Arquivo mensal: Maio 2016

A oração da realidade

índiceSusanna Tamaro, Avvenire, tradução de Rui Jorge Martins, Pastoral da Cultura

Entre as muitas tristezas espirituais do mundo contemporâneo está a incapacidade de saber ler na natureza que nos rodeia uma extraordinária oferta de Graça que se manifesta através da gratuidade da beleza.

Amedrontados pelo poder de tudo o que está vivo e foge ao nosso domínio, decidimos refrear também a Criação numa rígida ideologia. Todos nós queremos salvar a Terra – e é absolutamente justo fazê-lo –, mas no fundo não sabemos verdadeiramente porquê.

Recordo a visita, há alguns anos, de uma jornalista muito comproIMG_3426metida nas batalhas ecológicas. Quando a acompanhei na minha horta, conseguiu pisar praticamente todas as plantinhas que estavam timidamente a desabrochar. Continuava a falar desabridamente e quando a adverti – atenção às minhas cenouras! –, não baixou os olhos nem levantou o pé. Com o olhar obstinadamente fixo no horizonte, continuou a falar-me, imperturbável, das baleias. Defendia as baleias mas esmagava as cenouras!

Quantas vezes, para seguir uma ideia da nossa cabeça, não conseguimos ver a realidade que está debaixo dos nossos olhos. Essa realidade implora a nossa atenção, mas não somos capazes de ouvir a sua frágil e humilde voz.

E todavia, não é precisamente o assumir o cuidado por tudo o que vive e cresce à nossa volta, com a pressurosa atenção de uma mãe, a cura de todos os nossos males?

Falhar melhor

índiceKatya Delimbeuf, E, Expresso

No início deste mês, um professor de psicologia da Universidade de Princeton (EUA) publicou na conta do Twitter o seu ‘currículo de fracassos’. Joannes Haushofer fê-lo com um objetivo claro: “A maior parte das coisas que tento fazer não vingam, mas esses fracassos costumam ser invisíveis – ao contrário dos sucessos”, explicava o professor. “Percebi que isso dava por vezes a impressão de que a maioria das coisas me corre bem. Mas a verdade é que o mundo é imprevisível, as candidaturas dependem da sorte, e os comités de seleção têm dias maus”, escreveu. O professor de psicologia inspirou-se num artigo divulgado na revista “Nature”, em 2010, da neurobióloga Melanie Stefan, da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Ela escrevia na altura: “Há que reparar que o seu currículo de fracassos será seis vezes maior do que o seu currículo normal.” Mas apesar de isso ser “totalmente deprimente à primeira vista, pode ser que inspire um colega seu a esquecer a rejeição ou insucesso, e a começar de novo”.

O tema pode parecer corriqueiro, mas a verdade é que saber enfrentar o erro e aprender a lidar com ele é parte essencial no caminho do sucesso. Os erros escondem oportunidades de crescimento que podem revelar-se essenciais. O psicólogo Paulo Gomes argumenta que ‘os fracassos’ são inevitáveis, mas que “isso é geralmente uma coisa boa!”, “O desenvolvimento raramente acontece em linha reta”, lembra, e a “forma de encarar o erro pode e deve ser trabalhada desde muito cedo”. Cita uma investigação divulgada em abril deste ano na “Psychological Science”, que dá conta que “a crença que as crianças têm sobre se a inteligência é fixa ou maleável é determinada pela visão dos pais sobre o fracasso – e não sobre a inteligência”. Quer isto dizer que há pais que olham para o fracasso como algo intrinsecamente negativo, enquanto outros se focam mais nos resultados e no processo de aprendizagem. “Esse tipo de mentalidade fixa estabelece-nos limites: passamos a evitar as dificuldades e os erros, e fracassos são encarados como catástrofes”, alerta Paulo Gomes. “Ao contrário, tendo uma adequada mentalidade face aos fracassos, podemos ver os erros como oportunidades de aprendizagem, e perceber que são inevitáveis no caminho do sucesso. “É importante, assim, que nos foquemos no processo – e não no resultado final. E “que se falhe muito e muitas vezes, afirma o psicólogo. “Se isso não acontecer, é porque provavelmente, não estamos a tentar a sério, não estamos a correr riscos e a testar os nossos limites.”

