu o rei dos judeus?”, perguntei-Lhe, mais por formalidade que por fé. Ele respondeu: “O meu Reino não é deste mundo.” Que tipo de prisioneiro fala assim? Eu, habituado ao poder, à força, à estratégia, fiquei rendido. Havia algo naquele homem… Eu, que julgava homens, percebi que estava a ser julgado por aquele que se deixava julgar. O silêncio d’Ele não era de fraqueza — era de quem conhece a verdade e não precisa de se defender.
Tentei libertá-lo. Ofereci à multidão a escolha: Jesus ou Barrabás? Mas, escolheram o ladrão. O violento. O culpado. Eu ainda disse: “Não vejo culpa neste homem!” Mas eles gritavam mais alto: “Crucifica-O!”. Sentia as rédeas do poder escorregarem-me das mãos. “Se libertares este homem, não és amigo de César!” — foi a ameaça final. Com essa frase, prenderam-me. A minha posição, o meu cargo, o meu comodismo, o meu medo de Roma… tudo pesou mais do que a minha consciência.
Então, lavei as mãos. Lavei-as diante de todos. Um gesto vazio. Porque a água limpou os dedos, mas não a consciência. Ainda hoje, nas noites sem sono, vejo os olhos d’Ele. Não olhos de acusação, mas de misericórdia.
Pergunto-me muitas vezes quem era Ele, de verdade. Ouço rumores de que ressuscitou, de que os Seus discípulos agora espalham a Sua mensagem. Às vezes imagino o que teria sucedido se eu O tivesse libertado… O que teria acontecido ao mundo? Ao Reino de que Ele falava? À história que parecia estar a ser escrita não por mim, mas por Alguém maior do que todos nós? Naquele dia… o que o que aconteceu ali não foi apenas um julgamento…
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
Recordo aquela noite como se ainda estivesse a vivê-la. A mesa posta, o pão ainda quente, o vinho já servido, mas o que se preparava – sei-o agora – era mais do que uma ceia. Era um testemunho.
Pedro falava alto, contando as suas peripécias para conseguir comprar aquele pão a tempo da ceia. Tomé, sempre desconfiado, fazia-lhe muitas perguntas. Tiago e Filipe divertiam-se a imitar os dois. Todos nós nos riamos. Foi então que Jesus Se levantou. Com um gesto sereno, mas cheio de solenidade, tirou o manto. Pegou na toalha, atou-a à cintura, tal como um servo faria. E ajoelhou-Se diante de cada um de nós.
Eu vi Pedro hesitar, vi os olhos dos outros abrirem-se de espanto. E dentro de mim soavam perguntas: “Como podia Ele, o nosso Mestre, curvar-Se assim? Como podia Ele, o Deus feito carne, tocar com mãos tão limpas a poeira dos nossos pés?” Quando lavou os meus, não ousei falar. Não senti apenas água… senti graça e misericórdia. Era como se cada gota dissesse: “Deixa-Me purificar-te.”
Naquele gesto, Jesus revelou o que muitos nunca compreenderiam: que a verdadeira glória está em servir, que a maior luz é a que se abaixa para iluminar a escuridão. Porque naquele gesto, Ele não lavava apenas os pés. Lavava-nos o orgulho, a rigidez, a falsa ideia de grandeza. Lavava-nos os medos, os atalhos, as pressas de querermos ser os primeiros. E mostrava-nos que o amor verdadeiro é sempre serviço, é dádiva, é entrega. Ali Deus ajoelhou-se na nossa humanidade.
Mais tarde, no Calvário, quando o vi entregar-Se por nós, compreendi que aquele lava-pés era já um prenúncio da cruz: o Deus que Se inclina, que Se doa, que ama até ao fim.
Naquele lava-pés, entendi que ser amado por Jesus é também ser chamado a amar como Ele: de joelhos, com a toalha da humildade e o coração aberto. Naquele Seu gesto, também percebi que quem não aceita ser lavado, nunca será fonte.