Não há ‘homem de sucesso’ que não tenha recebido nove negativas por cada dez iniciativas. O segredo está em ‘aguentar’ até à décima tentativa sem perder o sorriso. Faz parte da vida cair e tornar a levantar. Além disso, lembra Charles Dickens, “cada fracasso ensina ao Homem que tem algo a aprender”. Aprendamos pois, sem medo.

a 13 de maio…

joseph-ratzinger-p_1273448161Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé

Mensagem de Fátima, Comentário Teológico, 13 de maio de 2000

(…) Chegamos assim a uma última pergunta: O que é que significa no seu conjunto (nas suas três partes) o « segredo » de Fátima? O que é nos diz a nós? Em primeiro lugar, devemos supor, como afirma o Cardeal Sodano, que «os acontecimentos a que faz referência a terceira parte do “segredo” de Fátima parecem pertencer já ao passado». Os diversos acontecimentos, na medida em que lá são representados, pertencem já ao passado. Quem estava à espera de impressionantes revelações apocalípticas sobre o fim do mundo ou sobre o futuro desenrolar da história, deve ficar desiludido. Fátima não oferece tais satisfações à nossa curiosidade, como, aliás, a fé cristã em geral que não pretende nem pode ser alimento para a nossa curiosidade. O que permanece — dissemo-lo logo ao início das nossas reflexões sobre o texto do « segredo » — é a exortação à oração como caminho para a «salvação das almas», e no mesmo sentido o apelo à penitência e à conversão.

Queria, no fim, tomar uma vez mais outra palavra-chave do «segredo» que justamente se tornou famosa: «O meu Imaculado Coração triunfará». Que significa isto? Significa que este Coração aberto a Deus, purificado pela contemplação de Deus, é mais forte que as pistolas ou outras armas de qualquer espécie. O fiat de Maria, a palavra do seu Coração, mudou a história do mundo, porque introduziu neste mundo o Salvador: graças àquele «Sim», Deus pôde fazer-Se homem no nosso meio e tal permanece para sempre. Que o maligno tem poder neste mundo, vemo-lo e experimentamo-lo continuamente; tem poder, porque a nossa liberdade se deixa continuamente desviar de Deus. Mas, desde que Deus passou a ter um coração humano e deste modo orientou a liberdade do homem para o bem, para Deus, a liberdade para o mal deixou de ter a última palavra. O que vale desde então, está expresso nesta frase: « No mundo tereis aflições, mas tende confiança! Eu venci o mundo » (Jo 16, 33). A mensagem de Fátima convida a confiar nesta promessa.

Fé Verdade Tolerância

bento-16Bento XVFé Verdade Tolerância

Variações sobre o tema Fé, Religião e Cultura

Embora o Cristianismo, como já se confirmou, visse a sua pré-história interior no esclarecimento racional e não nas religiões, ligou-se contudo à procura religiosa dos homens, e na configuração da oração e do culto recorreu à herança das religiões. Já a sua pré-história interior – o Antigo Testamento – consiste num permanente debate entre a absorção das formas religiosas dos povos e o esclarecimento profético, que põe os deuses de lado a fim de encontrar a face de Deus. Deste modo, existe uma posição inteiramente característica do Cristianismo na história espiritual da humanidade. Poderíamos dizer que ela consiste no facto de a fé cristã não separar esclarecimento racional e religião, não os pôr em confronto, mas ligá-los como que numa estrutura na qual, de modo contínuo, ambos se têm de reciprocamente purificar e aprofundar. Faz parte da essência do Cristianismo esta vontade de racionalidade – que aliás sempre levou a razão a uma auto-superação que ela de bom grado se prestava a recusar. Podemos também dizer: a fé cristã, que nasceu da fé de Abraão, insiste inexoravelmente na questão da verdade e, assim, naquilo que diz respeito a todos os homens e os liga uns aos outros. Pois todos nós temos de ser peregrinos da verdade.

“Vede como eles se amam”

índicePe. José Tolentino Mendonça, Domingo V da Páscoa, homilia

Queridos irmãs e irmãos,

Em cada Páscoa nós celebramos a verdade central da fé cristã. Essa verdade é esta e muito simples: o Espírito de Jesus ressuscitado habita no meio de nós. Como é que nós sabemos que Ele está vivo? Como é que nós O reconhecemos presente no Emaús da nossa vida e da nossa história? Sabemos porque o Seu Espírito está derramado em cada um de nós. Nós somos, hoje, o Cristo ressuscitado, nós somos o Seu Corpo Místico, nós somos a Sua presença no mundo. Porque Ele ressuscitou e está vivo, porque de junto do Pai Ele enviou o Seu Espírito, derramado, infundido em cada um de nós, para que em cada um de nós Jesus continue presente ao mundo e à história. Por isso, é na nossa vida, são nos nossos membros, nos nossos gestos, nos nossos desejos, nos nossos projetos que nós somos chamados a reencontrar Cristo.

Onde é que O encontraremos? Não é longe daquilo que somos e daquilo que vivemos. Mas nós temos de reencontrar Cristo no estilo da nossa vida, na gramática com que organizamos a nossa vida, nos valores que são o núcleo fundamental das nossas convicções. Aí nós temos de reconhecer Cristo, e Cristo ressuscitado, e temos de abrir mais e mais o nosso coração para que Ele Se torne presente. Ele deixou-nos um mandamento, um mandamento que é absolutamente insólito porque todos os mandamentos e toda a lei chega até um certo ponto.

A lei manda-nos ser justos, manda-nos ser corretos uns para com os outros. E nenhuma lei do mundo pode pedir que nos amemos uns aos outros, nenhuma lei. O amor não cai sobre a alçada da lei. Cai o respeito, cai a tolerância, cai a compreensão, cai a justiça no trato com os nossos semelhantes, mas o amor ninguém nos pode pedir, ninguém nos pode ordenar o amor.

É interessante que mesmo da chamada herança tricolor – liberdade, igualdade, fraternidade – as nossas sociedades liberais continuam o ideal da liberdade e da igualdade, entre aspas, mas o ideal da fraternidade caiu completamente. É como se as nossas sociedades achassem que era um ideal impossível de alcançar. Já não queremos ser irmãos uns dos outros. Queremos ser livres, queremos ser mais indivíduos, queremos ter mais espaço para nós próprios, mas a fraternidade é um ideal completamente em derrota, completamente para trás.

Contudo, Jesus dá-nos um mandamento nessa linha e um mandamento ainda mais exigente: “Amai-vos uns aos outros, como Eu vos amei.” Isto dá muito que pensar, porque muitas vezes nós achamos que devemos amar os outros como amamos a nós próprios. E por isso é muito importante amarmo-nos a nós mesmos para podermos amar os outros. Não está mal pensado. É importante que nos amemos a nós próprios, que nos encontremos, que tenhamos connosco mesmos uma relação equilibrada, amável, cordial para podermos amar os outros. Freud há décadas que nos veio também lembrar isso de outra forma e noutra linguagem.

Às vezes pensamos que temos de amar os outros como o outro me ama. E isso nós vemos no amor maternal, no amor paternal, como o amor incondicional que recebemos do outro tantas vezes é o modelo de amor – aprendemos a amar, aprendemos a retribuir. Então, o amor é uma espécie de resposta amorosa ao amor que nós recebemos, o amor é uma forma de retribuição. Mas não é nem de um nem de outro amor que Jesus fala. Jesus diz: “O Meu mandamento é este: amai-vos uns aos outros como Eu vos amei. Então, sabereis que sois Meus discípulos.” A medida do nosso amor, o modelo do nosso amor, o paradigma do nosso amor é o próprio Cristo. E nós temos de aprender a amar como Ele amou, com aquela disposição, com aquela liberdade, com aquela gratuidade, com aquela capacidade de ser dom, com aquela disponibilidade para ir até ao fim, para dar tudo sem limites. Nós temos de aprender esse amor.