Estava à mesa com os outros, mas o meu coração já lá não estava. A desilusão e a revolta dominavam-me. Durante três anos, caminhei ao lado de Jesus, vi os Seus milagre, escutei as Suas palavras. Mas as dúvidas cresciam e eu nada fazia para as esclarecer. Fui disfarçando a minha inquietação interior, com vergonha que me julgassem um fraco. Logo eu, o mais sério de todos, o mais preocupado com tudo, o mais responsável, como poderia eu ter dúvidas? Mas elas estavam lá…
Eu queria que Ele se impusesse, que derrubasse o Império, que ocupasse o trono que lhe pertencia por ser Filho de quem era. Mas Ele ultimamente só falava em morrer, em amar os inimigos, em dar a outra face… Aquilo não fazia sentido para mim. A minha impaciência e frustração cresciam… Seriam só promessas? Seria tudo uma fraude? Não! Eu ainda acreditava que Ele era o Messias! Ele só tinha de Se revelar ao mundo. Então, eu quis obrigá-Lo a agir. Eu não O queria trair… queria só provocá-Lo para que Ele se visse obrigado a manifestar a Sua realeza… E perante a iminência de uma condenação, eu tinha a certeza que Deus não O abandonaria e enviaria todos os Seus anjos para que O salvassem. Então aí, finalmente, todos acreditariam em Jesus! Ele seria Rei e nós os seus ministros! Era este o meu plano… perfeito!
Mas enganei-me… Fui longe demais… Traí-O, convencido de que se salvaria no último momento. E naquela noite, embora sabendo o que eu ia fazer, Ele não me rejeitou. Chamou-me “amigo”, como se me dissesse: “Ainda podes desistir. Fica comigo.” Por que não fiz isso? Por que não voltei atrás? Por que não Lhe abri o meu coração? Talvez porque o coração, quando endurece, já não escuta o amor…
Entregar Jesus… nunca imaginei que isso acabaria por me entregar a mim mesmo e me deixaria à mercê da culpa, do remorso, do abismo de onde nunca mais consegui sair… O que me matou não foi o pecado que cometi, foi o não ter acreditado no Seu perdão.
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
(a partir do Evangelho do dia – Jo 13, 21-33.36-38)
Estávamos os doze reunidos com Jesus para celebrarmos a Páscoa. Sentíamos que havia algo diferente naquela noite. Os olhos d’Ele falavam mais do que as Suas palavras. Ele falava de partir para onde não poderíamos ir e eu, impulsivo como sempre, não consegui ficar calado.
“Senhor, para onde vais?” – perguntei com a inquietação de quem não suporta a ideia de estar longe d’Ele. E quando me disse que não O poderia seguir agora, o meu coração revoltou-se. “Por que razão não posso seguir-Te agora? Darei a vida por Ti!” – disse, com toda a convicção.
Na minha mente, eu estava pronto. Pronto para tudo. Pronto para O defender, até com a espada. Pronto para O seguir até ao fim. Tinha a certeza! Não O deixaria sozinho! Morreria por Ele se fosse preciso! Mal imaginava eu que, horas depois, nem coragem teria para dizer que O conhecia…
Mas Ele já tinha visto a minha queda. Olhando-me, disse: “Darás a vida por Mim? Em verdade te digo: não cantará o galo antes que Me tenhas negado três vezes.” Fiquei estupefacto. Algo em mim gelou. Seria eu capaz de tal ato hediondo? Parece que sim…
Eu que me via tão forte, sucumbi à minha fraqueza. Eu que O amava tanto, neguei-O quando mais de mim precisou. Hoje, ao recordar aquela noite, vejo que ainda não tinha deixado que o Seu amor me transformasse por completo. Eu queria segui-Lo, mas à minha maneira. Mas, fui salvo! Ao contrário de Judas, não me deixei morrer no sofrimento que uma traição traz. Eu sabia que Jesus me amava sem medida e que o seu perdão cobriria o meu pecado. Deixei-me perdoar e voltei à Vida. E do meu fracasso, Ele fez uma história de amor.
O que mais me espanta não é que Jesus tenha previsto a minha traição… mas que, mesmo assim, Ele me tenha salvo do abismo para onde o pecado nos leva. Aquela noite fez de mim um homem novo. E eu fui abraçado pela Sua cruz, o lugar onde Jesus tem sempre os braços abertos para nós.
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
Seis dias antes da Páscoa, Ele voltou a Betânia, a minha casa. A memória do túmulo ainda me assombra – aquele escuro absoluto, o silêncio sem tempo. Mas depois ouço sempre a Sua voz, a que me traz de novo à vida: “Lázaro, vem para fora!” E eu voltei. E volto. Escolhi voltar. Não foi apenas um voltar à vida – foi um começar de novo, com um sentido que antes não conhecia. Nasci de novo. Como posso explicar? Os olhares que as pessoas me lançam… uns de espanto, outros de medo. Muitos querem ver-me só porque fui ressuscitado. Porque a minha vida, agora sim, é sinal d’Aquele que é a Vida.