A grande força da identidade cristã está sempre aqui. E este tempo, o tempo da Igreja, é para nós um tempo de aprendizagem. Nós somos aprendizes, estudantes, discípulos de um amor assim. Aquilo que é o nosso móbil, o horizonte de sentido da nossa vida é podermos alcançar um amor assim. E sentimo-nos felizes e sentimo-nos livres e sentimo-nos autênticos e sentimo-nos cristãos quando, às vezes por momentos, por um momento, por um dia feliz nós somos capazes de um amor assim, quando em pequenos ou em grandes gestos nós somos capazes de repetir a lição amorosa de Jesus Cristo: “ É este o mandamento que vos deixo.”

Queridos irmãos, a herança de Jesus é esta: é nos dar como tarefa o amor, como mandamento o amor. Aquilo que nenhuma constituição, nenhuma lei, nenhuma ordem nos pede é o que Cristo exige, reclama do nosso coração. Por isso, nós somos um povo mobilizado para o amor, e para um amor que tem a sua medida no amar sem medida, na capacidade de doação, na capacidade de entrega. Será que nós vivemos isto? Será que nós estamos disponíveis para isto?

A grande aventura cristã não é uma aventura ideológica. Os discípulos não tinham muito para dizer. Imaginemos Pedro: Pedro fez aquele caminho com Jesus, mas aquele pobre pescador, do lago de Tiberíades, o que é que ele tinha para dizer aos atenienses que sabiam muito mais de filosofia do que ele? O que é que ele tinha para dizer aos mestres judeus que tinham lido mil vezes a Bíblia mais do que ele? O que é que ele tinha de dizer aos Romanos que inventaram o direito e que eram uma civilização muito superior? O que é que ele tinha para dizer? Não tinha nada. Para dizer verdadeiramente, para anunciar uma novidade excitante de pensamento não tinha nenhuma. A única coisa que ele trazia era este mandamento: “Eu dou-vos um mandamento novo.”

É essa a grande novidade, é isso que é inédito na história do mundo, na pequena história de cada um de nós: recebermos este mandamento e fazermos dele o ponto de partida da nossa vida, o ponto de mudança, o ponto de radicação do nosso viver, podermos acreditar que é aí que se joga verdadeiramente a nossa felicidade. E o que nós vemos de extraordinário no Cristianismo das origens é como isso toca verdadeiramente, por isso as multidões diziam: “Vede como eles se amam.” Porque é esse amor que se torna o distintivo cristão. Por isso, um homem como Paulo de Tarso é capaz de chegar àquelas cidades helenísticas romanas e começar a criar comunidades que são absolutamente inéditas, absolutamente insólitas, porque são comunidades formadas por homens e mulheres, por judeus e gentios, por escravos e por homens livres, por ricos e proletários, todos juntos numa comunidade a escutar a palavra e a celebrar a eucaristia.

O mundo grego, na perfeição que é – o Fernando Pessoa dizia: “nunca mais nos livraremos dos gregos” e é verdade no sentido da dívida que temos para com eles – no auge da sua imensa sabedoria e criatividade, não foi capaz de criar uma comunidade assim. O mundo romano, no seu saber – e nunca mais nos livraremos deles porque eles criaram um instrumento tão extraordinário como o Direito, por exemplo, para lá da língua – não foi capaz de criar um mundo assim.

Quer dizer, toda a cultura, toda a riqueza, todo o engenho, toda a arte não foi capaz de criar uma comunidade de homens e mulheres indistintos que se juntam à volta de uma mesa e se amam, e se consideram irmãos. Agora a pergunta é: a nossa sabedoria para que é que nos serve? A nossa riqueza para que é que nos serve? Aquilo que temos, aquilo que trazemos, aquilo que construímos para que é que nos serve? Para que é que nos tem servido? Para que é que nos tem servido se não for para juntarmos à volta da mesa do amor, à maneira de Jesus Cristo, os nossos irmãos? E quando se diz: “Os nossos irmãos” em linguagem cristã diz-se “qualquer um, qualquer uma”. Isto é, quando formos capazes de amar qualquer homem, qualquer mulher como um irmão nosso, aí nós sentimos verdadeiramente que a lição de Jesus Cristo se torna efetiva em nós. Para que é que nos serve a nossa vida, as nossas batalhas, as nossas conquistas, o que sabemos e o que ignoramos, o que temos e o que não temos se não for para isso? “Deixo-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros como eu vos amei, nisso reconhecerão que sóis Meus discípulos.”