E Ele estava ali de novo, sentado à mesa comigo. Marta, sempre generosa, servia-O com o coração em festa. Maria ajoelhou-se aos Seus pés e derramou aquele perfume caríssimo, enchendo a casa com o aroma do seu amor. E eu, silencioso, observava tudo com o coração cheio de gratidão, de reverência, de um amor que de tão grande que era já não cabia no peito.
Eu conhecia os olhos d’Ele. Tinha-os visto antes da minha morte e depois da minha ressurreição. Mas agora, havia neles uma sombra… era como se já carregassem o peso da cruz que se aproximava. E, no entanto, ainda havia n’Ele uma imensa ternura. Ainda havia n’Ele toda a luz. Ele escolheu estar com os seus, fazer festa, abraçar os que amava, sentar-se à mesa para partilhar o pão e a vida. Embora sabendo que ia morrer, Ele não quis morrer antes do tempo.
Seis dias antes da Páscoa, Jesus veio à minha casa. E, naquela mesa, eu soube: eu não sou apenas um homem que voltou da morte — sou um homem chamado a viver para sempre n’Ele. Sei que o meu corpo esteve fechado no túmulo, mas o meu coração é hoje, por Ele, uma casa aberta. E se Ele quiser, morrerei de novo. Porque, agora, sei o que é viver. Já não vivo para mim — vivo como quem sabe que esteve morto. Porque viver depois da morte… é viver para sempre!
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
(a partir do Evangelho do Domingo de Ramos – Lc 19, 28-40)
Eu estava lá, naquele dia inesquecível. Caminhava ao lado d’Ele, juntamente com Pedro e os outros. O sol brilhava intensamente, o caminho enchia-se de vozes, de cor, de ramos de palmeira. Entre a multidão, reconheci o cego que Ele tinha curado, a mulher que Ele tinha perdoado, o amigo que Ele tinha ressuscitado. Quando ouvi as pessoas a gritar “Hosana ao Filho de David!”, o meu coração explodiu de alegria. Finalmente! O povo reconhecia-O como Rei! Julguei estar a acontecer ali o começo da vitória, o momento em que Jesus iria revelar o Seu poder, libertar Israel, restaurar o trono de David.
Mas, no meio de tanta euforia desenfreada, havia algo no olhar de Jesus que me deixava inquieto e confuso. Ele não sorria como quem recebe glória. Ele não recebia aquelas aclamações com orgulho. Ele olhava a multidão que por Ele gritava com compaixão… e dor. As suas lágrimas, que muitos julgaram ser de alegria, escondiam o conhecimento do sofrimento iminente. Pois, Ele sabia que o aplauso de hoje transformar-se-ia na condenação de amanhã…
Naquele momento, eu ainda não compreendia que a Sua realeza era diferente. Que o trono valioso que O esperava era afinal uma cruz de madeira. Que a coroa real que lhe seria entregue era afinal de espinhos. Que Ele veio não para conquistar um Império, mas para imperar nos nossos corações.
Naquele dia, eu só via a festa a acontecer. E a história d’Ele poderia ter terminado ali. Com aclamações e juras de amor eterno, com abraços e promessas de felicidade. Só depois, com o tempo e com o que aconteceu, percebi que Ele quis que fosse de outra forma para nos mostrar que os desafios e os obstáculos existem para serem abraçados e que a vida d’Ele em tudo se assemelha à nossa.
Naquele dia, eu estava lá. Foi o dia do início do maior ato de amor da história.
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
“Mestre, onde moras? Vinde e vede!” (do Evangelho segundo São João)
Texto de Ana Luísa Marafona, Comunidade Estrada Clara
Esta passagem do Evangelho segundo São João apresenta-nos o encontro de Jesus com aqueles que foram os seus primeiros discípulos. Este encontro acontece no rio Jordão, um dia depois do Batismo de Jesus. Aqueles dois homens, maravilhados com tudo o que tinham presenciado, seguem Jesus e interpelam-no: “Mestre, onde moras?”. Ao que Ele responde, em forma de convite: “Vinde e vede!”. Eles seguem-no e assim começavam o seu caminho para a Terra Prometida.
A pergunta que os discípulos entregam a Jesus é fruto da sua sede, da sua busca, da sua procura. Não é uma questão de curiosidade. Não é também uma questão de lugar físico ou geográfico. É antes um desejo de sentido. Não é um simples pedido de localização, mas um anseio de habitação da alma. Esta questão colocada exprime o desejo de conhecer e compreender quem é verdadeiramente aquele Homem que ama com gestos, que salva com palavras, que anuncia uma eternidade feliz.
Esta questão feita pelos discípulos a Jesus pode ser ampliada para nós e é sobre nós mesmos: “Mestre, onde vives? Onde estão as tuas raízes? O que é te vivifica? Onde está a fonte para bebermos dessa tua água? Onde podemos permanecer enraizados em Ti? Onde nos podemos sentir acolhidos em Ti? Onde habitamos nós? Em que moradas depositamos a nossa esperança? A quem ou a quê nos confiamos?” Deixemos que estas interpelações ecoem em nós como um mantra contínuo e que descubramos que o Mestre mora onde O deixamos morar: dentro de nós.
À pergunta que os discípulos lhe fazem, Jesus, com a sabedoria de quem sabe que a verdade não se explica, mas se experimenta, responde com um convite: “Vinde e vede!”. Não lhes entrega um discurso recheado de aforismos nem tão pouco moralizações abstratas. Oferece-lhes sim um convite à experiência. “Vinde e vede!” implica um deslocamento, uma saída da zona de conforto, uma confiança naquele que nos chama. Muitas vezes, sentimo-nos sozinhos e abandonados porque só procuramos este Deus nos sítios errados. Julgamos que Ele está nas respostas rápidas e imediatas, nas seguranças concretas, nas ações provadas de forma racional e até científica. Pois, a verdade é que dificilmente O encontraremos assim… Deus está no caminho que fazemos, na busca do quotidiano, nesta peregrinação que a vida é e só teremos acesso à sua morada se confiarmos nesse mesmo caminho, se peregrinarmos em confiança, se nos disponibilizarmos ao compromisso. O encontro com Deus não é uma teoria abstrata, mas sim um caminho que se faz. A relação com Deus não parte de mapas prontos, mas de convites aceites na confiança.
Deus chama-nos sempre, Ele quer-nos sempre ao Seu lado. Mas ama-nos de tal modo que até nos dá a liberdade total de rejeitarmos este Seu chamamento. Quando aceitamos este seu convite, assumimos o risco próprio que a fé traz consigo. A fé é, antes de mais, uma resposta, uma ida na direção de Deus. É um desejo de caminhar, de fazer viagem, de navegar tantas vezes por “mares nunca dantes navegados”. De nada nos serviria a fé se não nos permitisse seguir pelo desconhecido. A Fé é um processo que cresce com o risco, abrindo-nos caminho que é a nossa vida toda.
Ao acederem ao convite de Jesus, aqueles dois homens não conheciam o final da sua história. Não sabiam, naquele momento, que iriam viver a mais extraordinária vida com Jesus, cheia de dias desafiantes, de palavras poderosas, de encontros abraçados, de espaços acolhidos. Não sabiam que iriam enfrentar a dor da cruz e, depois, encontrar a luz. E tudo começou com uma simples pergunta…
“Vinde e vede!” encerra o desejo do encontro, o combustível imprescindível para mantermos acesa a vontade de continuar a procurar. É uma chama que se mantém acesa em proporção ao sentido e à grande importância de quem ou do que se busca. Viver é desafiador na medida em que viver é procurar.
Nos tempos atuais, em Igreja, particularmente em contexto paroquial, creio que o mais desafiador é fazer com que os cristãos “venham e vejam”. Numa época em que as sociedades nos impõem que vivamos assoberbados com o trabalho, com o estatuto social, com os bens materiais, com o “show-off” das redes sociais, é, por vezes, difícil aceitarmos o convite para um encontro religioso, para uma experiência espiritual, para uma formação teológica. Mas a experiência também nos diz que depois de aceites e experimentados estes convites, abre-se uma nova realidade na vida das pessoas, encontra-se uma maior disponibilidade de horários e, assim, sem mais reservas, acedemos a uma outra compreensão da vida, de Deus, de nós próprios. Quem decide vir e ver, não fica indiferente: transforma-se. O olhar que vê Jesus já não é o mesmo; é um olhar que atravessa as sombras e se deixa iluminar pela verdade.
“Vinde e vede!” é esse convite a ousar abandonar o comodismo da fé acomodada; é esse chamamento a caminhar de olhos fechados, mas sempre de mãos dadas com Ele; é esse desafio à transformação pessoal com a única certeza da oferta uma Eternidade feliz. Que eu tenha a disponibilidade de me colocar sempre esta pergunta: “Mestre, onde moras?” e a vontade de encontrar a resposta. Que os meus pés sigam sempre nesta estrada, que os meus olhos vejam sempre esta claridade, que o meu coração deseje sempre ir ao encontro daquele que me ama.